Genecilda dos Santos¹
A escuta paciente do professor possibilita que crianças pequenas aprendam a pensar e desenvolvam inúmeras estratégias enquanto tentam desvendar o sistema de escrita.
Sabemos, e já faz algum tempo, que a escola de Educação Infantil é espaço privilegiado para a promoção de atividades que levem as crianças ao encontro da leitura. O que temos de mais novo nos estudos que tratam da formação de leitores nos leva a considerar, em nossos planejamentos, a motivação para ler, os objetivos da leitura, a função social da leitura, os processos de construção de sentido e as estratégias de leitura, ideias já familiares nos dias de hoje.
Enquanto educadores, o que buscamos compreender e aprimorar constantemente é a compreensão da função social da escrita na promoção de atividades em que seu uso seja significativo, de forma tão funcional que se torne um prazeroso desafio e não uma tarefa impossível para os pequenos.
1Professora da Rede Municipal de Ensino de São José do Rio Preto – SP
O relato a seguir expõe atividades com listas de culinária realizadas no projeto institucional “Alimentação Saudável”, desenvolvido por toda a escola, e pretende demonstrar como elas favorecem a reflexão sobre como se lê.
Planejamento e gestão de atividade
As crianças já estavam, desde o início do ano, envolvidas com o projeto, que visa apresentar e incentivar hábitos alimentares saudáveis mediante ações práticas do dia a dia: construir horta, cardápios, desenvolver pesquisas, conhecer e experimentar diversas receitas. Como professora da turma, aproveitei as oportunidades que o projeto criou para contextualizar eventos de comunicação por escrito, envolvendo as crianças.
A turma é formada por 25 crianças de 4 a 5 anos, algumas das quais nunca haviam frequentado a escola, vindas de famílias simples, de comunidades da periferia da cidade.
A atividade proposta era coletiva, mediada por mim no contexto de produção de uma lista para a compra dos ingredientes necessários para o preparo de uma torta de legumes. Para efeito da atividade culinária, eu poderia simplesmente ter dado a lista de ingredientes. Mas meu propósito era ir além: queria proporcionar às crianças a reflexão sobre como se lê, por meio do levantamento de hipóteses de leitura a partir de pistas claras.
A atividade se deu ao longo dos dias, sendo dividida por etapas e considerando os objetivos didáticos e as necessidades das crianças, pois, como diz Delia Lerner, “Para dar sentido à leitura são necessários projetos que não acabem em um dia”.²
É importante que o professor tenha esses objetivos muito claros e que compreenda que a criança apenas terá condições de fazer inferências se possuir uma referência, um modelo de leitor ao qual possa recorrer e “imitar”.
2 É preciso dar sentido à leitura, de Delia Lerner. Entrevista à revista Nova Escola, São Paulo, n. 195, p. 13-16, set. 2006.
Dia 1: Construção do contexto
Sentei em roda com as crianças e iniciamos a conversa sobre a receita que iríamos experimentar naquela semana. As crianças expuseram seus conhecimentos sobre o alimento principal da receita – abobrinha – e sobre como nos organizaríamos para prepará-la. Após muita conversa, apontei que precisávamos comprar os ingredientes e que eram muitos. As crianças, por familiaridade com o jeito de trabalhar na escola, rapidamente sugeriram uma lista de compras.
Partimos para o cartaz: fui dizendo e escrevendo os ingredientes despretensiosamente, enquanto as crianças observavam letras iniciais, intermediárias, finais etc., fazendo comparações com os próprios nomes ou com outras palavras que já conheciam de memória. Elas permaneceram animadas e atentas. Encerramos esse dia com o levantamento dos ingredientes. E isso foi tudo! Parece pouco, mas trata-se de um procedimento muito significativo, por dar às crianças informações importantes sobre comportamentos do adulto lidando com a escrita, sobre a função social da escrita e sobre como se organiza esse tipo de texto.
Dias 2 e 3: Problematização
O segundo e o terceiro dias se constituíram no que costumo chamar de desconstrução/problematização. No caso dessa atividade, o que fiz foi retirar a lista anterior do campo de visão das crianças e convidá-las a me ajudar a organizar uma nova lista, com os ingredientes em grandes tarjetas divididas em duas partes: os ingredientes necessários para a massa e os próprios para o recheio. Eis que então surgiu o grande problema:
Péricles: Tia, não temos a lista do outro dia!
Como vamos te ajudar a separar?
Eu: Ora! Vamos pensar e tentar descobrir juntos!
