A representação de uma vitória-régia impulsiona trabalhos que envolvem o raciocínio matemático, artes e muita interação entre crianças de pré-escola
No fim do primeiro semestre de 2006, ao sairmos de férias, eu e a professora auxiliar Rebeca Schneider Mesquita já sabíamos que no reinício das aulas entraríamos em contato com a comunidade de Portel1, da Amazônia, para trocar informações sobre os modos de vida e aspectos da natureza. Assim, pensamos em desenvolver com o grupo 5 (crianças entre 4 e 5 anos), da Escola Vera Cruz, em São Paulo – SP, uma proposta que proporcionasse troca de experiências e permitisse o contato com outras culturas do País. Nesse contexto, e diante do intercâmbio cultural que iríamos desenvolver, aproveitei o momento para contar em sala as lendas amazônicas. Entre elas, estava a da vitória-régia. A partir da narrativa, todos ficaram muito interessados em conhecer a flor que era mencionada no texto. Começamos, assim, a coletar informações a respeito da região. Em uma das pesquisas, ficamos sabendo sobre o tamanho da folha e mais curiosidades, como o fato de ela medir até 2 metros de diâmetro e suportar o peso de uma pessoa. Em uma das fotos selecionadas pelas crianças na internet, vê-se a planta com sua flor e um bebê sentado sobre ela.
Essas informações iniciais estimularam a curiosidade da criançada. Identifiquei nessa situação uma boa oportunidade para abordar um conteúdo matemático previsto no plano anual, aprofundando questões trabalhadas no 1º semestre e aproveitei a deixa para dar continuidade ao trabalho com matemática2 iniciado no começo do ano, quando estudamos seqüência numérica, medidas e alguns aspectos da geometria. Na roda de conversa, estimulei as crianças para que elas pensassem sobre o tamanho da folha caso ela estivesse em nossa sala e como poderíamos fazer para representá-la no chão. Elas sugeriram: “Vamos medir 2 metros e desenhá-la!”. Algumas, ao verem o desenho, quiseram se sentar sobre ele para imitar o bebê da foto. Aproveitei o momento para perguntar: “Quantas de vocês cabem nela?”. Para obtermos essa resposta, cada um foi se posicionando de diferentes modos: em pé, sentado e deitado. Nessa atividade, discutimos a relação que se estabeleceu entre a quantidade que cabia e a posição do corpo, deixando que antecipassem suas hipóteses para, em seguida, confirmá-las ou refutá-las.
Uma das crianças, ainda não satisfeita apenas com essa experiência, me pediu: “Por que você não leva a gente para ver a vitória-régia?”. Todos se empolgaram com a possibilidade, e entramos em contato com a equipe do Jardim Botânico. Para nossa triste surpresa, fomos informados de que as plantas existentes no local haviam morrido em virtude da mudança climática. Surgiu, então, outra proposta:
“Vamos fazer a nossa vitória-régia!”. Ainda não sabíamos quais os caminhos a serem percorridos. De nossas incertezas e trocas miúdas com outras professoras e com a equipe pedagógica, criamos as possibilidades e definimos os encaminhamentos necessários.
Suposições iniciais
Retomei todos os passos vividos até aquele momento em uma roda de conversa e perguntei se todos estavam dispostos a levar adiante a idéia de construir a planta amazônica. A resposta positiva foi unânime. Era importante estabelecer o comprometimento de todos com o trabalho para dar cada passo. Passamos a conversar sobre como concretizar a idéia, e os pequenos foram apresentando diferentes possibilidades. A primeira delas foi construir a vitória-régia em argila, o que causou certa inquietação, que proporcionou uma discussão interessante, cheia de argumentos e de contraposições:
Aninha – Se for de argila, vai quebrar!
Carol – A gente espera endurecer!
Aninha – Vai quebrar mesmo assim, pois argila quebra! (de suas experiências vividas com o material em oficinas).
