Desenhar não é uma atividade inata, mas aprendida. As crianças pequenas podem iniciar uma formação artística desde que encontrem um professor que alimente seus processos. Para que ele possa fazer propostas significativas e tomar decisões adequadas ao que pretende ensinar, precisa conhecer o percurso criador das crianças e regular as interferências de acordo com as reais possibilidades de aprendizagem
Discutir questões relativas a nosso trabalho é uma das melhores formas de aprender mais sobre o fazer pedagógico. Aqui, no Centro de Educação Infantil Adolfo Lutz, costumamos nos reunir, professores e equipe técnica, para discutir aspectos do trabalho, a partir de demandas que detectamos no grupo. Um exemplo recente é Gê, uma das professoras que levantou uma questão interessante: comentou sobre crianças que já são artistas desde pequenas, e que desenham muito bem. Disse que não podemos considerar os trabalhos que as crianças fazem como “obras de arte”, pois o artista estuda para se aperfeiçoar no que faz.
Não me convenci completamente. Mais tarde, pensando nisso, conversei com Adriana Klisys1, que nos dá supervisão. Retomei a questão: crianças são artistas?
E ela respondeu-me: “Não exatamente. Da mesma forma que não dizemos que a criança é escritora, no sentido profissional do termo, também não dizemos que é artista. Mas a criança é ‘um pouco’ artista de certa maneira. O artista não só estuda, como também cria novas formas, novos jeitos de olhar para a realidade, transformando-a em sua prática. Ele cria uma proposição poética: seu trabalho tem intencionalidade, pesquisa conceitual e procedimental, busca um aprimoramento constante.
Penso que podemos dizer que a criança tem intencionalidade e pesquisa procedimentos, entretanto o produto do que faz não tem status de produção artística, tal como entendemos a arte em nossa sociedade, embora possamos considerar que existem produções de crianças superiores a de muitos que se dizem artistas.”
Então, se a criança não é artista mas está em formação, convém que o
professor alimente seu processo, fazendo propostas que a levem a desenhar melhor.
A problematização das intervenções
Planejar boas situações de aprendizagem a partir da atividade de desenho não é simples. Exige do professor a análise das produções das crianças e atenção a seus processos de criação. Pensei, principalmente, na questão que a Gê, professora da turma de 2 a 3 anos, trouxe para a supervisão. Ela contava sobre sua experiência com a interferência gráfica (veja texto abaixo) que propôs às
crianças:
– Tive o maior trabalho de separar figuras de revistas, escolhi uns carros grandes, colei metade da folha de sulfite, e as crianças só rabiscavam em cima. Quando ela me disse isso, fiquei pensando: será que ela esperava que as crianças dessa idade fizessem o restante do carro? Percebi, então, que talvez houvesse alguns mal-entendidos sobre como trabalhar com interferências.
Quando interferimos, devemos saber qual o nosso objetivo, nossa intenção, para que tenhamos condições de elaborar propostas mais adequadas ao que as crianças podem aprender. Mas será que todos sabem quando a interferência gráfica ajuda? Pensando nisso, organizei um encontro de formação e selecionei algumas estratégias para levantar a questão com todo o grupo.
A tematização da produção de desenhos
Inicialmente propus a leitura de um texto selecionado por mim, que falava sobre possibilidades de trabalho com interferências. Levei, então, alguns exemplos de interferência e pedi ao grupo que as avaliasse, apontando as diferenças entre elas.Também preparei algumas folhas de sulfite com interferências gráficas2, algumas boas, outras não, para que as professoras desenhassem a partir dali. Primeiro trabalharam com suportes e figuras inadequados à proposta que eu tinha. Todas reclamaram do material:
– Assim não dá, não tem espaço para fazer nada! – disse uma delas.
– O que você quer que eu desenhe aqui? Não tem um papel maior? – pediu a outra.
Então, em meio a isso tudo, uma das professoras lembrou que as crianças faziam aquilo e não reclamavam de nada. Aproveitei para perguntar se elas achavam que as crianças ficavam satisfeitas com suas produções. Uma delas disse que achava que não,mas também não tinham como reclamar, pois recebiam aquela única proposta. E ainda:
– A gente nem pensava se era uma proposta boa, que ajudava no desenvolvimento do desenho.
Depois dessa discussão, passei as folhas com interferências melhores. Essa proposta foi melhor avaliada, porque tinha gravuras mais definidas, mais espaço, oferecendo mais oportunidades de criação, como vemos a seguir. Concluímos que é preciso pensar em boas interferências, senão vamos continuar nos frustrando com os resultados.
