Gigantes e a expressão plástica

Depois de analisadas diferentes representações de um personagem, crianças constroem expressivo repertório imagético e avançam na técnica da figuração em seus desenhos
Produção de criança da escola Grão de Chão

Produção de criança da escola Grão de Chão

Todos sabemos que as crianças gostam de desenhar e que o desenho é uma das formas que elas encontram de se relacionar com a realidade e representá-la de diferentes maneiras. Desde cedo, ao registrarem no papel algo que possa ser valorizado pelos outros, as crianças ensaiam as primeiras tentativas de figuração e, aos poucos, vão incorporando cada vez mais detalhes às representações, conforme ampliam o repertório visual ao entrarem em contato com a obra de diferentes artistas e com os trabalhos produzidos por outras crianças.

Ao observar o desenvolvimento dos desenhos dos alunos do Grupo 5 da Escola de Educação Infantil Grão de Chão, notei que muitos deles ainda não tinham a representação da figura humana bem estruturada e que faltava observar alguns elementos da relação topológica entre os objetos, como a proximidade e a distância entre eles e as questões referentes ao trabalho com proporção, por exemplo.

Aproveitando o interesse observado no grupo pelas histórias envolvendo personagens fantásticos e animais, centrei o trabalho no personagem gigante para que explorassem, por meio de desenhos, a representação da figura humana e as relações de proporcionalidade desse personagem com os demais seres e objetos para que ele seja considerado um gigante.

Inicialmente, propus a leitura de diferentes contos que tivessem esse personagem como protagonista para que, com base nos elementos descritivos da narrativa e das ilustrações que compunham cada uma das obras, as crianças pudessem criar suas próprias representações.

Composição feita pelas crianças (Foto: Lucília Helena Franzini)

Composição feita pelas crianças (Foto: Lucília Helena Franzini)

Gigantes por quê?
Após o trabalho com leitura, solicitei às crianças que fizessem uma primeira representação de um gigante. Nesses trabalhos, observei que a maior parte dos alunos ainda não era capaz de observar questões referentes à proporção, ou seja, faltava- lhes responder à pergunta: meu gigante é gigante em relação a quê?

Para dar continuidade ao trabalho, retomei as ilustrações das obras lidas e das produzidas pelas crianças e fiz as seguintes perguntas: Como é possível saber, pelos desenhos, que esse personagem é um gigante? O que ele tem de diferente em relação a uma pessoa comum? Nos desenhos de vocês, é possível saber se alguns personagens são gigantes? Por quê?

Após essa reflexão, propus-lhes novo desafio: representar um gigante em um papel maior (folha A1). Informei-lhes que, nesse desenho, deveriam incluir o maior número possível de informações visuais que pudessem deixar o personagem mais próximo das descrições dos contos lidos e das ilustrações observadas nos livros. Pedi-lhes também que explorassem o tamanho do papel, utilizando-o ao máximo em toda a sua extensão para dar a noção de grandeza da figura.

Os desenhos ficaram fantásticos. Foi possível notar que diversas crianças haviam ampliado seu repertório imagético em relação às primeiras representações, pois passaram a incluir detalhes da figura humana pouco observados nas produções anteriores. No entanto, para que pudessem explorar as noções de perspectiva e escala, era preciso estruturar esses desenhos em cenários que contribuíssem para deixar clara a relação de proporcionalidade entre o gigante desenhado e os demais seres e objetos com os quais se relacionaria na representação.

Na aula seguinte, fizemos a apreciação da obra O gigante (1808-1812) de Francisco de Goya (foto ao lado), e observamos a relação entre o personagem e os demais elementos da cena. Quais recursos foram utilizados pelo artista para evidenciar o tamanho do gigante? Depois que as crianças observaram e expressaram suas impressões relativas à obra, conversamos acerca do contexto histórico em que essa obra foi produzida e sobre a vida do artista.

Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) foi um importante pintor espanhol. Dentre suas obras mais conhecidas está o quadro O colosso, cuja autoria ainda hoje é questionada por especialistas. Para alguns estudiosos, a obra teria sido feita por Asensio Juliá, discípulo de Goya e ajudante em seu ateliê.

Francisco José de Goya y Lucientes (1746-1828) foi um importante pintor espanhol. Dentre suas obras mais conhecidas está o quadro O colosso, cuja autoria ainda hoje é questionada por especialistas. Para alguns estudiosos, a obra teria sido feita por Asensio Juliá, discípulo de Goya e ajudante em seu ateliê.

