Trocar idéias, confrontar opiniões, conversar com as crianças… Parece simples, mas muitos professores ainda têm dúvidas do que fazer depois da leitura de histórias.
Aleitura de histórias em sala de aula tem sido uma atividade permanente na Educação Infantil, mas com resultados nem sempre satisfatórios e produtivos, tanto para os educadores como para as crianças. Ainda dominam encaminhamentos que objetivam fixar o texto ou verificar sua compreensão – a conhecida interpretação de texto, herança de uma visão da leitura como passível de apenas uma interpretação.
De modo geral, esta orientação tem sido aceita quase como a seqüência natural da atividade de leitura. Os professores, pela dificuldade de acesso a novos conhecimentos ou pela escassa intimidade com o ato de ler, ou mesmo pela falta de orientações e oportunidades para construir significados sobre a leitura, acabam fazendo deste encaminhamento uma prática automatizada, sem nenhuma reflexão.
O que fazer então? Na tentativa de reverter esta situação, em vez da explicação ou dos exercícios de interpretação (orais ou escritos), o melhor a fazer é conversar sobre o texto lido. No lugar da explicação, a conversa. A conversa como espaço e tempo para a explicitação de relações estabelecidas e dos múltiplos sentidos construídos, tanto pelo professor com seus alunos em sala de aula, como no contexto de formação de professores.
De forma objetiva, devemos garantir um espaço/tempo planejado e orientado com a intencionalidade de que a conversa com e entre as crianças possa fluir, ajudando-as a explicitar a variedade das relações e dos múltiplos sentidos implícitos nos textos lidos.
Experiência compartilhada
Quando conseguimos nos encontrar com professores motivados a ultrapassar sua inércia, um novo espaço, mais favorável à construção compartilhada de significados e muito mais gratificante, pode surgir. Foi o que aconteceu comigo e com a professora Bete1 em nossa relação de estudo e reflexão sobre a importância da leitura na alfabetização inicial, particularmente sobre o valor da leitura de histórias como atividade permanente na Educação Infantil. Ela compartilhou comigo seus belos registros das atividades realizadas com alunos.
Depois do primeiro encontro de formação em que refletimos sobre leitura, com base no texto É Possível Ler na Escola, de Délia Lerner2, Bete procurou seguir as orientações que havíamos discutido em grupo, ou seja, encaminhar as situações de leitura com três momentos claramente marcados: a apresentação, a leitura e a conversa posterior. Entre desanimada e incrédula, escreveu no começo do processo:
Roda 1 – A menina que caiu do céu (26 de agosto de 2005)
Livro: Que história é essa – Conto: A menina que caiu do céu
Bete: – Hoje eu vou ler uma história para vocês que conta sobre um homem que se apaixonou por uma moça que veio do céu. É uma história bem interessante. Leitura do conto – Conversa com os alunosBete: – O que vocês acharam desta história?
Ninguém diz nada.
Bete: – Eu achei muito interessante a parte em que os pais ficam felizes pelo filho estar feliz também, querem ver?
Releitura do trecho.
Willian: – Eu gostei da hora em que ela disse que ia devolver as batatas.
Bete: – E por quê?
Willian: – Porque elas tinham levado as batatas sem ninguém saber, aí tinha que devolver. Não pode pegar as coisas dos outros.
Bete: – Ah, eu me lembro. É nesse trecho, não é?Releitura do trecho.
Pedro: – Eu gostei da parte que ele voa para o céu pra procurar a moça!
Bete: – E você se lembra como ela fez pra voar até o céu?
Pedro: – Com o condor!
Bete: – Isso mesmo. Quer que eu leia novamente o trecho pra você?
Pedro: – Quero!Releitura do trecho.
Pedro: – É este mesmo!
