A arte fora do museu

CAROLINA CORONATO BORTOLETTO¹


PROJETO SOBRE ARTE URBANA LEVA CRIANÇAS E FAMILIARES A INTERAGIREM COM O ESPAÇO CRIATIVO DA CIDADE


C1: Picharam a parede do meu avô, ele teve que mandar pintar tudo de novo!
C2: Mas o que eles pintaram?
C1: Uma coisa bem feia com um monte de rabiscos e umas letras.
C2: Nossa, que chato, podiam ter feito uma pintura bonita, igual aquelas que eu já vi em uns muros perto da minha casa.

A partir dessa conversa espontânea entre as crianças sobre um acontecimento do fim de semana, nasceu o projeto Arte urbana2 do T5D3.

O projeto foi iniciado em agosto e teve como objetivo possibilitar aos pequenos:

perceber a arte urbana como Arte;

♦ perceber a arte urbana como Arte;
♦ refletir sobre as manifestações artísticas em espaços não convencionais;
♦ aproximar-se do conceito de arte urbana;
♦ experimentar o caráter poético e criativo da Arte;
♦ ampliar o repertório sobre artistas urbanos conhecidos;
♦ aprender novas técnicas artísticas específicas da arte urbana.

Entre os diversos caminhos que poderiam ser seguidos na temática da arte urbana, escolhi o grafite como foco do estudo, por ser um tipo de arte bastante próxima às crianças no que diz respeito à vivacidade e por despertar nelas enorme curiosidade e motivação.


1 Professora da Escola Santi, na cidade de São Paulo, formada em Pedagogia em 2010 pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Realiza com frequência cursos de formação em Arte em galerias e museus; atualmente deu início ao curso de Pós-graduação “A Arte de Ensinar Arte: Expressões Singulares” no Instituto Singularidades, em São Paulo (SP).
2 A Escola Santi trabalha com projetos e sequências didáticas fi xas por série. Neste caso, o projeto Arte urbana se deu a partir do interesse do grupo e, por isso, foi desenvolvido em 2014, mesmo não sendo um projeto permanente da série.
3 Grupo de crianças de cinco anos.

Grafite: grande canal de comunicação, sem conexão com fibra ótica ou cabo elétrico, mas conectado diretamente com a cidade, com o público, com o aqui e agora. O grafite está na cidade, no espaço público, não tem proprietário nem vigia. Na carona dos grafites há sempre os rabiscos aleatórios, as mensagens de amor, as pichações políticas e os anúncios publicitários. Os grafites criados nas cidades levaram o ocidente a presenciar pública e anonimamente o questionamento de muitos de seus valores estabelecidos, entre eles o da ocupação dos espaços da cidade e o da apresentação e valoração da
arte. Se uma nova forma de política emerge desse contexto com ela uma nova forma de comunicação e de arte.

Celia Maria Antonacci Ramos, doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Em uma roda de conversa, apreciamos algumas imagens de diferentes manifestações artísticas presentes na cidade (pichações, grafite, entre outras). A escolha das imagens teve como critério trazer manifestações artísticas com aspectos diversos para que, assim, fosse contemplado esse caráter de pluralidade da arte urbana. No momento de levantamento dos conhecimentos prévios do grupo sobre o assunto, fui surpreendida pela profundidade de reflexões que surgiram em torno do tema tratado.

P: Alguém já viu isso em algum lugar na cidade? (imagem de pichação em um muro)
C1: Eu já vi muito! É uma pichação! É quando uma pessoa pega uma tinta spray e faz um desenho na parede dos outros. Eu já vi isso em vários lugares.
C2: Quando eu tava indo pro meu clube, eu passei lá e aí tinha um monte de polícia em volta de um pedaço de parede branca, porque tinha quatro moços pichando a parede de uma mansão enorme. Aí a polícia prendeu eles, porque não pode fazer isso em uma mansão.
P: Por que será que a polícia estava presente em mais de um entre os casos que vocês estão contando? 
C3: Eu sei! É porque é feio pintar na parede dos outros, tem que pedir.
C4: É, se a pessoa for contratada pra ir pintar a parede, aí pode. Se ela não for, aí tem que obedecer a lei.
C1: Tipo o Nivaldo, ele foi contratado pelo meu pai, aí ele pode pintar na parede.
P: E se essa parede não for de uma pessoa específica e sim da cidade?
C4: Aí tudo bem, porque a cidade não tem dono.