Inspirados pela observação do quadro, pedi-lhes que recortassem os personagens desenhados e o colassem em um suporte rígido (de papelão) para, em seguida, inseri-los em um cenário de miniaturas que seria criado em duplas a partir de objetos que encontrassem na escola ou que fossem trazidos de casa. Para ajudá-los nessa tarefa, fizemos a medição dos gigantes desenhados, utilizando um barbante para que analisassem os possíveis elementos que comporiam os cenários em relação ao tamanho do personagem construído por eles.

Observei, por meio dessa atividade, que as crianças puderam explorar unidades de medida não convencionais, experimentando o uso de conceitos relacionados à perspectiva, proporcionalidade e comparação. Era necessário não apenas construir um cenário, mas refletir sobre o tamanho dos objetos que fariam parte da composição, sua posição em relação ao gigante para dar sentido à proposta. Com todas essas criações, os pequenos brincaram livremente, inventando narrativas sobre os personagens.

Pedi-lhes, então, que fizessem um desenho de observação da composição. Nele, foi possível perceber elementos da evolução da figuração: maior presença de detalhes, noções de perspectiva e realismo virtual.

Gigantes que vivem perto de nós
Para desafiá-los ainda mais a explorar o conceito de proporcionalidade sugeri-lhes que pensassem sobre os gigantes que fazem parte do mundo real. O que conhecemos que poderia ser considerado gigante? Edifícios próximos à escola, árvores, vulcões e dinossauros foram os primeiros a serem lembrados pelas crianças.

Apresentei-lhes algumas esculturas gigantescas impressas no livro Escultura Aventura, de Kátia Canton1, que fazem parte do acervo cultural do Brasil. Obras como Cristo Redentor (Corcovado, RJ), de Heitor da Silva Costa, Mão (Memorial da América Latina, SP), de Oscar Niemeyer e Maman (Museu de Arte Moderna, SP), de Louise Bourgeois, foram algumas imagens apreciadas pelo grupo.

Com isso, as crianças puderam perceber que também é possível estabelecer relações de proporcionalidade em relação aos objetos que fazem parte do cotidiano. Somos gigantes em relação às formigas, e pequenos se comparados a uma escultura como Cristo Redentor, por exemplo.

Ao longo do trabalho, notei que a classe–composta apenas de meninos – também estava fascinada com a ideia de se transformar em seres grandiosos e com superpoderes. Para explorar os elementos fantásticos característicos desse personagem, questionei-lhes: E se fosse possível tornarem-se gigantes? Como seriam? Sugeri-lhes que explorassem as fantasias da escola e se transformassem em gigantes. Durante essa brincadeira, perguntei-lhes como seria esse personagem que estava sendo criado, o que estaria fazendo, de que forma seriam suas roupas etc.

Depois de muita brincadeira, fotografei-os vestidos como gigantes. Em outra aula, com as imagens impressas, pedi-lhes que recortassem as fotografias, colando-as em um suporte. Em seguida, propus-lhes que fizessem uma composição, integrando a imagem do personagem a um cenário no qual ficasse clara a relação de tamanho entre o gigante e os demais elementos do desenho. Novamente, fiquei surpresa com os resultados. Ao notar os recursos empregados pelas crianças para assegurar a proporcionalidade entre a fotografia e as representações que fizeram parte do cenário, percebi que os objetivos haviam sido atingidos.

Gigantes somos nós!
Para finalizar o trabalho, retomamos os personagens criados em uma roda de conversa. Convidei o grupo a construir um gigante coletivo que seria uma mistura de partes do corpo humano criadas pelas crianças. Cada aluno fez o seu gigante, tentando colocar o máximo de detalhes possível. Em seguida, com base na análise dos desenhos, escolheram qual parte gostavam mais e que poderiam ampliar para integrar o gigante coletivo. Com caneta preta e guache, mãos, pés, troncos, pescoços, braços, pernas e cabeças foram desenhadas. Por fim, criamos nosso personagem e sua respectiva ficha técnica.

Ao longo de todo esse processo, notei que o desenho infantil pode integrar-se ao universo de imagens de nossa cultura, a diferentes fontes de informação visual e valores, fugindo da cópia de modelos. A prática, a análise e a observação do trabalho de outros artistas propiciam a reflexão sobre a própria produção, possibilitando avanços no traço das crianças. Basta apenas que nós, educadores, estejamos atentos e que possamos construir nosso repertório, buscando fontes textuais e iconográficas de boa qualidade. Devemos fazer das atividades de desenho um espaço propício para o desenvolvimento cognitivo integrado da percepção, da ação, da imaginação, da sensibilidade em nossos alunos.

