O lugar da ilustração

Claudete Pereira de Assunção, Eva Tozato, Jussara Maria Moreschi de Souza, Maria da Glória Galeb¹


Experiências significativas vivenciadas pelos professores no processo de formação resultam em um projeto de toda a rede sobre ilustrações de livros feitos pelas crianças


Para garantir o acesso aos bens culturais aos quais as crianças têm direito, oportunizamos aos profissionais² a formação continuada intitulada “Mil e Uma Histórias: Uma Viagem pela Literatura Infantil”, que propiciou reflexões a respeito das experiências com a linguagem escrita e visual – instrumentos básicos de expressão de ideias, sentimentos e imaginação –, numa relação dialógica entre linguagens. Nessa formação, foi possível refletir acerca das orientações didáticas para os momentos de leitura com as crianças, que envolvem a organização do espaço, do tempo e dos materiais, com vistas ao desenvolvimento do comportamento leitor.

Formação como ponto de partida

Era uma vez… professores que, em um processo formativo, realizaram atividades homólogas às que são oferecidas às crianças, para, assim, construir conhecimento sobre a prática e proporcionar experiência de qualidade.

Um mar de possibilidades… abria-se a cada encontro de formação, quando havia o momento cultural, uma importante estratégia de ampliação estética: leitura de textos literários, tais como narrativas, poesias, contos, entre outros. No decorrer dos encontros de formação, os professores puderam ampliar seu repertório de literatura infantil, conhecendo variados títulos.

Enquanto isso, as crianças… estavam tendo acesso a uma diversidade de histórias de boa qualidade, encaminhadas com encantamento e gosto pela leitura. E os profissionais foram sensibilizados quanto a importância dos momentos diários de leitura fruição com e para as crianças.

Os professores autores…, num exercício de escrita, lançaram-se a produzir as próprias histórias a partir de seus repertórios.


1Membros do Departamento de Educação Infantil da Secretaria Municipal de Educação de Curitiba. Claudete é pedagoga formadora e gerente da equipe de currículo; Eva é professora formadora graduada em Artes Visuais pela FAP; Jussara é pedagoga formadora coordenadora de oralidade e leitura da equipe de currículo e Glória é diretora do departamento.
2Tal formação envolveu diretamente 70 profissionais e cerca de 210 crianças das turmas de Pré-Escola, de Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs), Centros de Educação Infantil (CEIs) Contratados e Escolas com Educação Infantil da Rede Municipal de Educação de Curitiba (PR).

Como parte desse processo formativo, percursos de ampliação de repertório literário e imagético foram se estabelecendo com os profissionais e com as crianças. No mar de histórias, os professores puderam observar alguns critérios para selecionar bons livros de literatura infantil, considerando a qualidade dos textos, da ilustração e do projeto gráfico.

Ilustração, uma experiência

Isso reverberou nas instituições educacionais:

“O passo inicial foi trabalhar a essência do livro, o livro como objeto de prazer, o livro como instrumento de conhecimento, o livro como história, o livro como um meio de comunicação, o livro que foi lançado às crianças ganhando vida e sendo apreciado com prazer”, expôs a professora Edinéia Barbosa, do CMEI Vila Lorena, participante da formação. Ela explicou que, por meio dessa atividade permanente de leitura literária e do encantamento que esta possui, as crianças passaram a compreender a função social do livro:

“Nos momentos de leitura feita pelas crianças, elas começaram a se interessar em saber os nomes de autores e ilustradores, mostrando até suas fotos, caso estivessem no livro. Observamos o interesse delas ao perguntarem muitas vezes à professora:

Quem fez esse livro? ou Cadê a foto do autor?”

Quando pensamos em obra literária ilustrada de qualidade, temos de ter em mente que texto e ilustração são indissociáveis. Então surgem algumas questões:

O que é uma ilustração?
Para que ela serve?
Onde a encontramos?

