Criar contextos para investigar

ALESSANDRA ANCONA DE FARIA E CAROLINA CORONADO HADAD¹


A CONSTRUÇÃO DE UMA POSTURA INVESTIGATIVA SE DÁ A PARTIR DA CURIOSIDADE INFANTIL E DOS OBJETIVOS DE ENSINO E APRENDIZAGEM DA ESCOLA


O projeto Animais marinhos, desenvolvido no 2º ano², possibilitou o trabalho prático com medidas de comprimento, baseado em textos informativos e pesquisa sobre animais. Várias áreas do conhecimento contribuíram para isso, ampliando, assim, a possibilidade de relacionar o conhecimento matemático e o das demais áreas, em uma proposta que explorou a investigação dos alunos com vistas a mais aprendizado.


1 Alessandra Ancona de Faria tem pós-doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Artes pela Universidade de São Paulo (USP). Investiga a formação de educadores relacionada ao teatro. É formadora de professores pelo Instituto Avisa Lá. Carolina Coronado Hadad é pedagoga, especialista em Alfabetização, professora do 2o ano do Colégio Paulo Freire, em Jundiaí (SP). 2 Este projeto foi realizado no Colégio Paulo Freire, em Jundiaí (SP) , situado em uma grande área verde, o que permite o convívio com pequenos animais, estabelecendo-se a possibilidade de observação e de comparações entre estes e os animais marinhos.

Os textos na pesquisa

A pesquisa sobre os animais incluiu um trabalho com textos informativos, cuja linguagem deve ser clara, direta e objetiva, explicitando conceitos concretos e reais. Pensar o que escrever, por que escrever e para quem escrever, bem como o portador em que todas essas informações vão circular, faz parte do trabalho com esse tipo de texto. Diversos textos passaram a fazer parte do cotidiano da sala de aula. Isso possibilitou às crianças ampliarem conhecimentos e repertório, apropriando-se, assim, da linguagem específica de cada texto, estabelecendo um vínculo prazeroso com a leitura e a escrita, vivenciando situações reais de escrita e elaborando um produto final para um público específico.

Dessa forma, o projeto de produção do Livro dos animais marinhos revelou para os pequenos o caminho relacionado à busca de informações e a escrita desse tipo de texto em uma situação real de pesquisa, de modo que as crianças vivenciaram os “fazeres do pesquisador”. Feitos os desafios, eles experimentaram jeitos diversos de registrar dados importantes, analisaram a praticidade e a eficiência de cada registro e, consequentemente, ampliaram seus conhecimentos sobre os textos informativos e os animais em questão, sem deixar de lado as aprendizagens matemáticas.

O que eu preciso saber para localizar informações?

Ler, ouvir e buscar informações em textos não é uma tarefa simples nesta etapa da escolaridade. Por essa razão, iniciamos o estudo a partir de perguntas elaboradas pelas crianças sobre o tema. A procura pelas possíveis respostas tornou-se o foco do estudo, o que nos fez deixar de lado tudo o que não estivesse estritamente relacionado a isso. De início, levantamos o conhecimento prévio das crianças com relação aos animais que vivem no mar: quais são eles, os tamanhos, o que comem, como vivem, se sabiam diferenciá-los dos animais que vivem nos rios etc.

Em seguida, compartilhamos os objetivos do projeto e seu produto final: o Livro dos animais marinhos, que seria doado à biblioteca da escola.

Disponibilizamos, então, materiais produzidos em anos anteriores e alguns portadores de texto sobre o assunto, como enciclopédias, livros de pesquisa, revistas científicas, CD-ROMs, livros de histórias, CDs com músicas relativas a animais, livros de poemas, para que pudessem verificar quais materiais realmente os ajudariam a encontrar as informações necessárias sobre os animais.

Definir os aspectos a serem observados é um procedimento comum em pesquisa, já que a complexidade dos temas pode fazer com que se “atire para todos os lados”, sem encontrar nenhuma resposta. Nesse sentido, após uma primeira aproximação ao tema, definimos os enfoques que seriam adotados.

A educadora argentina Delia Lerner, no trecho a seguir, sugere diferentes ações para encontrar respostas em um processo de pesquisa com alunos:

Quando se recorre a uma enciclopédia ou a outros livros para buscar respostas para as perguntas que as crianças se fazem em relação a um tema sobre o qual estão trabalhando, o professor recorrerá ao índice, lerá os diferentes títulos que figuram nele e discutirá com as crianças sobre em qual deles será possível encontrar a informação que se busca;
uma vez localizado o capítulo em questão, serão localizados os subtítulos, o professor os lerá (mostrando-os), será escolhido aquele que pareça ter relação com a pergunta formulada, o professor explorará rapidamente essa parte do texto (mostrando) até localizar a informação, depois a lerá, analisando com os alunos em que medida responde à inquietação sugerida…³.

