A cultura escrita na Educação Infantil

BEATRIZ GOUVEIA E SILVIA PEREIRA DE CARVALHO¹


ASSUNTO PARA LÁ DE POLÊMICO, É FALAR EM ALFABETIZAÇÃO PARA CRIANÇAS DE QUATRO A CINCO ANOS. ESCOLARIZA, PREJUDICA A INFÂNCIA, OCUPA O ESPAÇO DA BRINCADEIRA, É CONTRA A CULTURA DA INFÂNCIA SÃO AS CRÍTICAS ALIGEIRADAS, QUE JÁ VIRARAM SENSO COMUM. É POSSÍVEL SER DIFERENTE?


O trabalho de formação desenvolvido desde 2013 se preocupou em envolver os diferentes níveis de profissionais: supervisores (equipe técnica da secretaria), diretores, coordenadores pedagógicos e professores das crianças de quatro a cinco anos. Em 2015, o desafio proposto era, sem ocupar todo o espaço das atividades habituais, introduzir uma forma muito diferente de trabalhar com a linguagem que se escreve e com o sistema de escrita de forma significativa com as crianças. A proposta envolvia trabalhar com leitura e escrita e conhecimentos de ciências por meio de um projeto sobre
animais, um dos temas preferidos dos pequenos.


1 Beatriz é Coordenadora de Projetos do Instituto Avisa Lá e Silvia é a Coordenadora Executiva.

Um outro olhar

O objetivo prioritário do projeto de formação era propor aos participantes uma reflexão permanente sobre as interações das crianças com as práticas propostas, de modo que compreendessem cada vez mais as relações de ensino e aprendizagem envolvendo as práticas de leitura e escrita e, sobretudo, a potência das crianças para aprenderem e construírem novos conhecimentos. Se, por um lado, havia o objetivo das professoras redimensionarem o olhar para a potência das crianças, considerando-as mais capazes de se relacionarem com a língua em suas funções comunicativas, por outro, era necessário que a equipe de consultoras do Avisa Lá também se relacionasse com as professoras considerando a sua potência e capacidade, isto é, um funcionamento homólogo, a formação e as atividades para as crianças acontecendo sob o mesmo marco teórico.

O projeto didático é uma prática pedagógica cujo produto final tem um objetivo social real que contextualiza a aprendizagem. Isto é, ele coloca a língua em sua função comunicativa, por isso é a melhor forma de realizar a transposição didática das práticas sociais de leitura e escrita. São planejados numa sequência, de forma que, ao final, se obtenha um “produto”. Num projeto, os objetivos são compartilhados pelo professor e sua turma, desde o início.

O processo de elaborar um produto final, um mural com informações ou coleção de cards, feito pelas crianças, enseja inúmeras aprendizagens, pois há todo um processo de construção de conhecimento que a criança deve passar para chegar ao produto final.

No início, houve certa resistência por parte do grupo de professores e coordenadores: “o trabalho com projeto é uma prática muito antiga”, “as crianças são muito pequenas para este tipo de trabalho”, “vocês estão escolarizando a Educação Infantil”, “como temos que seguir as atividades da apostila, não será possível achar tempo para este projeto”. E, assim, as consultoras do Avisa Lá foram ouvindo e transformando as queixas em problemas da formação que deveriam ser enfrentados.

Nos encontros de formação dos professores (ao todo 16 no ano, com duas horas de duração) foram sendo desvendadas as concepções arraigadas que impediam as mudanças, e outro olhar paras as crianças foi sendo construído por meio de novas possibilidades de aprendizagem e de ensino. É bom lembrar que não houve imposição em relação ao projeto, apenas um convite à participação, com boa adesão por parte do grupo, a despeito das ressalvas mencionadas acima.

Concepções enfrentadas

Embora já tenham se passado muitos anos desde a publicação da Psicogênese da língua escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, e o fato de que a maioria das professoras a tenha estudado e participado de formações a respeito, ainda não é de todo compreendida e considerada como deveria ser nas escolas.

Segundo essa concepção, as crianças constroem, simultaneamente, conhecimento sobre o sistema de escrita e sobre a linguagem escrita. O ensino da língua mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à aprendizagem da linguagem que se usa para escrever.

Nesse contexto, defendemos a liberação da escrita para que a criança possa ensaiar suas hipóteses, escrever de próprio punho e produzir socialmente suas escritas. Outra questão observada diz respeito à concepção dos professores em relação ao erro: “as crianças vão fixar o erro ortográfico”, “as famílias vão reclamar que estamos ensinando errado”, “ninguém vai entender o que as crianças quiseram dizer”. Portanto, discutir o erro como parte do processo de aprendizagem da escrita foi objeto da formação. A Educação Infantil é um período privilegiado para que as crianças se aventurem pela escrita, escrevendo segundo suas hipóteses, pensando sobre as relações sonoras, acessando o conhecimento que dispõem para enfrentar o desafio. Elas aprendem sobre a escrita e aprendem que podem se arriscar. Acreditar na criança pequena faz toda a diferença na tarefa de ensinar.