Ilustração de criança da Escola Grão de Chão

Ilustração de criança da Escola Grão de Chão

(Mariana Isnard Carneiro, professora de Educação Infantil na Escola Grão de Chão, em São Paulo-SP; e Denise Guilherme Viotto, editora assistente da Revista Avisa lá)

1Escultura Aventura, de Kátia Canton. São Paulo: DCL, 2004. Tel.: 3932-5222. Site: www.editoradcl.com.br

Composições feitas pelas crianças da Escola Grão de Chão

O gigante Kevin
Era noite e, na fazenda, todas as pessoas estavam dormindo. De repente, as pessoas acordaram e ouviram passos bem altos. Elas olharam pela janela e viram que tinha o gigante Kevin no quintal! O gigante levantou os braços e soltou um barulho muito alto. Todas as pessoas saíram correndo, com medo do gigante. Os animais também fugiram dele. O gigante cansou de correr tanto atrás das pessoas e resolveu ir para a praia dar um cochilo. Ele nunca mais voltou à fazenda e as pessoas ficaram felizes. Fim. (Rodrigo e Daniel)

Cabrito e Touro de Fogo
Era uma vez dois gigantes que se chamavam Cabrito e Touro de Fogo. Os dois foram passear em uma cidade. Enquanto andavam, um homem malvado jogou fogo na rua. Os gigantes quiseram apagar o fogo para não machucar ninguém, mas tropeçaram em uma pedra e caíram em cima de um prédio, que desmoronou e derrubou a casa vizinha. Os pedaços da casa caíram em cima do fogo e o apagou. Os dois gigantes se levantaram, viram que estavam sujos e machucados e foram para casa se limpar. (Guilherme e Leonardo)

Gigante coletivo criado pelas crianças da Escola Grão de Chão

Gigante coletivo criado pelas crianças da Escola Grão de Chão

Gigante coletivo
Nome: Ben
Idade: 1.000.000.000 de anos
Alimentação: carne de mosca, de lesma e de barata.
Poderes: soltar fogo e veneno pelas bocas, voar, fazer as coisas congelarem e descongelarem, se transformar em alienígena e correr extremamente rápido.
Velocidade: 400 km/h
Planeta em que vive: Marte

Ficha Técnica

  • Escola Grão de Chão
    Endereço: Rua Tanabi, 275 – Água Branca. CEP 05002-010 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3672-0208
    Site: www.graodechao.com.br
    Diretora e coordenadora de projetos de Artes Visuais: Lucília Helena Franzini E-mail: lucilia@graodechao.com.br
    Professora: Mariana Isnard Carneiro E-mail: mary3000br@yahoo.com.br

Histórias de gigantes

  • O gigante egoísta, de Oscar Wilde. São Paulo: Cortez, 2011. Tel.: (11) 3611-9616. Site: www.cortezeditora.com.br
  • O BGA – o bom gigante amigo, de Roald Dahl. São Paulo: Editora 34, 2009. Tel.: (11) 3032-6755. Site: www.editora34.com.br
  • O campo dos gigantes, de Rosane Pamplona. São Paulo: Brinque Book, 2009. Tel.: (11) 3032-6436. Site: www.brinquebook.com.br
  • O gigante de meias vermelhas e outros contos, de Pierre Gripari. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Tel.: (11) 3106-9133. Site: www.martinsfontes.com.br
  • João e os sete gigantes mortais, de Sam Swope. São Paulo: Cosac Naify, 2008. Tel.: (11) 3823-6584. Site: www.cosacnaify.com.br
  • Contos de gigantes: narrativas do folclore, de Ernani Ssó. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008. Tel.: (11) 3707-3500. Site: www.ciadasletrinhas.com.br

Para saber mais

Livros

  • O desenho cultivado da criança: prática e formação de educadores, de Rosa Iavelberg. Porto Alegre: Editora Zouk, 2006. Tel.: (51) 3024-7554. Site: www.editorazouk.com.br
  • A criança e seu desenho: o nascimento da arte e da escrita, de Philippe Greig. Porto Alegre: Artmed, 2004. Tel.: 0800 7033444. Site: www.grupoa.com.br
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