Sair da escola: a pesquisa pelo mundo

Com o intuito de ilustrar e de ampliar o repertório das crianças sobre o assunto, visitamos o Aquário de São Paulo, onde os pequenos puderam ver de perto alguns animais que vivem no mar e outros de água doce. O fato de buscar informações sobre os temas pesquisados em espaços variados possibilitou às crianças a compreensão de que o objeto de estudo pode ser investigado por diferentes pessoas, é um tema relevante e que está inserido na nossa sociedade. Essa contextualização permitiu a compreensão de outros sentidos à pesquisa, colocando a todos como partícipes da possibilidade de conhecer e
de trocar descobertas.

A visita possibilitou o contato com fichas técnicas dos bichos, fazendo com que as crianças percebessem que existe uma forma breve e simples de divulgar informações sobre os animais. As crianças também puderam verificar o tamanho de alguns animais, antes julgados bem menores ou maiores do que realmente eram.


3 Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Delia Lerner. Porto Alegre: Artmed, 2002, p. 96.

Elaboramos então uma lista de animais marinhos que conhecíamos e com base em pesquisas realizadas com os pais, funcionários e alunos da escola. Só então passamos a escolher os animais que fariam parte da nossa pesquisa.

As duplas de trabalho já estavam definidas, e a ideia inicial seria a de sugerir um animal para cada dupla, para que a pesquisa fosse desenvolvida em parceria. Entretanto, devido ao envolvimento e à empolgação das crianças, tivemos de escolher dois animais para cada dupla. Com isso, cada um da dupla foi auxiliando o outro em seus registros. O trabalho em parceria promove a elaboração conjunta e a possibilidade de diálogo sobre dúvidas e conquistas.

A essa altura, solicitamos novamente materiais aos pais e à biblioteca da escola, agora com vistas aos animais escolhidos, e retiramos do nosso acervo os materiais que em nada contribuiriam nessa etapa da pesquisa. Incluir os pais na pesquisa amplia as possibilidades de compartilhamento com os familiares do que é feito na escola, além de divulgar as conquistas das crianças.


4 Beluga ou baleia-branca (Delphinapterus leucas) é um mamífero cetáceo da família Monodontidae. O seu parente mais próximo, no grupo dos cetáceos, é o narval. A baleia-branca habita as águas frias em torno do círculo polar ártico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Baleia-branca

Que animais são esses?

Definidos os animais e os novos materiais para a pesquisa, fizemos um levantamento das perguntas a serem respondidas ao longo do estudo. Diversas questões interessantes surgiram. Por exemplo:

O polvo não se atrapalhava para nadar com tantos tentáculos? É verdade que o macho do cavalo marinho ficava “grávido”? A estrela do mar se desenvolve em outras estrelas do mar depois de dividida? As belugas4 são mesmo mansinhas? É verdade que a baleia-azul é do tamanho de 10 elefantes juntos?

Classificamos, então, as perguntas de acordo com os blocos temáticos que apareceriam no texto, a serem produzidos para o livro: peso, tamanho, alimentação, reprodução, habitat, tempo de vida. No bloco das curiosidades ficariam todas as informações mais interessantes e diferentes sobre cada animal.

Passamos a explorar os materiais disponíveis com vistas a descobrir as informações necessárias. Várias informações precisaram ser pesquisadas na internet, e fizemos isso em classe, caso a caso, cuidando para encontrar informações em sites confiáveis.

Uma grande tabela foi afixada no mural da classe, para que pudessem registrar ali as informações sobre os blocos temáticos. As curiosidades eram registradas no caderno de projetos individuais dos alunos, em virtude da quantidade maior de informações contidas nesse item. Nas aulas de Artes, por sua vez, as crianças pesquisavam imagens dos animais selecionados e produziam ilustrações que deveriam ser muito próximas das imagens reais, já que serviriam de apoio para a obtenção de informações. Ao longo da pesquisa, fez-se necessário observar junto aos alunos que desenhos informativos cumprem uma função diferente quando comparados a uma produção artística e, portanto, precisariam ser fiéis à informação dada, enriquecidos de detalhes, pintados com as cores adequadas. Sendo assim, nessa etapa, os desenhos foram revisados da mesma forma que os textos. A escolha por fazer desenhos capazes de veicular as características dos animais não excluiu a sua qualidade artística, já que foram mantidas as possibilidades de exploração dos traços e do movimento quando a tinta foi utilizada.

Quando a tabela do mural ficou completa e as curiosidades mais interessantes, registradas nos cadernos, começamos a revisar o texto escrito, lembrando sempre das fichas informativas vistas na visita ao Aquário. Coletivamente, discutimos os aspectos discursivos dos textos, compartilhando, sugerindo, opinando sobre maneiras mais adequadas de apresentar as informações de forma que o texto cumprisse sua função informativa.