São algumas perguntas que podem ser feitas ao pensar sobre o assunto. Ao observarmos uma criança contemplando a ilustração de um livro de literatura infantil, é necessário percebermos o quanto esta se torna importante, pois, na condição de leitor não convencional, a ilustração pode ampliar o texto escrito, tornando-se uma referência para a leitura pela criança.

Durante a formação, foi feita uma retrospectiva sobre a história da ilustração (ver BOX). A ilustração não apenas amplia o texto, mas também o “ilumina”, enfatiza algumas ações ou situações da história, permite que o leitor embarque em um mundo de sonhos e imaginações que vai além do papel. As crianças refletem bem isso, pois, nos momentos de reconto das histórias, criam outros enredos e não se prendem aos limites do texto ou da ilustração.

A ilustração também é um “texto”, que tem como símbolos as próprias imagens e os infinitos significados que cada leitor pode lhe atribuir, tanto reais quanto imaginários. Ela contém elementos visuais que podem ser lidos por pessoas do mundo todo e de todas as idades, pois permite uma leitura ampla, em que não há apenas uma interpretação, cada umas delas fundamentada no repertório de cada um. Assim, quando uma criança tem em mãos um livro de literatura infantil, é possível contemplar a narrativa muito além do texto escrito, pois ela embarca em uma viagem para um mundo imaginário repleto de experiências e construções simbólicas advindas do próprio repertório.

Das iluminuras à impressão

O surgimento das ilustrações consideradas documentais – que tinham o objetivo de registrar acontecimentos da época – deu-se com os povos da Antiguidade. Os egípcios começaram ilustrando as paredes das tumbas e dos papiros, acontecimentos importantes tais como a construção dos monumentos no Antigo Egito. São também desse período os primeiros pergaminhos ilustrados.

Nas civilizações grega e romana, é a função descritiva e objetiva da ilustração que prevalece, consolidando-se nas áreas das ciências, como na topografia, medicina e arquitetura.

No período da Idade Média, a ilustração aparece a serviço da religião, assumindo uma nova função: a de levar os ideais da Igreja a grande parte da população analfabeta. Um exemplo desse período é a Bíblia Pauperum, reproduzida através da xilogravura. Com o passar do tempo e a necessidade de aumento da produção e da reprodução em série de ilustrações, elas passam a ser feitas por meio da gravura (xilogravuras, litogravuras, gravura em metal), até o surgimento das técnicas de ilustração mais modernas com o uso dos recursos tecnológicos.

(Fonte: FREITAS, Neli Klix, ZIMMERMANN, Anelise. A ilustração de livros infantis – uma retrospectiva. Disponível em: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/humanas/Neli%20-%20Anelise.pdf

Professores ilustradores

Com o intuito de instrumentalizar os professores para a prática com as crianças, na formação “Mil e Uma Histórias”, eles foram repertoriados a partir da apresentação do que são ilustrações, seus usos e possibilidades desde o seu surgimento.

Dessa forma, após conhecerem um pouco sobre a história da ilustração e perceberem suas inúmeras possibilidades, como na cultura popular, nas histórias em quadrinhos, nos selos, anúncios, ilustração de moda, cédulas monetárias, revistas infantis, livros técnicos, manuais diversos, entre outras, os professores passaram a olhar para a ilustração específica da literatura infantil.

No olhar atento à qualidade, à quantidade e à função das imagens dos livros de literatura infantil, os professores foram envolvidos em questionamentos indispensáveis para esse momento, como a reflexão sobre a produção das imagens estar ou não vinculada às especificidades da linguagem visual. Segundo a artista plástica, ilustradora e autora Kveta Pacovská³:

“As imagens de um livro infantil são as primeiras galerias que as crianças visitam”. Dessa forma, é relevante que o professor, enquanto mediador, reflita sobre as escolhas e o valor artístico das ilustrações.