Nessa conversa inicial foi possível perceber o quanto as crianças já estavam refletindo e estabelecendo complexas relações sobre temas importantes como o uso do espaço público, o pertencimento das pessoas à cidade e o caráter transgressor da arte urbana ao se referirem sobre o proibido e o autorizado.

Percebendo a cidade

Dando continuidade ao estudo, as crianças receberam um desafio como lição de casa: realizar um registro fotográfico de uma arte urbana que encontrassem no próprio trajeto durante uma semana. Após esse prazo, os registros foram compartilhados em classe, comparando-os e justificando escolhas. O envolvimento do grupo possibilitou às crianças observarem atentamente as características dos locais por onde passavam todos os dias, percebendo o seu bairro e a cidade com um novo olhar.

Após a socialização dos registros, as crianças foram apresentadas a um site colaborativo muito interessante chamado Arte fora do museu, o qual mapeia a arte urbana em algumas cidades. Nele é possível cadastrar registros fotográficos de grafites encontrados nas cidades cadastradas feitos por qualquer pessoa, com informações sobre o local, os artistas e a obra registrada. As famílias e as crianças foram convidadas a cadastrar os registros feitos e, dessa maneira, contribuir para esse processo de mapeamento da arte na cidade. O envolvimento foi geral.

Houve um feliz acaso nesse momento, quando uma das famílias disse que conhecia a pessoa responsável pela criação do site e que ela se dispôs a enviar um breve relato dos motivos que o levaram a desenvolver esse projeto. As crianças ficaram encantadas com a notícia e em poder conhecer mais sobre tal experiência.

A cidade como suporte para os artistas

Dando sequência ao projeto, puderam apreciar e conhecer o trabalho de alguns importantes grafiteiros da atualidade como Eduardo Kobra, Nina, Nunca, Crânio, OSGEMEOS e Banksy. A cada apreciação de obras as crianças iam sendo apresentadas a diversas técnicas de arte urbana: a função do desenho como planejamento, o traçado com fitas delimitando o espaço entre as cores, o uso do estêncil e a pintura com tinta spray. Dessa maneira, puderam se aprofundar nas características do trabalho de cada artista estudado, estabelecendo assim relações entre eles.

Esse aprofundamento se deu principalmente na experimentação pelas crianças do uso dessas técnicas e da criação de obras próprias. A cada apreciação e discussão sobre a obra dos artistas, diferentes propostas e materiais foram oferecidos e vivenciados pelo grupo.

As propostas práticas foram recebidas pelas crianças com muito interesse e empolgação. Elas puderam, por essas vivências, se colocar no lugar do artista estudado ao aprenderem sobre suas técnicas e características de produção. O processo possibilitou também aos pequenos o estabelecimento de relações entre os artistas ao compararem suas semelhanças e diferenças. As crianças, nesse momento, passaram a declarar suas preferências quanto aos artistas e, ao apreciarem uma obra, já sabiam dizer quem a havia produzido, isso porque já conheciam as principais características que marcavam os vários trabalhos.

Eduardo Kobra: as linhas e cores no grafite

O paulistano Eduardo Kobra (1976- ), começou os primeiros trabalhos em 1987, com a segunda geração do grafite, sob a influência do hip-hop. Inquieto e curioso, logo se aprimoraram os traços e, assim, criando sua forma de expressão. Suas criações são ricas em detalhes, que mesclam realidade e certo transformismo grafiteiro. “Procuro no projeto Muro das memórias mostrar imagens históricas com uma leitura contemporânea”, afirma.

Embora nunca tenha tido contato pessoal, um de seus principais mestres atuais é o estadunidense Eric Grohe, artista plástico que faz da sua arte um meio de transformação. São murais que confundem os olhos de quem os observa, reduzindo a nada a diferença entre escultura e pintura.

Kobra desenvolve obras que misturam o traço do grafite rico em sombra, luz e brilho. O resultado são murais tridimensionais que permitem ao público interagir com a obra. A ideia é estabelecer uma comparação entre o ar romântico e o clima de nostalgia com a constante agitação de hoje. Além de inúmeros trabalhos em São Paulo e em cidades do interior, Kobra produziu murais em Brasília, Rio de Janeiro, Belém do Pará e Minas Gerais.