Em outro momento, foi realizada a revisão pelos aspectos notacionais, momento em que as crianças realizaram leituras atentas das informações contidas no mural e nos cadernos, sugerindo modificações nos textos com base no conhecimento que tinham. Surgiu também a preocupação de utilizar nomenclatura apropriada para as unidades de medida, estabelecendo relações entre medidas maiores e menores: quantos centímetros cabem em um metro, quantos gramas
cabem em um quilo etc.

Cada dupla, em trabalho direto com a professora, deu continuidade às observações pelos aspectos notacionais e discursivos, procurando fazer com que percebessem questões não observadas nas situações coletivas anteriores.

Medidas de comprimento

Garantido o objetivo da pesquisa, e de posse das informações sobre as medidas dos animais, os alunos passaram para outro objetivo do projeto: o trabalho com as medidas de comprimento. Começamos a manusear diversos instrumentos de medida: fita métrica, trena, régua, para que medissem o animal escolhido, tirando a medida no barbante e verificando o tamanho real do animal (essa medida no barbante ficou exposta na apresentação e posteriormente no livro). Antes, manusearam os materiais, medindo tudo aquilo que havia despertado a curiosidade deles: as próprias crianças, as mesas, os materiais escolares, o pátio, os brinquedos, as distâncias entre um local e outro etc. Quando já estavam bem familiarizados com os instrumentos de medida e com os conceitos de milímetro, centímetro e metro, passamos a verificar as medidas dos animais.

As crianças verificavam a medida total do animal, observavam como poderiam transportar essa medida para a fita métrica, chegando ao tamanho real. Concluíram que, ao tirarem a medida dos animais maiores, de metro em metro, chegariam às medidas finais. Com os animais menores em relação ao tamanho da fita métrica, precisariam apenas contar os centímetros para encontrar o tamanho real.

O encantamento e a surpresa das crianças eram evidentes. Mal podiam acreditar que animais conhecidos apenas em livros pudessem ser tão grandes ou tão pequenos. O espanto dos pequenos diante da medida interminável da baleia-azul (por volta de 35 metros), depois de estenderem aquele imenso barbante no pátio da escola e comprovarem que se tratava do maior animal existente no planeta, foi contagiante.

As crianças brincaram e se divertiram muito com essas “medidas reais”. Esticaram e enrolaram os barbantes por dias inteiros, “encaixando” os animais uns dentro dos outros, verificando quantos polvos cabiam na baleia-azul ou quantos peixes-palhaço cabiam no tamanho de um pinguim, e, até mesmo, verificando quantos deles eram necessários para chegar ao tamanho desses gigantes, como o tubarão-branco e o tubarão-tigre, realizando inúmeros experimentos e várias tentativas para descobrir sempre mais.


As atividades que relacionam a aquisição de um novo saber com a vivência das crianças são fundamentais para que o novo dialogue com o já conhecido, podendo encontrar espaço de ressonância, passando, assim, a fazer sentido e sendo realmente aprendido. O professor Ivor Goodson fala da importância de relacionarmos as escolhas curriculares com a história de vida dos alunos, permitindo que os saberes se relacionem com as vivências do grupo de alunos.

[…] ver a aprendizagem como algo ligado à história de vida é entender que ela está situada em um contexto, e que também tem história – tanto em termos de histórias de vida dos indivíduos e histórias e trajetórias das instituições que oferecem oportunidades formais de aprendizagem, como de histórias de comunidades e situações em que a aprendizagem informal se desenvolve.

Currículo, narrativa e o futuro social, de Ivor Goodson: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782007000200005

O Livro dos animais marinhos

Por fim, organizamos todas as informações em um grande livro. Com as ilustrações prontas e a revisão passada a limpo com o maior capricho pelas próprias crianças, montamos o Livro dos animais marinhos, deixando saquinhos vazios à espera das medidas nos barbantes. No dia da reunião de pais, apresentamos o livro aos familiares, com todos os barbantes menores nas paredes e os maiores pendurados nas luminárias da classe, para que as pessoas pudessem esticá-los e verificar, se espantar, se encantar, assim como nós, ao perceberem que, de certa forma, podemos nos “aproximar” um pouco desses seres gigantes e pequeninos que povoam os mares do planeta.

Todos ficaram encantados com a experiência. As crianças, por sua vez, fazendo uso daqueles barbantes, esticando-os diariamente, medindo tudo e fazendo comparações incansavelmente. Na apresentação aos pais, a ansiedade de mostrar as descobertas envolveu a todos, que não perderam a oportunidade de experimentar também, e se surpreender com tamanhos tão incríveis.

Posted in Revista Avisa lá #62.