MÁRCIA DO VALLE LOPEZ¹
PARA EFETIVAR MUDANÇAS NAS FORMAS DE ENTENDER A INFÂNCIA NOS AMBIENTES DE APRENDIZAGEM É FUNDAMENTAL TORNAR VISÍVEL AOS PROFESSORES O POTENCIAL INFANTIL
Os profissionais dos Centros de Educação Infantil (CEIs) expressam com clareza o desafio que é planejar ambientes e experiências de aprendizagem para a faixa etária de 0 a 3 anos. Preocupam-se com a ocorrência da transposição indevida de atividades escolares típicas das fases finais da Educação Infantil ou até, muitas vezes, do Ensino Fundamental para os CEIs. Ao mesmo tempo, inquietam-se e se perguntam quem é essa criança, como ela aprende e que leituras de suas manifestações podem fazer.
O projeto “Concepções e práticas no CEI: produções da infância”² propôs aos professores participantes do processo formativo um olhar reflexivo sobre a prática e as aprendizagens infantis.
Professor investigador
Aos participantes foi solicitada uma postura investigativa, de modo que fosse possível concretizar o lugar de protagonistas no processo de formação profissional. Para isso, foram desafiados a pesquisar as ações das crianças, as possibilidades de ofertas de ambientes de aprendizagem e a interação de professores com as crianças.
Era esperado que pudessem qualificar tanto seus conhecimentos sobre as aprendizagens possíveis às crianças de 0 a 3 anos, como as práticas que adotavam.
Uma pergunta sustentou todas as discussões e ações do processo de investigação dos educadores: O que aprende e como aprende a criança de 0 a 3 anos?
1 Coordenadora da Assessoria Vera Cruz, instituição pertencente ao Instituto Superior de Educação Vera Cruz, responde pela elaboração e desenvolvimento dos projetos de formação.
2 Projeto desenvolvido pelos Centros de Educação Infantil da Diretoria Regional de Ensino do Butantã-SP, em parceria com a Assessoria Vera Cruz, que desenvolve projetos de formação em diferentes instituições educacionais da rede pública e privada.
Com foco nessa questão, o processo formativo com os professores³ foi organizado em duas principais ações que se inter-relacionavam:
♦ Momentos Coletivos4– encontros quinzenais, nos quais os professores refletiam sobre o que e como aprendem as crianças de 0 a 3 anos. Ao fim de cada etapa do processo formativo, elegiam mudanças a serem incorporadas às práticas instituídas e construíam sínteses coletivas para sistematizar seus saberes e comunicá-los a outros colegas.
♦ Atividades com crianças, em parceria com o formador da Assessoria e o professor do CEI – atividades semanais realizadas em, no mínimo, dois agrupamentos de alunos de professores participantes, que ocorriam entre dois momentos coletivos. Os demais participantes desenvolviam, autonomamente, as mesmas atividades, de modo que todo o grupo de professores produzia registros com fotos e filmes, gerando material para análise no momento coletivo seguinte. Essas atividades foram pensadas como elo entre teoria e prática, criando possibilidades de reflexão sobre as aprendizagens das crianças, as concepções de infância e a qualidade das intervenções dos professores.
3 Concomitantemente ao processo formativo dos professores, foi realizada formação especifica com os Coordenadores Pedagógicos dos CEIs.
4 Foram constituídos dois grupos de trabalho com dois professores de cada unidade escolar, que se reuniam quinzenalmente, durante 3 horas.
Um recorte temático estratégico
Para possibilitar o planejamento e a ação intencional do professor, foi escolhido como recorte temático o campo de experiências de “Exploração da natureza e da cultura”, na intersecção com outros campos, tais como linguagens visual e corporal.
As atividades foram organizadas em três módulos, que abarcaram diferentes propostas:
♦ Módulo I – Exploração de misturas, com o uso de papel crepom e água, terra e água, tinta feita com maisena.
♦ Módulo II – Exploração de objetos de diversos tipos: cestos com objetos variados, cestos com objetos sonoros, caixas de imagem e luz.
♦ Módulo III – Exploração do espaço, com intervenções: caixas de papelão de diversos tamanhos, circuitos com intervenções de cordas e tecidos.
O movimento formativo
O processo dessa formação seguiu um fluxo no qual os encontros com professores e as atividades com as crianças, desenvolvidas tanto em parceria com o formador como, autonomamente, pelo professor do CEI, se inter-relacionavam. Esse movimento se repetia mensalmente, a cada tipo de atividade proposta aos alunos.