O muralista e artista plástico iniciou em 14 de janeiro de 2013 uma grande pintura na parede lateral do edifício Ragi, na Praça Oswaldo Cruz (número 124), no início da Avenida Paulista, na cidade de São Paulo, em homenagem ao arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). A obra tem 52 m de altura por 16 m de largura e nela aparecem a Pampulha, em Belo Horizonte (MG); o Edifício Copan, em São Paulo (SP); o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba (PR) e o Palácio do Planalto, em Brasília. Todos os dias, Kobra chegava ao local às 7h30 e trabalhava até às 20h, ao lado de outros quatro artistas do Studio Kobra. A obra foi concluída em 24 de janeiro de 2014 e entregue no aniversário da cidade, dia 25.

Banksy: o uso e a produção do estêncil

Grafitter, pintor, ativista político e diretor de cinema britânico, é conhecido mundialmente por espalhar obras de arte irreverentes nas ruas, que modificaram concepções, incitaram à reflexão e alteraram a forma como os graffitis são vistos hoje. O artista dá cor às ruas com graffitis de diferentes estilos, instalações, stickers e outros gêneros de projetos artísticos, que têm o propósito de elaborar duras e sarcásticas críticas à política, à sociedade em geral e à guerra do mundo contemporâneo. Apesar do seu trabalho ter começado em Bristol, no interior da Inglaterra, as suas obras difundem-se pelos muros de todo o mundo: da Europa aos Estados Unidos da América, de Londres a Nova Iorque, de Los Angeles a Israel. Este fato, aliado ao anonimato do artista, faz com que a sua descrição seja a sua própria localização: “De Banksy [1974- ], importa menos a pessoalidade; sua descrição é sua localização; ele é sua localidade.” (José Schneedorf)

Nunca e OSGEMEOS: o desenho como interferência

Nunca é um artista brasileiro grafiteiro que usa uma técnica de grafite para criar imagens que confrontam o Brasil urbano moderno com o seu passado. Você deve estar se perguntando o motivo que levou Francisco a adotar o nome artístico Nunca. Ele explica que o lema de qualquer artista é dizer nunca às limitações culturais e mentais. É com esse pensamento que o artista já é um sucesso em toda a Europa e no Brasil. Com uma característica de desenho improvisado, sem muitos cálculos e proporções, Nunca tem obras expostas em várias galerias e em ruas europeias.

OSGEMEOS (1974- ), Gustavo e Otávio Pandolfo, sempre trabalharam juntos. Quando crianças, nas ruas do tradicional bairro do Cambuci (SP), desenvolveram um modo distinto de brincar e de se comunicar por meio da arte. Com o apoio da família, e a chegada da cultura hip-hop no Brasil nos anos 1980, OSGEMEOS encontraram uma conexão direta com seu universo mágico e dinâmico e um modo de se comunicar com o público. Exploravam com dedicação e cuidado as diversas técnicas de pintura, desenho e escultura, e tinham as ruas como o lugar de estudo.

Grafite do 9º ano: trocando experiências…

Na Escola Santi, os alunos do 9º ano realizam com a professora de Artes o planejamento e a produção de um grafite em uma parede da escola, tendo como objetivo deixar uma marca, como um ritual de passagem, já que esta é a última série da escola.

Pensando em integrar esse trabalho ao estudo realizado pelas crianças do T5, promovemos uma conversa entre os alunos para que pudessem compartilhar suas experiências e esclarecer algumas dúvidas sobre o processo de produção da obra no paredão. Os pequenos ficaram muito animados em conhecer o trabalho feito pelos grandes, puderam apreciar os quadros com fotos dos grafites feitos pelas turmas dos anos anteriores e também acompanhar um pouco do processo de produção do mural. Foi um momento muito especial de troca e aprendizagem.