Tornou-se perceptível nesse momento que seria uma experiência desafiadora, o que ficou estampado nos olhos e nas expressões apreensivas e curiosas das crianças acerca de como resolveriam o desafio. Estava dado o problema!
A cada lista, eu informei sobre quais palavras estávamos procurando, de forma a delimitar o campo semântico e a direcionar a reflexão das crianças a um grupo específico de palavras. Isso foi importante para que soubessem que não se tratava de uma situação de adivinha ou de apelo à memória. Ao contrário: todos sabiam – porque eu até os ajudei a lembrar – os ingredientes de cada etapa da receita. O desafio era pensar sobre qual, naquele conjunto de palavras, era a escrita convencional de determinado ingrediente.
Repeti também os motivos pelos quais estávamos reunidos na atividade e os combinados para os momentos de construção de palavras.
Parece repetitivo, mas não é. O modo como escolhi sentar em roda, os combinados para que cada um falasse, o lembrete para que pensassem em palavras que já conheciam ou para que consultassem outras fontes disponíveis e cada vez que repeti em voz alta a fala de uma criança que considerei muito construtiva para a turma foram medidas de extrema funcionalidade. Previstas desde o planejamento, são atividades totalmente intencionais, sabendo eu pela prática que proporcionar um momento acolhedor em grupo, no qual todos possam falar e se expressar livremente, muito contribui para o avanço das crianças.
A repetição das falas das crianças em voz alta pelo professor é uma forma delicada e consciente de dizer: Sua opinião é importante, seu pensar é significativo e suas hipóteses são válidas. Muitas crianças, aliás, compreendem melhor quando a explicação parte de outra criança, como se aquela colocação fosse mais plausível simplesmente por ser o pensamento de um igual.
As crianças pensam! E muito!
Durante a construção das listas de ingredientes, eu dizia para a turma quais eram as palavras expostas. Essa leitura não foi na sequência em que as palavras estavam e serviu de apoio para que as crianças pudessem se ater apenas às palavras que estavam ali e não a uma infinidade de palavras que conheciam. Nesses dias, elas fizeram descobertas e apontamentos interessantes:
Eu: Pessoal, o primeiro ingrediente que quero pôr aqui na lista é o ovo. Qual palavra vocês acham que está escrito “ovo”?
Gabriel: Esta! (apontando a tarjeta com a palavra “ovo”)
Eu (com a tarjeta levantada): Pessoal, o Gabriel acha que aqui está escrito “ovo”. Por que você acha que aqui está escrito “ovo”, Gabriel?
Gabriel: Porque começa com “O”.
Todos concordaram, e uma das crianças, indo mais além ainda, declarou que tinha certeza de que era “ovo”, pelo fato de a palavra começar e terminar com “O”. Ela repetiu para si mesma, fazendo uma verificação no som, e confirmou sua resposta.
Estratégias de leitura
“Uma estratégia de leitura é um amplo esquema para obter, avaliar e utilizar informação. Existem estratégias de seleção, de antecipação, de inferência e de verificação.
Estratégias de seleção: permitem que o leitor se atenha aos índices úteis, desprezando os irrelevantes.
Estratégias de antecipação: tornam possível prever o que ainda está por vir, com base em informações explícitas e em suposições.
Estratégias de inferência: permitem captar o que não está dito no texto de forma explícita. A inferência é aquilo que ‘lemos’, mas não está escrito. São adivinhações baseadas tanto em pistas dadas pelo próprio texto como em conhecimentos que o leitor possui.
Estratégias de verificação: tornam possível o controle da eficácia ou não das demais estratégias, permitindo confirmar, ou não, as especulações realizadas. Esse tipo de checagem para confirmar – ou não – a compreensão é inerente à leitura. Utilizamos todas as estratégias de leitura mais ou menos ao mesmo tempo, sem ter consciência disso.”
“Para ensinar a ler”, de Delia Lerner – Caderno da TV Escola, 1999.³
3Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/col_2.pdf
Era um desafio fácil! Fui além! Queria muito mais deles!
Quando pedi para que encontrassem “leite” e uma das crianças apontou “fermento”, não descartei sua escolha; ao contrário, esperei que outra criança se opusesse e confrontei as duas opiniões:
Eu: Agora preciso encontrar o leite para colocar na lista. Qual vocês acham que é “leite”?
Brenda: Esta. (apontando para “fermento”)
Péricles: Esta. (apontando para “leite”)
Eu: A Brenda acha que este é leite, mas o Péricles acha que é este! Por que você acha que este é leite, Brenda?
Brenda: Porque tem o “O”.
Eu (passando o dedo sobre a palavra “fermento” e lendo): Leite!
