Lendo para conhecer um autor

Rodas de leitura aproximam alunos dos traços característicos de um dos maiores escritores da literatura infantil inglesa contemporânea

Há algum tempo as rodas de leitura vêm fazendo parte da rotina de muitos professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental. Realizadas quase sempre no início do dia, nelas os alunos apreciam diferentes tipos de textos e compartilham suas impressões acerca das obras lidas em voz alta pelo professor ou pelos próprios colegas que retiram regularmente títulos do acervo escolar para apreciá-los em casa.

Um dos grandes desafios encontrados na prática dessa atividade é o de construir e aprofundar sentidos em torno das leituras comuns, criando um espaço sistemático de convivência e de relacionamento entre leitores e livros por meio da mediação de um leitor mais experiente. Além disso, esse trabalho possibilita a experiência do compartilhar, comparando a leitura individual com aquela realizada coletivamente.

No Centro de Capacitação dos Profissionais da Educação Dra. Zilda Arns (Cecape), em São Caetano do Sul (SP), as professoras participam de várias atividades formativas.

Em 2011, um dos focos de reflexão nos encontros de Língua Portuguesa foi o trabalho com a leitura de textos literários. Sendo assim, foram organizadas oficinas de tematização da prática que focaram nesse conteúdo, desafiando os professores a ampliarem sua reflexão e repensarem as atividades desenvolvidas em torno desse tipo de texto.

Em um desses encontros, a formadora Denise Guilherme Viotto desafiou o grupo a fazer a leitura de obras maiores com as crianças dos segundos anos, sugerindo-nos, para isso, alguns livros para serem lidos em capítulos. Embora as situações de leitura compartilhada já fizessem parte da rotina diária em nossa escola, geralmente eram realizadas a partir de livros ou de contos curtos que poderiam ser iniciados e finalizados no mesmo dia, escolhendo os temas de acordo com as preferências do grupo. Entretanto, o trabalho com livros mais extensos representava um desafio: Quais obras ler? As crianças acompanhariam uma narrativa que se estenderia por vários dias? Como poderíamos identificar a complexidade de uma obra: por sua extensão? Por seu conteúdo? Nesse mesmo encontro, a formadora apresentou-nos algumas obras a partir das quais poderíamos iniciar esse trabalho. Sugeriu-nos, entre outros autores, o escritor inglês Roald Dahl, autor de vários livros mundialmente conhecidos, especialmente por suas adaptações para o cinema.

Desenho feito a partir de uma das cenas de  A fantástica fábrica de chocolates (Bruna, 2ºC - Prof. Pérola Belém Sales)

Desenho feito a partir de uma das cenas de A fantástica fábrica de chocolates (Bruna, 2ºC – Prof. Pérola Belém Sales)

Comecei a experimentar o desafio pedindo emprestado um dos livros sugeridos, afinal, para despertar o gosto, é preciso primeiro encantar-se. Em apenas dois dias, fiz a leitura do livro A fantástica fábrica de chocolates, do qual já conhecia a adaptação para o cinema, e tive a certeza de que os alunos, assim como eu, seriam também magnetizados pela leitura.

Ansiosa, no dia seguinte, sentei-me em roda com as crianças de minha turma de 2º ano da EMEF Senador Fláquer para contar a novidade. Informei-lhes que a partir da semana seguinte iríamos ler um livro maior que o de costume e que ele faria parte de nossa rotina por quase um mês. Ao dizer o nome, alguns revelaram que já conheciam o filme, manifestaram impressões e fizeram comentários sobre os personagens. Isso foi ótimo porque os demais alunos logo se mostraram interessados e bastante curiosos.

A leitura foi um sucesso desde o início. Difícil era ter de ler realmente apenas um capítulo por dia, pois eles sempre pediam para ler mais: “Só mais um pouquinho, professora.”, eles repetiam. As crianças ficavam eufóricas, imaginando o que descobririam no dia seguinte. A conversa era constante, na entrada, no intervalo ou durante outros momentos da aula. Eles morriam de rir com os versos cantados pelos Umpa Lumpas e prometi exibir em vídeo um trecho com essas músicas.