Lorena: – Eu gostei da parte que os pais dele ficam felizes por ele!Reflexões da professora
Interessante como no início ninguém disse nada sobre o texto, mas depois que eu verbalizei um trecho que havia me chamado a atenção, logo as crianças começaram a falar também. Elas poderiam ficar presas a trechos parecidos, mas aqui fica evidente que, para cada um, o texto chama a atenção para um trecho. Assim, diversificam nessa discussão sentidos que talvez algumas crianças não tenham percebido no texto.Dúvidas
Que outro tipo de intervenção pode ser feita para que as crianças busquem cada vez mais sentido em várias partes do texto e não somente naquela de que mais gostaram? Como quebrar isso? Eu aponto várias coisas diferentes que percebo no texto: personagens, situações, etc.Este é o caminho?
Reler os trechos aos quais as crianças se remetem é importante para que estabeleçam essa relação entre o oral e o escrito, não é? Ou há outra forma que os ajude a realizar estas relações?A resposta para a professora
Bete,
Talvez uma forma seja investir na apresentação inicial do texto, seja nos motivos da escolha, seja na antecipação da história. Explicitar os motivos, como referência de comportamento leitor, é também para fisgá-los, fazê-los mais interessados no que virá. Antecipar um pouco da história para que, sabendo do que se trata, o que se passa, onde, com quem, possam ter uma escuta mais atenta para a forma como ela se desenvolve e até, talvez, para alguns aspectos da linguagem escrita. Outra forma pode ser a variação dos aspectos destacados no final: impressões, emoções, preferências, etc. Vamos conversar mais sobre isso na reunião.
Abraços,
Virgínia
Conversamos em reunião sobre a relação entre a apresentação da história a ser lida e a conversa posterior. Falamos sobre a identificação dos motivos na escolha do texto, como era decisivo que eles fossem sinceros, verdadeiros, para que as crianças tivessem a referência concreta de um leitor, uma vez que o conteúdo a ser ensinado era o comportamento leitor diante de textos literários,
no caso. Combinamos então que eu faria uma observação da roda de leitura em sua sala, para depois pensarmos juntas sobre o encaminhamento da atividade com o qual ela ainda estava insatisfeita.
Muito do que fazia era novo para ela: havia planejado e estava realizando pela primeira vez uma seqüência didática de leitura pelo professor, iniciada com os livros Ogum, o Rei de Muitas Faces e Outras Histórias, recontado por Lídia Chaib e Elizabeth Rodrigues, da Cia. das Letras, e Oxumarê, O Arco-Íris, de Reginaldo Prandi, da Cia. das Letrinhas3.
Ela tinha dúvida entre seguir simplesmente lendo os textos ou parar para tratar dos conteúdos e mensagens das histórias. Não era uma situação simples de manejar. Bete também fez um registro sobre a roda que eu observara, então pudemos conversar e confrontar nossos pontos de vista sobre o desenvolvimento da atividade.
Roda 2 – O dia em que o arco-íris estancou a chuva (8 de setembro de 2005)
Livro: Oxumarê, O Arco-Íris
História: O Dia em que o Arco-Íris Estancou a Chuva
Leitura da história
Conversa com os alunos
Gustavo: – É muito feio trancar as pessoas e transformá-las em outra coisa!
Lorena: – Mas ele transformou numa cobra pro bem dele!
Bete: – Olhem, vou reler esta parte da história sobre a qual a Lorena está falando, vocês querem?
Caio: – Eu achei igual do Gustavo!
Bete: – O que você achou igual?
Caio: – Achei igual o que ele falou!
Bete: – Sabe, eu fiquei pensando que esta história conta como os africanos explicam o arco-íris, mas como será que o arco-íris se forma no céu?
Pedro: – O Sol e a chuva ficam juntos e aí fica multicolorido!
Caio: – A chuva e o Sol se misturam!
Virgínia: – Quem aqui já viu um arco-íris?
Caio: – Eu já vi! Lá em Foz!
Bete: – E lá em Foz do Iguaçu estava chovendo quando você viu o arco-íris?
Caio: – Não, mas tinha muita água!
João: – Eu já vi um arco-íris lá na outra escola!
Virgínia: – Sabe o que eu acho? Assim como Oxumarê riscou o céu com um punhal e parou a chuva porque estava chovendo muito, ele podia vir aqui pra São Paulo e parar a chuva também, né?