Rodrigo – Além disso, vai precisar de muita argila!
Henrique – E se a gente puser em cima de uma mesa?
Professora – Como vamos levar lá para fora? Por que não podemos construí-la no pátio e não podemos deixar lá fora?
André – Eu acho que tem que ser de papel porque é fininho e suave como uma folha!
Carol – Papel também rasga!
André – A gente vai juntando papel duro (papelão)!
Gustavo – Jornal com cola também dá. Ou de madeira!
Carol (insistindo em sua idéia) – Eu acho que tem que ser de argila! A gente faz de pedacinhos e depois junta!
Diante do impasse, resolvemos colocar as propostas em votação e, para surpresa nossa, ganhou a idéia que propunha fazermos a vitória-régia de madeira. Não sabia como fazer, ou qual seria o desdobramento dessa sugestão. Poderia dar certo ou não. Minha intenção era trabalhar com as possibilidades e ajudar a criançada a mudar os caminhos, caso fosse necessário, e a entender o processo, se não desse certo. Enumerei aspectos importantes com a turma e retomei as discussões que já havíamos feito, e concluímos que usaríamos pedacinhos de madeira. Recolhemos todas as tábuas que havia na oficina de artes da escola e levamos para a sala.
Diante daquele material, surgiram novos desafios. O grupo passou a experimentar, a sugerir e a descartar o que era inviável. Eu e Rebeca coordenávamos as discussões, chamávamos a atenção para as observações pertinentes e instigávamos novas polêmicas. Nós, professoras, refletíamos também sobre o desenvolvimento das atividades, quais as soluções sugeridas pela turma e que encaminhamentos ou intervenções seriam necessários para dar continuidade ao projeto.
Sempre que possível, recorríamos às experiências vividas durante o semestre anterior ou às discussões durante cada etapa com vistas aos encaminhamentos necessários ou à sustentação das idéias. Carol disse algo muito importante: “Pra dar certo, todos precisam fazer junto e respeitar o outro”. As crianças começaram juntando as madeiras no centro da sala, e o que surgiu foi uma construção. Frente àquele movimento sem retorno, Rodrigo perguntou: “Como vamos fazer para ficar redondo se os blocos são quadrados?” E Bruno respondeu: “Vamos tirar tudo e começar de novo!”.
Na teoria e na prática
Gabriel, com uma peça redonda na mão, falou: “A vitória-régia tem que ser assim”. Camilo, para dar sua contribuição, pegou várias peças circulares para demonstrar. As meninas fizeram um desenho no quadro, para representar como a vitória-régia deveria ser. Em certo momento, Aninha sugeriu: “Por que alguém não deita no meio, abre as pernas e os braços e a gente monta em volta dele?” Rodrigo complementou: “A gente começa pela borda e depois põe o recheio!”
Lembrei ao grupo, mostrando a imagem da vitória-régia, que havia uma borda levantada, circundando-a. Foram surgindo outras sugestões: Julieta mostrou com as mãos, formando um pequeno círculo de bordas levantadas, como havia visto na foto: “A gente pode fazer a bordinha assim.” Carol complementou a idéia mostrando as mãos sobrepostas, em ângulo de 90 graus: “É assim!”. Nesse momento, a turma passou a colocar as tábuas em pé, fazendo o contorno circular em torno de André, que ficou deitado no chão, conforme sugerido.
O passo seguinte foi preencher o centro. Antes disso, foi necessário organizar os grupos para evitar atropelos. Rebeca e eu decidimos separar as crianças em pequenos grupos para que se revezassem nessa hora. No meio do processo, percebemos que o preenchimento do contorno para o centro não havia dado certo. As peças não se encaixavam. Diante desse problema, uma solução apontada por um dos pequenos: “Que tal fazer o inverso?”. Tentamos, mas faltavam cantos para completar. Gustavo observou: “Eu sei qual é o problema. Todas as peças são quadradas!”. Camilo, ao ouvir isso, sugeriu que arrumássemos madeiras com outros formatos: “Precisamos de algumas em forma de triângulo!”. Na oficina, serramos algumas madeiras em formatos menores ou triangulares. Ludmila também deu sua contribuição: “Guarda as pequenas para colocar nos buracos!”. Dessa maneira, tudo começou a se encaixar. Finalmente, pintamos as madeiras de verde.