4 Ricardo Tatoo nasceu em São Paulo, é formado em desenho industrial e pós-graduado em direção de arte, mas está no cenário do graffiti desde a década de 1980. O artista já trabalhou com Maurício Villaça, um dos pioneiros do stencil-graffi ti no Brasil. Por acreditar que a revolução decorre da educação, ele procura direcionar a sua arte para o contexto social. Tatoo encabeça o Coletivo Raiz e Antena, espaço dedicado também à promoção de projetos sociais voluntários, como o Arte Ataque Ofi cina, voltado para a criação, stencil e graffi ti, cujos conceitos de ética, cidadania e educação são propagados por meio da arte urbana. 5 Trata-se de um Museu de graffi ti criado a partir de um incidente com grafi teiros em 2011, por iniciativa de Binho Ribeiro e Chivitz. Conta com apoio da Secretaria de Estado de Cultura de São Paulo, do Paço das Artes e do Metrô. A cada edição, são escolhidos artistas para pintar as 77 pilastras da estação de metrô Santana. O resultado é uma verdadeira exposição a céu aberto de graffi ti. Fonte: http://spcultural.org/listing/maau-museu-aberto-de-arte-urbana/

Pintura mural: deixando marcas

Tendo em vista o caráter transformador, crítico, criativo e vivo da Arte, era imprescindível que o estudo realizado pelas crianças contemplasse um momento de vivência e prática significativa. Foi quando outro feliz acaso aconteceu: a mãe de uma das crianças nos indicou um grafiteiro que realiza um trabalho social com o grafite em comunidades de periferia e escolas públicas. Esse foi um dia inesquecível para as crianças, pois puderam colocar de fato “as mãos na massa” e nada mais justo, nesse momento, do que também deixarem a sua marca na Escola que tanto gostam. Puderam pintar com o grafiteiro Tatto4 uma das paredes da escola, utilizando estênceis e tinta guache, por conta da toxidade da tinta spray. Sem dúvida, esse momento foi aguardado ansiosamente desde o início do projeto.

Museu a céu aberto

O projeto não estaria completo se não houvesse a possibilidade de apreciar presencialmente a cidade e sua Arte. Por isso, as crianças fizeram um estudo de campo, isto é, uma visita ao Museu Aberto de Arte Urbana (MAAU-SP)5, o primeiro
museu a céu aberto da cidade de São Paulo.

Na visita, os pequenos depararam-se com grafites feitos por vários artistas, incluindo alguns dos quais havíamos estudado. O encontro com as obras possibilitou o reconhecimento de características e de técnicas estudadas, comparações entre os trabalhos apreciados e, o mais importante, a conexão com a cidade.

Compartilhando aprendizagens

Quando pensávamos que o projeto estava chegando ao fim, eis que a professora das crianças de quatro anos me procurou para dizer que, há dias, seus alunos estavam curiosos sobre aquela parede que, da noite para o dia, havia sido pintada próximo ao brinquedão do parque. Levei a inquietude deles para o meu grupo que prontamente se dispôs a apresentar o estudo para os menores, ajudando-os a compreender o que havia acontecido ali, bem como compartilhando algumas aprendizagens.

Muito animados, começamos a preparar a apresentação e coletivamente escolhemos algumas etapas do estudo que precisavam ser aprofundadas. Realizamos também uma votação para escolher as crianças que iriam representar o grupo no momento adequado. Chegada a hora da apresentação, fiquei extremamente orgulhosa e surpresa porque as crianças demonstraram muita segurança e tranquilidade ao falarem sobre o estudo. Os pequenos puderam esclarecer dúvidas e curiosidades. Sem dúvida, foi um espaço importante de troca de saberes.

Etapas

♦ Escolha coletiva de temas do projeto que seriam apresentados
♦ Escolha das crianças que fariam a apresentação
♦ Preparação das falas
♦ Tempo para tirar dúvidas após a apresentação

Chegando ao fim…

O projeto Arte urbana foi muito gratificante e surpreendente, especialmente pelos felizes acasos, pela dedicação das crianças e pelo grande envolvimento das famílias. Em nossa última reunião de pais, muitas foram as devolutivas positivas que recebi sobre o trabalho desenvolvido e, com frequência, as crianças diziam: Quando eu crescer quero pintar as paredes!

Pensando em uma possível explicação para o sucesso desse projeto, remeto-me ao seu início e fim, que estão, não por acaso, conectados. O projeto, que começou com base na escuta atenta dos dizeres das crianças, retornou ao seu princípio, com o compartilhamento das experiências vividas e orgulhosamente contadas pelas crianças.

Posted in Revista Avisa lá #62.