Para compreender o valor da ilustração numa perspectiva de linguagem visual, é de extrema relevância discutir e refletir sobre os estereótipos. Assim, a formação propiciou que os professores lessem os textos e analisassem as imagens que os livros continham, buscando observar se tais imagens não estavam padronizadas, acarretando empobrecimento para o repertório do leitor.

Também foram trabalhadas situações que proporcionam a ampliação das possibilidades no que diz respeito ao desenho autoral, criativo e livre de formas estereotipadas pelas crianças, valorizando a produção gráfica infantil em sua essência. Para isso, é necessário considerar o percurso gráfico de cada uma das crianças e ter no professor o propositor de desafios para que elas possam avançar no próprio percurso desenhista. A arte como linguagem da criança pode se desenvolver ou não, a depender das interações que a ela forem oportunizadas.


3Nascida em 1928 na cidade tcheca de Praga, criou um conceito próprio de livros para crianças, cuidando e intervindo em todas as facetas da obra: papel, desenho, formato, tipografia, facas, recortes. Veja entrevista em: http://www.revistaemilia.com.br/mostra. php?id=282

Considerando a homologia dos processos, os professores tiveram acesso a diversos riscantes (grafite, carvão, lápis de cor, lápis aquarelável, caneta hidrográfica, lápis dermatográfico4, pastel oleoso e seco, tinta guache, acrílica, nanquim e aquarela). Também foi dada a eles a possibilidade de criar a partir de objetos ou massa de modelar tridimensionais, gravuras, colagens, bem como de usar recursos tecnológicos (fotografando, escaneando e fazendo intervenções na imagem).

E os professores autores… passaram então para a elaboração de suas ilustrações, considerando o enredo da história, suas preferências e necessidades. Uma experiência prática que lhes possibilitou vivenciar a produção de um livro.


4Lápis composto basicamente por pigmentos e cera envolta em madeira ou em uma espécie de papel com cordão, que serve para apontá-lo sem precisar de apontador, bastando para isso ir puxando esse cordão. Também conhecido como lápis vitrográfico, pode ser utilizado para marcar vidro, além de outras superfícies extremamente lisas.

Mais sobre ilustração Revista Avisa lá

Ilustração: o diálogo entre texto e imagem. Revista nº 20. Sustança.
Pequenos textos e entrevista revelam a ilustração. Elemento importante na composição de um livro, ela não só enfeita, narra ou traduz um texto, mas dialoga com ele. (Alunos fazem ilustração a partir de leituras, pesquisa, observação e acesso a diferentes tipos de ilustração / Os primeiros livros ilustrados no Brasil / O diálogo do leitor com a ilustração/ A ótica de um ilustrador – Luis Camargo/Ilustração de contos de fadas.)

Ilustradores de primeira, de Renata Frauendorf. Revista nº 29. Sustança.
Produzir um livro com as crianças para que seja incorporado à biblioteca da escola não é uma grande novidade, mas a elaboração de ilustrações primorosas ainda é pouco comum. Veja como as crianças do Centro de Convivência Infantil Adolfo Lutz, na cidade de São Paulo, conciliaram de forma competente a proposta de escrever e desenhar.

Está no almanaque?, de Karina Cabral. Revista nº 29.
Crianças de Osasco-SP avançam na leitura e na escrita ao participar do Projeto Almanaque. Tão rica e colorida quanto o produto final foi a aventura de produzi-lo: juntas, as crianças puderam pesquisar, ditar, escrever, revisar, ilustrar e editar a publicação.

Tudo igual, tudo diferente. Revista nº 25.
As turmas do Pré 1 (crianças de 5 anos) participaram da produção de um calendário. Engajaram-se em sua confecção desde a organização dos dias da semana no papel, até a escolha dos temas, frases e imagens, além da cuidadosa produção dos desenhos, brinquedos e/ou modelagens que serviram de ilustração para cada mês.