Percebi que parte desse encanto decorria da qualidade da obra escolhida, e as crianças se sentiam desafiadas a observar mais atentamente alguns elementos da linguagem. Notei também que outro fator importante para o grupo era o fato de todos estarem experimentando uma vivência comum em torno de um texto literário, construindo os respectivos sentidos coletivamente, trazendo a discussão sobre uma obra conhecida mundialmente para o seu cotidiano.

Compartilhar as leituras não apenas estabelece vínculos entre os leitores de alguns livros em um momento determinado, como os conecta com sua tradição cultural. A escola deve velar para que assim seja, já que as novas gerações têm direito a não ser despojadas da herança literária da humanidade. Sem ela, as crianças se acham condenadas, como Peter Pan, a viver em um lugar de eterno presente, em que tudo se esquece de imediato. É precisamente para sobreviver à angústia dessa maldição que o menino que não pode crescer volta uma vez ou outra ao mundo real para ouvir as histórias de Wendy1.

Ao término da leitura, as crianças não pareciam saciadas, queriam mais! Desejaram levar o livro para casa, pediam para ler novamente. Alguns pais solicitaram o nome da obra afirmando que o filho falava com tanto entusiasmo que eles gostariam de ler. Houve um aumento na frequência ao longo desse período, uma vez que os alunos não queriam faltar à escola para não perder nenhuma parte da leitura.

Motivada pelo entusiasmo do grupo, decidi que poderíamos conhecer mais sobre o autor a partir de um trabalho com várias obras suas. Por isso, na sequência, realizei a leitura do livro James e o pêssego gigante. Quando contei que era do mesmo autor e relatei que era uma aventura, a situação se repetiu: a euforia, a ansiedade e a torcida pelo protagonista.

Observei que a partir dessa segunda leitura as crianças começaram a identificar alguns aspectos característicos da obra de Roald Dahl: elementos fantásticos, protagonistas com vidas difíceis, a ironia e o humor, por exemplo. Nas conversas que se seguiam após as leituras, procurava incentivá-los não somente a apresentarem suas impressões sobre a obra mas justificá-las, esclarecendo para o grupo o caminho que tinham percorrido para chegar a essa conclusão. Notei que, mais do que compartilhar os sentidos construídos a partir da leitura, as crianças estavam compartilhando também as estratégias que utilizavam para construir esses sentidos. Dessa forma, estavam aprendendo não apenas a falar sobre a leitura, mas a socializar o modo como essas descobertas podiam ser feitas.

Embora tenham apreciado muito as primeiras obras lidas, o livro preferido certamente foi o terceiro: As bruxas. Ao saberem que era outra produção do mesmo autor, identificaram-se; adoraram a capa, a introdução, e foi o período em que mais participaram e se divertiam durante as leituras. Como conheciam outras obras, puderam acessar o repertório construído e antecipar o que poderiam encontrar nessa nova aventura. Todos pareciam ansiosos em conhecer a história das personagens e em descobrir os elementos fantásticos que seriam apresentados pelo autor. Eles se envolveram muito com o enredo, se sentiam personagens também, passaram a relatar que prestavam mais atenção nas pessoas na rua para não se enganarem com alguma bruxa, já que agora sabiam que as bruxas vivem entre as pessoas comuns. O trecho em que a avó do protagonista relata que, para as bruxas, crianças cheiram a cocô de cachorro, foi hilário.

Como estávamos na leitura da terceira obra de Roald Dahl, arrisquei-me a propor ao grupo algumas comparações entre os protagonistas. Notamos, por exemplo, que as três crianças sofriam algum tipo de problema em casa: James morava com duas tias muito más, Charlie (A fantástica fábrica de chocolates) tinha uma situação econômica bem difícil e Luke (As bruxas) fica órfão logo no início da história. Contudo, apesar de todos os obstáculos e dos acontecimentos mágicos que os cercam ao longo da narrativa, todos transformaram as histórias pessoais, estando cercados por seres que os apoiam (insetos e avós, por exemplo), usando sua coragem para enfrentar os desafios propostos e envolvendo-se em aventuras incríveis.