A equipe de formadores optou pela elaboração de um acervo de planejamentos prévios de atividades pensados especialmente para crianças de berçários, já que os professores reportavam a dificuldade
de elaboração de planejamentos para esses agrupamentos. Os formadores sabiam que era preciso criar modelos de atividades especialmente destinadas a essa faixa etária, de modo a viabilizar a análise de situações de classe, que podiam ser caracterizadas como “bons modelos”.7
Nos momentos coletivos que iniciavam um módulo, eram compartilhados os planejamentos e realizados os ajustes para adaptá-los às necessidades específicas da escola e dos agrupamentos Berçário I, Berçário II e Minigrupo, considerando os saberes e as experiências prévias das crianças com os materiais, as condições do espaço, os materiais disponíveis, a proporção adulto/criança no momento da atividade, entre outras variáveis.
5 Momento inicial do encontro, no qual o formador compartilha um texto literário, uma imagem, um poema, uma crônica, o fragmento de uma reportagem, enfim, algum material que alimente culturalmente os professores, oferecendo diferentes visões estéticas, culturais e históricas da infância.
6 Os referenciais teóricos eram compartilhados como recurso disparador, oferecendo elementos comuns para a futura análise das atividades, já que os professores eram, o tempo todo, instigados a justificar suas observações e decisões.
7 Delia Lerner (Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002. p. 111) discute as dificuldades enfrentadas na tomada de decisão, sobre quais seriam os melhores registros para a análise. Na síntese que apresenta, afirma que “as situações de classe, que é mais produtivo analisar, são as que podem ser caracterizadas como ‘boas’, porque são situações que permitem explicitar o modelo didático em que se trabalha”. Ressalva ainda que “apresentar situações ‘boas’ não significa pretender encontrar ou produzir registros de classes ‘perfeitas’, já que ‘as classes perfeitas não existem (…)’”. Lembra que “o surgimento de alguns erros nas situações de capacitação analisadas cumpre também papel positivo, porque permite compartilhar a impossibilidade de alcançar a perfeição, aceitar o erro como constituinte necessário do trabalho e como objeto de análise a partir do qual se torna possível progredir”.
Neles também era escolhido um foco de observação que pautaria o olhar de todos os professores na realização das atividades do mês e permitiria a produção dos registros a serem compartilhados no encontro coletivo seguinte.
Pautar o olhar, criar um foco comum para todos foi condição importante para que a análise das práticas fosse realizada com qualidade.
Foram eleitas pelos professores variações do foco de observação, dependendo da especificidade de cada módulo, do momento de aprendizagem do grupo de professores no processo formativo, do tipo de desafio que a atividade propunha e das hipóteses que os professores levantavam sobre o potencial de aprendizagem das crianças em agrupamentos diferentes.
Construir um registro com o uso de imagens (fotos e vídeos) das atividades em parceria foi também condição decisiva para que a análise de práticas a ser realizada no encontro seguinte fosse frutífera.
[…] a possibilidade de filmar, ir ao CEI, gravar as cenas das crianças em movimento, brincando, levou-me a fazer uma escolha pensando em como as imagens seriam usadas, qual era a intenção de uso e ali, no momento mesmo da atividade, a partir da minha escolha, verificar que estaria denunciando a concepção que tenho de criança. O processo foi, então, bem cuidadoso. Preocupei-me muito em captar as cenas nas quais as crianças estavam criando com muita liberdade a partir dos materiais. Ao mesmo tempo, tinha a preocupação de que as professoras me vissem registrando e que elas percebessem como eu fazia isso.
Bianca Veronese, formadora responsável pela captação e edição de imagens das atividades realizadas em parceria professor/formador.
Compartilhar e analisar práticas
Após o desenvolvimento das atividades com as crianças, ocorria o novo momento coletivo, dedicado principalmente à análise das práticas, estratégia central de todo processo formativo, já que ela possibilita ao professor transformar uma prática em objeto a ser estudado e analisado. Dessa forma, permite que ele se distancie do vivido, identifique elementos de sua participação e das crianças, o que não acontece com clareza quando está imerso na atividade.
Esse momento de análise das práticas criou um clima de troca importante entre os professores que realizaram a atividade com a parceria do formador e os demais professores que a realizaram autonomamente e também traziam os registros produzidos. Diferentes vivências eram compartilhadas sob o mesmo foco de análise – todos os olhares com a mesma preocupação, as manifestações das crianças, o que e como aprendem em diferentes práticas.