Pedro: – O que é um punhal?
Virgínia: – Eu não acredito que meninos que vêem tantos desenhos não sabem o que é um punhal?
Lorena: – Um punhal é uma espada!
Bete: – É, mas uma espada menor que corta igual a uma espada!Reflexões da professora
Sinto que algumas discussões fluem bem, como foi o caso da história O Menino de Ouro e o Menino de Prata e o Gênio do Rio. Outras, sinto que ficam bloqueadas, e quando isso acontece fico sem saber o que fazer. Na verdade, acho que eu também estou aprendendo, junto com as crianças, a estabelecer estas relações com as histórias e viajar, literalmente, a partir do texto, em vez de ficar presa só no que a história quis dizer.Quando as crianças me perguntam o sentido de algumas palavras, durante a leitura, é um indício de que elas também estão presas a este texto? O melhor é discutir estas questões no final da leitura ou na hora em que aparece a dúvida? Quando tenho de interromper a leitura por algum motivo, sempre tento mostrar-lhes o quanto esta postura atrapalha o ritmo da leitura e o prazer de ouvi-la. Esta é uma postura correta?
A professora leitora
Essa foi uma ótima oportunidade para conversarmos. Por ter realizado a observação da leitura, pude apontar para Bete como ela poderia e deveria apresentar o texto a partir de sua relação pessoal com ele, dos motivos e dos sentidos que ele criava para ela, como leitora e professora. Perguntei, por exemplo, por que não lhe ocorreu iniciar a conversa falando sobre a chuva incessante que caía havia dias na cidade, situação em que um arco-íris seria mais do que bem-vindo para sinalizar o fim da chuva.
Conversamos também sobre a importância de conhecer o que as crianças sabem e ativar os muitos sentidos que algumas expressões têm para elas. E estabelecer, assim, uma referência comum para aquele momento, o arco-íris. Quem já havia visto um? Onde, em que situação? Alguém conhecia a explicação para sua origem? Retomando o texto e as anotações, pudemos analisar quão complexa era a história e como demandava uma apresentação inicial mais cuidadosa e demorada para que as crianças dispusessem de mais elementos para ouvi-la, enriquecendo seus repertórios para conversas posteriores.
Assim, Bete foi autorizando a si mesma a escolher textos a partir de seus próprios critérios afetivos: aqueles de que mais gosta, os que lhe lembram questões de infância, lhe despertam curiosidade.
Roda 3 – A mulher que se transformava em búfalo (30 de setembro de 2005)
Livro: Oxumarê, o Arco-Íris
História: A Mulher que se Transformava em Búfalo
Bete: – A história africana que eu escolhi para hoje conta de uma mulher que se transformava em búfalo. Quando tirava a pele de búfalo e a deixava escondida numa floresta, ela virava uma pessoa.
João: – Ah, Bete não conta a história toda se não perde a graça!
Bete: – Eu não vou contar toda a história, mas será que perde a graça, mesmo? Será que o jeito que eu estou contando é o mesmo jeito que a história está escrita? Será que perde a graça? A gente vai ver hoje. Então, acontece que um deus que se apaixona por ela descobre o segredo da pele de búfalo, rouba a pele e a esconde. Ele mente para a mulher dizendo que não sabia de nenhuma pele, porque queria se casar com ela. Sabe, eu fiquei pensando, quando lia esta história, que muitos contos africanos falam dessa questão de mentir para o outro, enganar o outro. Vocês se lembram de algum conto africano que falava sobre mentir?
Letícia: – O grilo, ele mentiu que sabia quem roubou o anel!
Nikolas: – Do corvo, que o moço mentiu pro corvo pra matar ele.
Bete: – Isso mesmo, a história Soliday e o corvo.
Willian: – É, a aranha também mentiu que ela tinha matado o corvo.
Gustavo: – Do gênio que a moça disse que era a Eme e era mentira.
Lorena: – O menino de ouro!