Antes de realizar esse trabalho, só havia experimentado a leitura de livros curtos, que começavam e terminavam no mesmo dia. Quando iniciei o trabalho e expliquei que essa história era maior do que as outras e que levaria muitos dias para que a terminássemos, muitos alunos não gostaram da ideia. Mas, depois, a leitura em capítulos tornou-se um incentivo. Muitos deles vinham já desde a fila perguntando o que aconteceria no capítulo a ser lido naquele dia e falavam sobre a obra o tempo todo. Alguns pais comentaram que os filhos pediram-lhes que comprassem os livros lidos.

Desenho feito a partir do livro As bruxas Avisa (Jennifer, 2ºC - Prof. Pérola Belém Sales

Desenho feito a partir do livro As bruxas
Avisa (Jennifer, 2ºC – Prof. Pérola Belém Sales)

Ao longo do trabalho, notei que explorar as obras de um mesmo autor pode ser uma experiência riquíssima, pois permite observar e apreciar alguns elementos da linguagem que caracterizam o estilo de um artista. No caso de Roald Dahl, a semelhança entre suas histórias não se restringe apenas às características de suas personagens. Há sempre uma opção em conversar com o leitor infantil, apresentando o universo criado pelo autor a partir de um olhar irônico sobre o mundo adulto e suas polaridades (bem e mal) por meio de uma linguagem irônica e bem-humorada.

Para criança, BRUXA DE VERDADE é, de longe, a criatura mais perigosa da face da terra. E é duas vezes mais perigosa porque parece perigosa. Mesmo depois de conhecerem todos os segredos (vou falar deles daqui a pouco), vocês nunca saberão com certeza se estão diante de uma bruxa ou de uma senhora muito bondosa. (…)
Algum de vocês pode muito bem ter uma vizinha que é bruxa.
(…)
Pode até ser – e isso vai deixá-los de cabelos em pé – pode até ser que sua adorável professora, que neste exato momento está lendo essas palavras para você, seja uma bruxa. Olhem bem para a professora. Talvez ela esteja rindo do absurdo dessa sugestão. Não se deixem iludir. Talvez isso faça parte da esperteza dela. (Trecho do livro As bruxas, de Roald Dahl. São Paulo: Martins Fontes, 2008)

Infelizmente, o final da leitura da última obra coincidiu com o término do ano letivo. As crianças sempre perguntavam quando iríamos nos aventurar em mais uma viagem literária. Informei-lhes que eu havia incluído esses três livros na lista de sugestões de compras para o acervo da escola no ano seguinte. Assim, eles também poderiam retirá-los para leitura quando quisessem e poderiam conhecer outras aventuras do mesmo autor. Notei que também fui fisgada pela leitura. A partir da experiência de ter conhecido esses livros, pretendo agora ler outros trabalhos do autor e repetir essa experiência com minhas novas turmas.

(Pérola Belém Sales, Professora da rede pública de ensino de São Caetano do Sul-SP)

1Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. São Paulo: Global, 2007. Tel.: (11) 3277-7999 Site: www.globaleditora.com.br

Ficha Técnica

  • EMEF Senador Fláquer
    Endereço: Rua Heloísa Pamplona, 180 – Bairro Fundação – CEP: 09520-310 – São Caetano do Sul – SP
    Tel.: (11) 4229-6077
    Coordenadora pedagógica: Ana Paula Breves Conti
    Professora: Pérola Belém Sales
    E-mail: perolasales@hotmail.com

Conhecendo o autor

Filho de noruegueses, Roald Dahl nasceu em 1916 no País de Gales. Aos 18 anos foi para a África como empregado em uma empresa de petróleo. Foi piloto de avião durante a Segunda Guerra Mundial. Começou a escrever literatura em 1940, quando se tornou adido da embaixada inglesa em Washington, por influência do famoso escritor Ernest Hemingway. tempo5012

Seu primeiro livro infantil, Gremlins, foi adaptado para o cinema, assim como grande parte de sua vasta obra dedicada às crianças: A fantástica fábrica de chocolates, James e o pêssego gigante, As bruxas e Matilda. Dahl morreu em 1990, aos 74 anos, vítima de uma doença rara no sangue.

Para saber mais

Livros

  • Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. São Paulo: Global, 2007. Tel.: (11) 3277-7999. Site: www.globaleditora.com.br
  • Ensinar a ler, ensinar a compreender, de Teresa Colomer e Anna Camps. Porto Alegre: Artmed, 2002. Tel.: (51) 3027-7000. Site: www.grupoa.com.br
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