Outras tentativas
Fazer a flor era fundamental, pois havíamos construído apenas a folha. Questionei o grupo:
Professora – Como vamos fazer a flor?
Julieta – Pega uns pauzinhos brancos e finge que é a flor.
Gabriel – Pega as madeirinhas e coloca algumas em pé para virar a flor.
Julieta – Põe as madeirinhas da borda para dentro e faz virar a flor!
Camilo – Mas tem que ser do ladinho da vitória-régia!
Aninha – Achei que ia ser dentro.
Professora – Dentro ou fora?
Nesse momento, precisamos recorrer novamente ao mural com as pesquisas de texto e imagem. Decidimos confeccionar com as madeirinhas compridas que sobraram e, por votação, escolhemos a cor branca. Da mesma maneira como haviam se dividido para a montagem da planta, reuniram-se para fazer a flor. Cada grupo discutiu a melhor estratégia. Experimentaram suas idéias com o material oferecido, e resolvi fotografar as sugestões para que a decisão sobre a versão final fosse votada.
Para finalizar o projeto, houve dois momentos importantes. O primeiro, incluir o trabalho na exposição de artes para que todos pudessem ver a produção. Nesse dia, todos trabalharam com o mesmo empenho e ficaram ainda mais orgulhosos com o resultado, pois puderam se sentar sobre a vitóriarégia, como o bebê da foto selecionada durante as pesquisas na internet. O segundo momento se deu depois da exposição. Continuamos usando as madeiras para fazer novas construções, e ficou decidido que deixaríamos o material para que as próximas turmas pudessem usá-lo para brincar de construção na classe ou na areia. Segundo o educador italiano Loris Mallaguzzi, “as crianças aprendem interagindo com seu ambiente e transformando ativamente seus relacionamentos com o mundo dos adultos, das coisas, dos eventos e, de maneiras originais, com seus pares. Em certo sentido, elas participam da construção da própria identidade e da dos outros… Os conflitos construtivos (resultantes do intercâmbio de ações, expectativas e idéias diferentes) transformam a experiência cognitiva do indivíduo e promovem aprendizagem e desenvolvimento.”
Esse projeto uniu a turma em uma busca comum, fazendo com que ouvissem e respeitassem o outro, para que o objetivo fosse alcançado. Diante de um problema comum, os pequenos formularam hipóteses, buscaram soluções, argumentaram, ouviram e respeitaram o consenso. Saíram dessa experiência ainda mais unidos e preparados para enfrentar outros desafios.
(Ana Rosa Aparecida Araujo Da Costa, Professora da Escola Vera Cruz, em São Paulo – SP)
1A escola participou de um projeto, desenvolvido em parceria com a organização não-governamental Expedição Vaga Lume, que leva livros para a Amazônia. Uma das propostas foi fazer intercâmbio cultural com uma das comunidades participantes do projeto. No caso, a Portel. Foi confeccionado um livro-registro sobre o tipo de natureza da cidade de São Paulo e como as crianças do grupo 1, da Escola Vera Cruz, convivem com ela.