Quando a interferência pode ajudar
Partimos para a análise da questão dos desenhos feitos pelas crianças. Perguntei se era possível propor, para todas as idades, interferências como aquelas que tínhamos visto há pouco. Salete e Sebá (educadoras) disseram que não, pois as crianças só riscam o papel. A Fátima, professora do grupo de crianças de 2 a 3 anos, achava que era possível. Então ela e sua companheira de sala, Irene, apresentaram as propostas com interferência gráfica que haviam feito para sua turma. Elas colaram um triângulo na folha e, antes de entregá-la às crianças, fizeram com a classe uma apreciação do calendário do Volpi.
As professoras esperavam que elas completassem os desenhos geométricamente, mas não foi isso que produziram, como vemos nos exemplos da página seguinte. Propus, a partir daí, a análise do grafismo. Li o texto Fases evolutivas do desenho infantil, do volume I do livro Professor da pré-escola e passei cópia para todas as professoras. Pedi que observassem os exemplos do texto e comparassem com o resultado da interferência inspirada em Volpi. Perguntei se aquilo tinha alterado a produção das crianças.
Será que elas de fato utilizaram a interferência para fazer o desenho? Algumas disseram que não, porque a maioria só fez rabiscos. Outras acharam que as crianças utilizaram a interferência colocada no papel, mas não como as professoras esperavam.
Passamos então a analisar a fase em que cada desenho estava. Usei a seguinte estratégia: mostrei os 20 traços básicos, segundo a autora Rhoda Kellogg (veja texto), e pedi que avaliassem os desenhos das crianças trazidos por elas, procurando identificar ali os que já faziam. Então retomei a pergunta:“para qual grupo, baseado no que disseram, poderíamos trabalhar a expectativa de completar o desenho dessa forma, geometricamente?” As professoras perceberam que as crianças de 1 a 3 anos não conseguem atender a este tipo de proposta.
Concluímos que a interferência ajuda a criança a desenhar melhor, mas é preciso adequar a proposta ao tipo de trabalho gráfico em que ela vem se empenhando. Oferecer uma folha com metade da figura de um carro ou de um rosto, por exemplo, esperando que crianças tão pequenas possam completá-lo, não parece uma boa proposta, pois coloca um nível de desafio que fica fora da real possibilidade da turma.
Por fim, disse que havia muitas possibilidades de interferir nas produções infantis: podíamos propor interferências quanto à forma, à ocupação do espaço, aos tipos de traço, ao colorido, à intensidade, à suavidade, à maneira de utilizar o material etc.Tudo vale a pena e pode ser interessante desde que o professor saiba com clareza as razões que estão por trás de suas propostas. Para quem quiser apreciar e discutir, apresentamos a seguir uma pequena galeria.
1 Formadora do Instituto Avisa lá
2 A edição no 6 de avisa lá trouxe exemplos desse tipo de interferência
(Ana Christina Romani, Psicóloga e coordenadora pedagógica do Centro de Educação Infantil Adolfo Lutz)
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O que é uma interferência
Interferência é toda ação do professor capaz de modificar o percurso criador da criança. Quando bem pensada pode ajudá-la a avançar em algum aspecto de sua produção. É possível interferir de diversas formas.
A interferência gráfica, como as apresentadas por Ana Cristina, é um tipo de proposta que traz alguma marca no suporte oferecido às crianças. Pode ser recortes de imagens – revistas, figuras retiradas de catálogos de arte, jornal etc.– ou mesmo xerox, linhas, pontos, curvas, algo que convide a criança a procurar uma solução para continuar desenhando.
Também é possível interferir quanto ao suporte, definindo a superfície, bi ou tridimensional, que será trabalhada pela criança. É possível variar tanto o formato quanto o tamanho, bem como a espessura e a textura, levando a criança a mudar estratégias e a buscar caminhos diferentes para adequar-se à condição imposta pelo suporte.
Por fim, o professor também pode interferir quanto aos meios que vai oferecer, variando tipos de lápis, giz e outros riscantes que exigem da criança tratamento e procedimentos bem diferentes.
Traços básicos dos desenhos infantis
Durante as décadas de 60 e 70, o desenho infantil foi tema de muitas pesquisas. Entre os estudiosos, destacamos Rhoda Kellogg, que analisou desenhos de crianças de diferentes idades, em vários lugares do mundo. Rhoda descobriu traços básicos, formas de ocupação do espaço e jeitos de combinar presentes em muitas das produções, mostrando que há uma certa regularidade e uma tipologia de elementos básicos em qualquer tentativa de representação simbólica, seja infantil ou adulta. Segundo sua pesquisa estes são os traços básicos:
Conhecer os rabiscos que as crianças fazem, bem como os percursos individuais de cada uma, ajuda o professor a compreender o trabalho das crianças, podendo tomar decisões que impliquem num avanço das aprendizagens de sua turma.
Bibliografia
- Analisis de la expression plástica del preescolar. Rhoda Kellogg. Ed. Cincel. (esgotada, encontra-se apenas em bibliotecas).
- Professor da Pré-Escola. Monique Deheinzelin e Zélia Cavalcanti. Ministério da Educação Fundação Roberto Marinho.