Durante o processo de formação foi fundamental promover bons contextos de reflexão sobre a capacidade de as crianças compreenderem a função comunicativa da escrita, para ocuparem a posição de leitores antes de saberem ler convencionalmente.

Colocar as crianças nessas situações foi outro desafio para o qual a estratégia de ancorar a formação em um projeto didático se mostrou um excelente caminho.

A concepção de projeto didático

Propor a reflexão sobre a concepção de projeto didático envolvida na proposta foi absolutamente necessária em função dos questionamentos apresentados: “os projetos ocupam muito tempo didático, não temos esse tempo”, “como assim um projeto igual para toda a rede?”, “como fica a questão da autoria?”, “o projeto vai durar um semestre todo, as crianças vão se cansar”

Sabíamos que quando as professoras começassem a desenvolver o projeto muitas questões seriam respondidas pela própria experiência das propostas e porque há uma contextualização da aprendizagem de forma significativa, e o propósito social mobilizaria as crianças, deixando aflorar seus conhecimentos de forma surpreendente.

Entendemos que são várias as vantagens do projeto didático, entre elas:

♦ contextualiza as propostas de ensino;
♦ aproxima a versão escolar da versão social do conhecimento;
♦ compreende o aluno como protagonista da própria aprendizagem;
♦ propõe uma elaboração com as crianças de propostas a serem implementadas na sala de aula;
♦ articula dois propósitos: o propósito social e o propósito didático.

Foi necessário analisar vários projetos bem-sucedidos, assim como assistir aos vídeos de uma consultora da equipe atuando com um grupo de crianças segundo o que estava sendo refletido.

Conteúdos em jogo

Outro conteúdo da formação foram as propostas com livros informativos, nos quais as próprias crianças buscariam informações. Antes as professoras eram as únicas informantes, e as crianças não tinham acesso direto a esse tipo de livro. Foi necessário que as escolas da rede adquirissem títulos específicos.

As situações didáticas trabalhadas no projeto sobre animais:

♦ Leitura exploratória de materiais informativos As crianças, ao interagirem com diferentes livros para selecionar materiais de pesquisa, confrontam suas primeiras antecipações a respeito do conteúdo e da forma como são tratadas as informações nos livros, e começam a pensar sobre a maneira de operar com eles. Nessas situações, os alunos distinguem textos ficcionais dos que apresentam informação e podem, por exemplo, comparar as ilustrações e imagens mais realistas; observar a presença de esquemas, gráficos e fotografias; perceber a organização do texto como o título e o subtítulo; entre outros.

Leitura de índice
♦ Quando as crianças buscam nos índices o nome do animal estudado podem ter no mínimo dois tipos de aprendizagens:

1. Reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita: qual letra começa, qual termina, a ordem e a quantidade de letras (utilização de critérios quantitativos e qualitativos).

2. Reflexão sobre a organização de um portador (a enciclopédia) e nos recursos utilizados para encontrar algo (índice alfabético ou temático; sumário e índice).

♦ Leitura pelo professor para ampliar informações. Assegura ao aluno que ainda não aprendeu a ler sozinho o acesso à diversidade de textos.

♦ Escrita de diagrama
Escrita de partes dos animais estudados. O objetivo é promover uma reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita em um contexto em que a escrita tem função comunicativa.

♦ Escrita colaborativa
As crianças escrevem as mesmas palavras contribuindo com suas reflexões atuais sobre a escrita. É uma situação didática extremamente potente para colocar em discussão as diferentes escritas produzidas pelas crianças. O objetivo da atividade não é terminar com uma escrita alfabética, mas mediar as várias ideias que as crianças têm sobre a escrita e realizar intervenções de modo que as crianças se sintam desafiadas e saiam com bons problemas para pensar.

♦Produção de texto ditado ao professor
A produção de textos, quando bem planejada, cria todas as condições para que os alunos produzam textos de diversos tipos mesmo antes de escreverem convencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando ele dita ao professor. Embora a grafia não seja propriamente do aluno, a elaboração textual, sim. Por isso dizemos que há muito o quê aprender nesse tipo de situação que envolve não apenas a formulação do texto, mas também o processo de revisão.

