Escrever para quê?

DANIELA GORGULHO BOGOLENTA¹


ESCREVER POR VONTADE PRÓPRIA COM UM PROPÓSITO DEFINIDO E PRA UM DESTINATÁRIO CONHECIDO MOBILIZA OS PEQUENOS ESCRITORES QUE AVANÇAM EM SEUS CONHECIMENTOS


Ensinar às crianças a ler e a escrever de forma convencional mobiliza educadores, faz pensar, instiga, frustra, desafia e não é para menos. A partir do momento em que se compreende o funcionamento do sistema da língua materna, dá-se um passo importante rumo ao que cada um representará para seus pares e para a sociedade em que vive.

Para aprender a escrever, os alunos necessitam entrar em contato com bons textos, contar com um professor que prepare desafios de acordo com o que é singular para cada um e, acima de tudo, os coloque diante de situações de aprendizagem que tenham um propósito comunicativo claro e real. As chamadas fichas de atividades (lições), que as crianças realizam diariamente, cumprem com esse propósito? Potencializam as reflexões acerca do sistema de escrita? Permitem que os alunos exercitem todas as habilidades necessárias a um escritor?

É preciso repensarmos os saberes e as habilidades que estão em jogo quando os alunos fazem lições e quando, por exemplo, produzem registros escritos durante as brincadeiras no momento de atividades diversificadas.


1 Era professora assistente do Colégio Santa Cruz quando os dados deste trabalho foram coletados. Atualmente é professora em outra instituição.

Olho vivo 

Desde bem pequenas, as crianças já fazem anotações e registros. Presenciamos diariamente inúmeras tentativas de comunicação por escrito no cotidiano da sala de aula. Em brincadeiras simbólicas, usuais junto às crianças de 5 e 6 anos, a mãe redige uma lista de compras antes de ir ao supermercado, o pai preenche um cheque no final da refeição, a atendente do salão de beleza registra na agenda o nome das clientes, o funcionário do escritório digita suas tarefas do dia etc.

Situações assim são oportunidades reais de comunicação, porém, situadas num contexto do faz-de-conta, onde as crianças imitam o mundo adulto, representam aquilo que presenciam ou que vivenciam no seu dia a dia com as famílias. Nessas ocasiões, a escrita é justificada e apresentada como uma necessidade e uma solução reais.

Com o intuito de favorecer a reflexão sobre o sistema de escrita, começamos a propor semanalmente, no período de uma aula (45 minutos cada), alguns cantos de atividades diferenciadas de escrita, como forma de oferecer outras possibilidades que não as fichas de atividades. Essa proposta consistiu em trazer a escrita como desafio para um contexto próximo, socialmente conhecido pelos alunos, permitindo uma atuação efetiva, a comunicação por meio dos textos que produzidos e a tomada de decisões similares àquelas realizadas por um escritor adulto experiente.

A decisão de participar dessas atividades era livre, sendo exclusivamente de escolha dos alunos. Além disso, quando a criança sentava-se para escrever, por vezes, não dimensionava os obstáculos que encontraria pela frente. Alguns desistiam depois da primeira linha e outros buscavam a ajuda de um colega mais experiente².

Semanalmente, as crianças tinham a possibilidade de participar desses três cantos que traziam desafios de escrita.


2 Por colega mais experiente entendemos uma criança que tenha uma hipótese de escrita mais elaborada, mais próxima à convencional, em comparação com aquele que está escrevendo.

1. Cantos de escrever cartas

Material oferecido: papéis de cartas variados, envelopes, lápis e borracha.

Objetivo: o desafio consistia em escrever cartas ou bilhetes para alguém, na sala de aula ou fora dela.

Ao participar dessa proposta, notamos os alunos diante do desafio de escrever cartas a alguém, tendo de, primeiramente, decidir quem seria o destinatário e elencar assuntos a serem tratados, o que representa uma ação de planejamento da escrita. Percebemos que as crianças participam com empenho e redigem cartas com sentido e propósito, inclusive considerando a estrutura demandada pelo texto: dizer o destinatário (mamãe, Lu), a mensagem e uma despedida (beijos). Apesar de nesses exemplos não ter sido necessário ajudar as crianças na tarefa de planejamento da escrita (para quem dizer, como dizer etc.), em outras ocasiões isso se fez necessário e é preciso tratar essa questão, em sala de aula, com toda a importância que lhe cabe, já que se trata de uma ação fundamental ao escritor.

Assim que as crianças decidiam para quem iriam escrever e o que queriam dizer, o ato da escrita, em si, era rápido. A ação de escrever pelo propósito, pelo ímpeto, pela vontade, deixavam de lado a insegurança, a autocrítica, o juízo de valor sobre o registro que, vez ou outra, não era possível ser recuperado, dado o nível inicial de escrita que a criança se encontrava. Mesmo assim, o que estava valendo no momento da ação era a vontade, o desafio, a sensação de independência em relação ao ato de comunicar algo a alguém. Vale ressaltar que essa experiência – de se comunicar – não era algo que elas poderiam vivenciar preenchendo as fichas de atividades elaboradas institucionalmente.

2. Cantos de produção

Material oferecido: folhas de sulfite A3 dobradas e grampeadas no centro, no formato de pequenos livros, lápis, borracha, canetas coloridas, giz de cera, papéis picados, tesoura e cola.

Objetivo: o desafio consistia em produzir um livro, inventando uma narrativa ou transcrevendo alguma história conhecida.

Escrever uma narrativa, compor uma história pode não ser uma tarefa fácil para qualquer escritor, ainda mais para esses usuários iniciantes da língua escrita. Geralmente, as histórias demoram uns dias para ficarem prontas. No entanto, notamos o interesse dos autores e certo orgulho também quando são abordados e emitem comentários como: “Deixa eu continuar meu livro, o meu pai nem vai acreditar quando eu mostrar para ele!”.