A arte da gravura na madeira, de Adriana Klisys. Revista nº 22.
A xilogravura, uma arte antiga que possibilitou as primeiras reproduções de imagens e textos, tem muitos seguidores em diferentes regiões do Brasil.

Crianças produzem livros

Nas instituições educativas em que esses professores atuavam, houve um movimento extremamente enriquecedor tanto para eles, quanto para as crianças, pois, a partir de estudos, discussões, oficinas e muita reflexão, o encaminhamento com a leitura literária ganhou um novo olhar: além da leitura e apreciação dos livros, professores e crianças passaram a ser autores. A professora Neuza Maia Kukul, do CMEI Vila Lindoia (Curitiba), conta-nos que, quando iniciou a proposta com as crianças, explicou a elas que tinha um desafio a lhes sugerir: o de se tornarem autoras e ilustradoras de um livro de histórias. Disse-lhes, então, que, para tanto, seria a escriba, ou seja, escreveria as histórias narradas pelas crianças:

“Foi um alvoroço só! As crianças ficaram muito empolgadas e imediatamente compraram a ideia. Elas quiseram começar de imediato; então combinaram como seria e mãos à obra!”. A professora explica que começaram decidindo quais seriam os personagens e a temática da história. Isso definido, passaram à construção do texto. “As crianças ficavam muito eufóricas nos momentos de criação, pois tinham muito a dizer sobre o que conheciam”, conta Neusa. Defendiam suas ideias com propriedade, sendo necessário que a professora mediasse em alguns momentos para que todas fossem ouvidas em seus argumentos. Então, a turma definia, coletivamente, como ficaria aquela parte do texto. Concluído aquele trecho da história, a professora fazia a leitura para a turma, e as crianças aplaudiam, demonstrando muita satisfação pelo que haviam criado. Num constante ir e vir, a professora fazia a revisão do texto com as crianças. E assim foi até o livro ficar pronto, para depois partirem para as ilustrações.

E como ilustrar? As crianças do CMEI Vila Lindoia conversaram muito entre si e com a professora, o que rendeu várias discussões e argumentações, e novamente se lançaram a um desafio: ilustrar utilizando massinha. Não foi nada fácil decidir como ficariam os personagens, quem faria o quê, mas, com muita tranquilidade e sempre ouvindo o que as crianças tinham a dizer, conseguiram chegar a alguns consensos: fariam cena a cena, teriam de se dividir em pequenos grupos e os personagens ficariam iguais em todas as cenas.

E o título? Ahh! Este ficou por último, passando também por um processo de decisão da turma. E foi intitulado: “A Patrulha Salvadora”.

Outros livros ilustrados vieram. Após um trabalho de ampliação de repertório com temáticas escolhidas pelas crianças, elas construíram suas histórias e imergiram nas ilustrações. Com uma gama de possibilidades de riscantes oferecida às crianças, os desenhos foram aparecendo e dando vida aos textos, no livro “Uma Convenção Monstruosa”, por exemplo, com diferentes monstros, seres fantásticos, zumbis e vampiros saídos da imaginação.

E todo esse grande percurso de construção de histórias pelas crianças e professores deu início a uma importante ação: Crianças de Curitiba criando livros. Tal proposta traduz o protagonismo infantil e a produção de cultura pela criança. Nas rodas de leitura que acontecem diariamente, é muito comum as crianças pegarem o livro criado por elas e conversarem sobre ele: “Foi eu que falei isso” ou, ao verem a ilustração, “Foi eu que fiz”, mostrando muita satisfação pelo produto final.

Valorizando os autores-ilustradores

O produto final teve um acabamento cuidadoso, foi impresso colorido e ao final foram apresentados os autores. Cada escola optou, de acordo com suas possibilidades, por uma apresentação diferente: Pequenas fotos individuais de cada criança com uma breve apresentação assim como uma foto de toda a turma para deixar registrado esse processo tão especial.

Posted in Revista Avisa lá #66.