Resultados finais

Essa ação formativa teve um efeito demonstrativo muito importante para valorizar a competência infantil ao desenvolver suas aprendizagens. O papel do professor, seu planejamento e sua intencionalidade pedagógica ficam evidentes na descrição de todos os conteúdos e procedimentos envolvidos. Embora não sejam objeto desse artigo, as demais ações dos profissionais da rede pública foram necessárias para efetivar as aprendizagens e o ensino. Com a palavra os professores da rede municipal:

Professoras de crianças de quatro anos:

A princípio, eu estava muito insegura. Achava que não ia dar certo com as crianças de quatro anos. Fazer escrita em duplas? Não ia dar, achava que as crianças não iam ouvir o colega, por serem muito egocêntricas. Mas eu me surpreendi muito. Elas aceitavam a opinião, ouviam, aprendiam.
Eliane

Nós levamos coleções de cards oficiais e falamos que ali tinham informações importantes. Na 2ª ou 3ª atividade, quando começamos a manusear os materiais com eles, eu já vi que seria possível! Claro que tinha barulho na hora da pesquisa, mas um barulho bom, da comunicação entre eles, animados.
Marta

O interessante é que tanto os momentos de escrita individual quanto coletiva, em duplas, funcionaram no grupo 4. Eu achava que não teriam tantas escritas nesse grupo. Mas acho que subestimei mesmo. Eles avançaram muito!
Com esse projeto, a gente se permitiu dar tempo para as crianças escreverem, isso não acontecia. Essa questão, de escrever desse jeito, com as crianças de quatro anos, foi uma novidade. A gente achava mesmo que não seria possível.
Ana Paula

Eu aprendi muito a pensar nas intervenções. Isso é importante. Quando consideramos as fases da escrita da criança, o que a criança sabe, tudo fica mais claro, a gente também planeja melhor o que pode perguntar para ela.
Debora

O que mudou foi o trabalho com enciclopédias. A gente abriu a porta do armário do professor e permitiu que o texto informativo fosse de todos. Antes, só o professor tinha acesso ao armário de pesquisa. A gente nem considerava entregar na mão das crianças. Agora, todos os alunos manuseiam as enciclopédias.
Também mudou a nossa fonte. Antes a gente infantilizava demais. Apelava para filmes infantis, tipo o Rei Leão para estudar os leões. Agora, não. Vamos aos livros informativos
Célia Regina

O texto coletivo, a gente já fazia. Parecia que nem seria novidade. Mas mudou o jeito de trabalhar com o texto coletivo.
Agora a gente enxerga de outra forma. A gente dá um suporte muito maior para as crianças. Elas leram os livros, os textos, sabem o que vão escrever. Hoje, elas têm repertório de fato para a escrita do texto. Elas são capazes! A gente não acreditava nisso. A gente se surpreendeu!
Tatiana

Avaliação da formação no final do processo:

DUPLA ESCRITA PELAS CRIANÇAS

O que as crianças aprenderam no projeto?
“As crianças aprenderam a ouvir, compartilhar, aceitar a opinião do outro e avançaram na escrita.

O que aprendi com relação ao planejamento e às intervenções nessas situações didáticas propostas?
Aprendi a retomar as práticas diárias de intervenção, pensar no agrupamento para que sejam produtivo, fazer intervenção pontual para que as crianças avancem.

O que pretendo incorporar na minha prática?
Fazer mais atividades em grupos e em duplas, exploração e diversidade de livros.
Juliana, professora de crianças de cinco anos

LEITURA EXPLORATÓRIA
Sueli da Silva Avila, Profª do G5
EMEB Profª Judith Arruda Carreta.

1. Nestas imagens as crianças aprenderam:
♦ Encontrar e marcar o local em que estava o animal que procuravam;
♦ Compartilhar as informações;
♦ Pesquisar;
♦ Cuidar dos livros que estavam utilizando;
♦ Trabalhar em duplas;

2. Eu aprendi que:
♦ É necessário ter material bom e em grande quantidade para que eles possam realizar as pesquisas;
♦ Fazer boas intervenções para que eles possam avançar na leitura, fazendo com que reflitam sobre o que está escrito;
♦ Fazer a mesma proposta muitas vezes;
♦ Mostrar clareza na atividade e qual o objetivo dela.

3. Pretendo incorporar após ter estudado esse projeto:
♦ Duplas colaborativas, eu já trabalhava, mas não muitas vezes, depois do projeto percebo que é essencial este trabalho também em outras áreas;
♦ Sempre esclarecer para a criança qual o objetivo da atividade;
♦ Oferecer para as crianças diferentes tipos de texto de boa qualidade;
♦ Introduzir diferentes textos ditados ao professor, não somente como o texto de memória como fazemos no material apostilado.

Posted in Revista Avisa lá #65.