Efetivamente, as crianças sentem-se como escritoras de fato e atuam como tal. Para a retomada da escrita depois de um tempo distante do texto, notamos que as crianças pediam às professoras que lessem o que estava escrito para continuarem de onde haviam parado. Afinal, não concluíam seus principais objetivos numa única oportunidade, tal e qual tendem a fazer também os autores experientes. No entanto, percebemos que a necessidade da releitura estava mais a serviço de identificar onde a história havia parado do que em revisar aspectos discursivos do texto. Parece-nos que as crianças passaram a usar esse procedimento de releitura do texto como algo que lhes possibilitava uma continuação e sendo essa uma ação do leitor experiente, incentivamos a conduta e fizemos questão de socializar com os demais alunos. Numa de nossas conversas coletivas, Maurício, um dos alunos, fez a seguinte colocação: “Eu percebi que se a gente não lê a história não dá pra continuar!”.

Na produção 3, é importante destacar o uso de termos e expressões típicas dos contos de fadas, por exemplo: “era uma vez”, “um belo dia”, “passaram noites e muitas noites”, “viveram felizes para sempre” etc. Isso evidencia a tentativa da escritora de aproximar seu texto das características do gênero escolhido, remetendo-se àquilo que ela tem, de memória, como ouvinte de histórias.

Na produção 4, no entanto, observa-se uma ação de refacção do texto. Num primeiro momento, o aluno escreveu licopidro para helicóptero e, ao refazer a leitura do trecho que havia escrito, resolveu corrigi-lo para licoptero.

Tanto a tentativa de escrever utilizando expressões típicas das histórias de contos de fadas, quanto a opção por refazer a escrita corrigindo aquilo que julgou necessário, consistem em ações que, mais uma vez, dificilmente aconteceriam com a realização de fichas de atividades. O propósito comunicativo das situações vivenciadas nesses cantos é tão latente que levou essas crianças a atuarem de forma bastante semelhante a um escritor experiente.

3. Cantos de confecção de cardápios

Material oferecido: folha de papel sulfite, revistas, tesoura, cola, lápis, canetas coloridas e borracha.

Objetivo: o desafio consistia em encontrar imagens nas revistas, selecioná-las e confeccionar o cardápio, levando em consideração bebidas, comidas, sobremesa etc. Além disso, pensar no valor a ser cobrado pelos alimentos e bebidas. Esse material seria usado na brincadeira simbólica de cantina.

Essa proposta demanda a escrita como propósito de preparação de uma brincadeira. Antes de brincar de restaurante, as crianças criavam o cardápio. Buscavam imagens em revistas, jornais, atribuíam nomes aos pratos e classificavam o que eram bebidas, entradas, carnes, massas, sobremesa etc.

Depois de separar as imagens, iniciava-se a fase de confecção: colagem e escrita. Em duplas ou trios, registravam os nomes de cada alimento ou bebida e colocavam o respectivo preço.

Durante a tarefa, produziam uma escrita que se assemelhava àquela de uma lista de palavras, um texto que já dominavam nesse momento da escolaridade.

Escrever o nome dos alimentos no cardápio constituiu-se como um desafio a ser transposto entre aqueles que, depois, utilizaram o material para brincar, afinal, é necessário ler. O registro que poderia ser recuperado, ou seja, lido posteriormente, colocava-se como empecilho para que a brincadeira transcorresse.

Tanto na produção 5 quanto na 6, as crianças registraram ao lado dos itens do cardápio o preço de cada um. Isso, numa tentativa de aproximar o cardápio confeccionado por elas àquele conhecido socialmente. Sabiam que, além dos pratos e bebidas, também precisariam pensar em preços, já que é o procedimento que observam quando vão a um restaurante. Mais uma vez, estamos diante de uma situação que as aproxima de uma situação de uso convencional e a interação entre eles no momento da brincadeira os faz atuar efetivamente como leitores e escritores.

Nas três situações anteriores, cantos de escrever cartas, cantos de produção de livros e confecção de cardápio, notamos que o fato de os alunos já terem clareza do propósito que os guiava na escrita (escrever para parabenizar, escrever para narrar etc.), possibilitou-lhes também focar nas letras que utilizavam, pensar na relação sonora das sílabas, enfim, atentar para aspectos notacionais³ da escrita.

O que fica para nós

Quando as crianças fazem fichas de atividade, colocam em jogo somente parte dos conhecimentos relacionados à língua escrita. Na maioria das vezes, necessitam pensar sobre as letras e os sons das palavras basicamente, mas sem ter a tarefa de se comunicar, ou seja, sem saber destinatários em potencial. Ao participar dessas propostas nos cantos, lidam com conhecimentos mais amplos como, por exemplo, seu uso social, as características que definem um texto e o distingue dos demais. Além disso, produzem atuando como um escritor adulto experiente diante de uma situação comunicativa, exercitando estratégias e procedimentos essenciais
àquele que escreve. Dificilmente, ao realizar uma ficha de atividade preocupam-se com o interlocutor, com aquele que vai ler o que escreveram. Quando a criança já sabe o que quer escrever e para quem está escrevendo, o ato da escrita se potencializa e se aproxima genuinamente do seu caráter.

Aprender a ler e a escrever para se comunicar com o mundo é um direito dos nossos alunos e vai muito além de escrever para agradar o professor, cumprir com a tarefa dada ou mostrar uma pasta de atividades para os pais no final de um semestre. As propostas escolares devem se dirigir a um leitor em potencial, pois será dessa forma que a escola cumprirá sua função alfabetizadora.

Posted in Revista Avisa lá #60.