Péricles: Não, não, tia, é o outro, porque começa com “L” e termina com “E”. Oh… LE-I-TE.
O confronto de hipóteses é fundamental para o avanço das crianças. Péricles já compreendia o valor sonoro das palavras, enquanto Brenda ainda tinha essa questão a resolver. Mesmo Péricles tendo acertado, podendo dar continuidade, pacientemente permaneci questionando-os, pois considerei justo continuar os apontamentos, tendo em vista que havia crianças que ainda precisavam refletir um pouco mais, podendo aproveitar, assim, as ricas contribuições de cada um. Entre essas duas palavras, surgiram levantamentos quanto às letras intermediárias, ao som e ao tamanho de cada uma. Somente após esgotar os questionamentos segui adiante.
Ao final da lista da massa, restaram “farinha” e “sal”. Disse que ali havia essas duas palavras e que eu precisava descobrir qual era “sal”. Esse momento rendeu longas discussões entre as crianças, com hipóteses completamente diferentes.
Enquanto Geovana e Lorena ainda não atentavam ao som das palavras e nomeavam pouquíssimas letras do alfabeto, dizendo que a palavra maior era SAL, outras crianças já sabiam quase com certeza, pelo tamanho, pelo som e por comparação com o nome do amiguinho “Samuel”, que SAL era a palavra menor!
Quando se lida com crianças pequenas, nem sempre o acerto imediato indica uma reflexão. Creio que o pensar é mais importante que o acerto. Poderia ter encerrado a discussão rapidamente, mas me recolhi ao silêncio, fazendo intervenções pontuais e permitindo que as crianças colocassem em jogo todos os seus conhecimentos por muito, muito tempo. Isso porque o principal objetivo dessa proposta não é fazer com que as crianças leiam; a intenção é que elas se arrisquem, que pensem como se lê e que construam boas estratégias para tentar ler mesmo sem saber. O desafio não é resolver a situação; é, sim, tomar consciência sobre como resolver problemas desse tipo toda vez que surgirem. Por isso é tão importante que elas falem em voz alta e que o professor socialize no grupo essas ideias tão preciosas.
Após vários apontamentos, uma criança disse: Tia, se o menor fosse “farinha”, tinha que começar com “F”, então este só pode ser “sal”.
Escuta do professor: exercício de paciência
Ao propor atividades como essa, torna-se imperativa a escuta das falas das crianças. Elas é que darão indícios para que o professor saiba onde e como deve investir.
Proporcionar tempo para a reflexão das crianças é, a meu ver, democratizar o direito delas de pensar e de expor seus pensamentos. É também motivo para favorecer a autoestima, a postura questionadora, a curiosidade e para fazer nascer o desejo de saber aquilo que o outro já sabe. Nesse ponto, a socialização das falas pelo professor é uma ferramenta didática indispensável.
Para as crianças que ainda não compreendem determinados aspectos da escrita, o erro é motivo de reflexão; e o compartilhamento dessas dúvidas põe em questionamento até mesmo as crianças que já solucionaram determinadas questões. Por sua vez, para as crianças que já sabem muito, é a oportunidade de repensarem e de botarem em prática estratégias de verificação.
O contexto de produção
Na entrevista concedida à revista Nova Escola4, Delia Lerner diz que “é preciso dar sentido à leitura: fora da escola, lê-se para aprender a fazer certas coisas ou saber algo sobre um assunto de interesse ou inteirar-se sobre os acontecimentos. Na escola costuma-se ler para aprender, e só. Pode ser que as crianças, sobretudo as que provêm de meios sociais onde não se produzem leitores, aprendam como se faz, mas não para quê. Neste caso, terão dificuldade em ver sentido na leitura”.
Partilho da ideia de que é responsabilidade da escola e do professor proporcionar situações em que ler seja necessário, sempre atribuindo um sentido real, útil e social à leitura.
Acredito que o sucesso dessa atividade está, em sua maioria, relacionado ao fato de que as crianças estão envolvidas com uma situação real, em que a leitura e a escrita das palavras assumem uma função social em um contexto cotidiano e cheio de sentido.
Trata-se não de aprender a ler na Educação Infantil – e isso seria um absurdo por motivos diversos que não tratarei aqui –, mas de seduzir, de atribuir sentido, de estabelecer uma conexão palpável entre o mundo das palavras e a utilidade delas no cotidiano. Trata-se, como no título deste texto, do pensar no universo escrito, sem perder o encanto da descoberta que só a infância tem!
Ah… Já ia me esquecendo de dizer que a torta ficou uma delícia! Mas essa é outra história…