2Embora o projeto tenha trabalhado com conteúdos de matemática, eles não são o destaque nesse artigo ( da redação). As crianças buscaram soluções para resolver um problema, experimentaram, erraram, refizeram, discutiram entre si ações que remetem ao modo de fazer matemática (nota da redação)
Dados científicos
A vitória-régia (Victoria amazonica) é uma planta aquática da família das Nymphaeaceae, típica da região amaamazônica. Ela possui uma grande folha em forma de círculo, que fica sobre a superfície da água e pode chegar a 2,5 metros de diâmetro e suportar até 40 quilos bem distribuídos em sua superfície. Sua flor (a floração ocorre desde o início do mês de março até julho) é branca e se abre apenas à noite, a partir das 18 horas. Dela se expele uma fragrância adocicada do abricó, chamada pelos europeus de “rosa lacustre”. Mantém-se aberta até aproximadamente às 9 horas da manhã seguinte. No segundo dia, o da polinização, a flor é cor de rosa. Assim que as flores se abrem, seu forte odor atrai os besouros polinizadores (cyclocefalo casteneaea), que a adentram e nelas ficam prisioneiros.
Fonte: Wikipédia – a enciclopédia livre
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vitória-régia
Estrela das águas
A história contada sobre a vitória-régia é de origem brasileira, mais precisamente uma lenda indígena tupi-guarani. Há muitos anos, em uma tribo, contava-se que a Lua (Jaci, para os índios) era uma deusa que, ao despontar a noite, beijava e enchia de luz os rostos das mais belas virgens da aldeia, as cunhantãs-moças. Sempre que ela se escondia atrás das montanhas, levava para si as de sua preferência e as transformava em estrelas no firmamento.
Uma linda jovem virgem da tribo, a guerreira Naiá, vivia sonhando com esse encontro e mal podia esperar pelo grande dia em que seria chamada por Jaci. Os anciãos da tribo alertavam Naiá: depois de seu encontro com a sedutora deusa, as moças perdiam seu sangue e sua carne, tornando-se luz. Viravam as estrelas do céu. Mas quem a impediria? Naiá queria ser levada pela Lua. À noite, cavalgava pelas montanhas atrás dela, sem nunca alcançá-la. E a jovem definhava, sonhando com o encontro, sem desistir. Não comia, não bebia. Tão obcecada ficou que não havia pajé que lhe desse jeito. Um dia, tendo parado para descansar à beira de um lago, viu em sua superfície a imagem da deusa amada: a Lua refletida em suas águas. Cega pelo seu sonho, lançou-se ao fundo e se afogou. A Lua, compadecida, quis recompensar o sacrifício da bela jovem e resolveu transformá-la em uma estrela diferente de todas que brilham no céu. Transformou-a, então, numa estrela das águas, única e perfeita, que é a planta vitória-régia. Assim, nasceu uma linda planta cujas flores perfumadas e brancas só abrem à noite, e ao nascer do Sol ficam rosadas.
Fonte: Wikipédia – a enciclopédia livre
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lenda_da_vitória-régia
Ficha técnica
Escola Vera Cruz
Endereço: Rua Dona Eliza de Moraes Mendes, 784 – Alto de Pinheiros – São Paulo – SP. CEP: 05449-001 – Tel.: (11) 3021-2043/3021-2050
Diretor: Heitor Fecarotta
Professora: Ana Rosa Aparecida Araujo da Costa
Professora auxiliar: Rebeca Schneider Mesquita
Orientadora do grupo: Maria Silvia I. Snard Carneiro
Colaboradora no desenvolvimento do projeto: Maria Silvia Brumatti Sentelhas
E-mail: arosacosta@uol.com.br
Site: www.veracruz.edu.br
Para saber mais
Livros
- Educação matemática: uma introdução, de Sílvia Dias Alcântara (org.). Ed. Educ. Tel.: (11) 3670-8558.
- Qualidade na educação da primeira infância: perspectivas pós-modernas, de Gunilla Dahlberg, Peter Moss e Alan Pence. Ed. Artmed. Tel.: 0800-703-3444.
- Sala de aula: um espaço de pesquisa em matemática, de Maria Cristina S. de A. Maranhão e Stella G. Mercadante (orgs.). Vera Cruz – Edições. Tel.: (11) 3021-2050.