[…] o momento de ver o vídeo é importante. Ele é diferente de simplesmente expor a atividade por escrito ou oralmente, ou de sentar e conversar num bate-papo […] – ‘Olha, minha atividade foi assim…, assim…, assim…’ –, porque eu vou levar ao grupo apenas o que achei mais importante quando estava desenvolvendo a atividade. A visualização da atividade no vídeo possibilita mais discussões e avaliações. Possibilita mais reflexão do que a fala simplesmente ou um relatório escrito ou oral […]
Sara Regina B. O. Santos, professora do CEI Rio Pequeno II.
[…] e aí, você conseguia perceber qual era o intuito que a criança tinha ao manipular aquele objeto, ao entrar e sair daquela caixa, ao misturar aquela meleca. Olhar as fotografias e os filmes nos chamou atenção para sermos mais tranquilas em relação ao desenvolvimento da criança. Por exemplo, muitas vezes (ao filmar), parava e focava só aquilo que aquela criança estava fazendo, passo a passo, o que aquela criança estava fazendo no decorrer da atividade […]
Janaina Pereira da Silva, professora do CEI Yvone Lemos Fraga.
Ao finalizar o segundo momento coletivo, era possível sistematizar com todos o que os professores haviam aprendido sobre como e o que as crianças aprendem e sobre as formas produtivas de organização do ambiente (entendido como tempo, espaço, materiais e interações). Os momentos de análise das situações de classe propiciaram sucessivas descobertas dos professores, ao mesmo tempo que a finalização do módulo criava o desafio da construção de acordos sobre as mudanças que deveriam ser impressas imediatamente na prática com as crianças.
Sistematizar e comunicar conhecimentos
Para atender ao compromisso assumido por todos no início dos trabalhos, os grupos foram convidados a elaborar coletivamente sínteses ao término de um lado bloco de conteúdos (Módulo). Desse modo, tiveram a oportunidade de sistematizar suas aprendizagens e criar intencionalmente um material de comunicação destinado à divulgação para os outros professores das unidades escolares.
A ação das crianças na exploração de um tipo de material inspirava as escolhas da forma e do conteúdo das comunicações. O projeto pretendia transmitir aos pais, professores e crianças a importância estética nos ambientes de aprendizagem – na montagem dos cenários, na forma de apresentação dos materiais e na divulgação dos resultados obtidos, Portanto, era importante fugir das comunicações infantilizadas ou estereotipadas, poluídas visualmente ou muito rebuscadas. A importância do conteúdo a comunicar exigia um design de qualidade, limpo e belo.
Estrategicamente, os formadores propuseram que fossem produzidas as comunicações visuais em tamanho grande, de modo a chamar atenção de pais, crianças e professores do CEI.
No fim do Módulo I, foram construídos cinco painéis de 1,20m de altura por 0,30m de largura, que registraram, separadamente, o que e como aprende a criança, como podem estar organizados os cenários. No Módulo II, que tratava da exploração de objetos, foram elaborados dois móbiles compostos por cinco partes de 59 cm por 42 cm cada um, articulados com um elástico que possibilitava movimentos de sobe e desce do teto até a altura dos alunos.
No Módulo III, caixas de papelão superpostas com imagens adesivadas formavam uma escultura para homenagear as descobertas relativas à ocupação do espaço pelos alunos.
A finalização do ano de trabalho foi marcada por uma exposição aberta a todos os profissionais do CEI e EMEI da Diretoria Regional de Educação do Butantã. O objetivo primeiro era dar visibilidade ao potencial de aprendizagem das crianças e, para isso, dela fizeram parte os filmes realizados ao longo de todo o ano e as sínteses produzidas pelos professores.
Considerações finais
Acreditamos que refletir é uma ação fundamental para a qualificação do educador. Para que isso ocorra, é preciso manter o exercício constante de análise e a elaboração de documentação significativa, proveniente de suas experiências em classe com os alunos.
Ao final dos trabalhos, estava confirmada a importância de se criar, em processos formativos, a possibilidade de investigação pelos professores. O resultado foi uma adesão progressiva deles às propostas, a revisão de concepções e o avanço na competência para a organização adequada de ambientes de aprendizagem para os pequenos. Também percebemos que foi decisivo o fato de terem sido criados referencial e foco de observação comuns ao grupo, o que permitiu a análise de práticas orientadas e produtivas.
Focalizar a investigação na criança contribuiu para que os professores se sentissem mais motivados, pois não era a competência de cada um que estava diretamente em jogo na proposta formativa, e sim a ampliação do conhecimento que possuíam sobre a criança pequena. Como em um jogo de figura e fundo, a criança e sua ação eram colocadas em relevo na análise das práticas, para só depois tornar evidente as intervenções do professor que haviam favorecido tais ações.
Esse grupo de professores passou a considerar e valorizar o modo próprio de aprender e se expressar
das crianças de 0 a 3 anos.