Bete: – Isso mesmo, vocês verão que esta também conta de alguém que mentiu. Eu vou ler a história para vocês agora, e a gente vai ver se perdeu a graça o fato de eu ter contado um pouco sobre ela.Leitura da história
(Observação: me perguntaram, durante a leitura, o que era acarajé. Bem objetiva, respondi: é um bolinho frito que os africanos fazem.)Conversa com os alunos
Enzo: – Não gostei da parte que ela ficou chifrando as mulheres!
Bete: – Mas as mulheres tinham provocado a Iansã, não é?
Willian: – Ela deveria ter expulsado as três mulheres!
Letícia: – Ou conversado com elas…
Gustavo: – Eu gostei da parte que o Deus se apaixonou por ela. Porque ele sorriu!
Caio: – Ele fez uma coisa feia com ela para se casar!
Ricardo: – Roubou a pele de búfalo!
Bete: – E se vocês fossem este deus desta história, o que vocês fariam para conseguir casar com Iansã, em vez de roubar a pele de búfalo?
Letícia: – Eu pedia por favor pra ela se casar comigo!
Willian: – Pediria de novo a mão dela!
Pedro: – Eu deixava a pele lá. Não pegava!
Bete: – Mas ele estava apaixonado por ela e se deixasse a pele lá ela iria embora!
Pedro: – Eu pegava a pele e devolvia depois que se casasse comigo!
Bete: – Eu fico pensando que talvez um jeito deste deus conquistar a Iansã seria ajudá-la, dar carinho e ser amigo dela.
Bete: – João, você achou que a história perdeu a graça, porque eu contei um pouco sobre ela antes de ler?
João: – Não!
Bete: – É porque eu conto de um jeito e a história está escrita de outro.
Roda 4 – A briga da velha senhora com o ferreiro (3 de outubro de 2005)
Livro: Oxumarê, o Arco-Íris
História: A Briga da Velha Senhora com o Ferreiro
Bete: – Hoje eu escolhi esta história africana que conta de uma festa na qual todos os orixás presentes começam a discutir sobre qual deles era mais importante, passando o tempo todo tentando descobrir qual deles era o melhor deus.Quando eu li esta história, fiquei me perguntando se eles precisavam saber quem era o melhor de todos. Será que nós temos de ser sempre bons em tudo? Às vezes, eu sou boa numa coisa e não tenho tanta habilidade para outra, por exemplo: eu escrevo bem, mas não tenho muita habilidade para desenhar.
João: – Eu sou bom pra correr!
Willian: – Eu sou bom com números!
João: – Eu sou bom no futebol.
Bete: – Então, e será que para ser feliz eu tenho sempre de ser bom em tudo e melhor que os outros?Vamos ver o que acontece nesta história.
Leitura da história
Conversa com os alunos
João: – Gostei da parte da humildade!
Bete: – E o que será que quer dizer humildade?
Willian: – Não fazer o mal!
Pedro: – É muito feio falar que é o melhor, cada um faz uma boa coisa!
Willian: – Não precisa saber que é o bom!
Gustavo: – Eu gostei da parte que fala da faca de metal!
Lorena: – Pode machucar!
Bete: – Mas a faca de metal é importante para fazer algumas coisas, não é?
Lorena: – Comer!
Enzo: – Cortar carne, frango, pão.
Bete: – Mas ela pode ser perigosa, não é?
Pedro: – É, um dia minha avó tava descascando alho e cortou o dedo!
Caio: – Não pode brincar com faca!
Letícia: – A faca pode ser muito perigosa, porque pode pegar em alguém!
Enzo: – Eu quero falar uma coisa: você não precisa brigar com o outro para ser o melhor, porque cada um faz do seu jeito!
Bete: – Eu concordo com você e aqui na história acho que eles perderam algumas coisas ao ficarem discutindo! O que vocês acham?
Pedro: – Perderam tempo!
Gustavo: – Não se divertiram!
Bete: – É mesmo, porque eles estavam numa festa, não é?Reflexões da professora
Depois das nossas conversas e das rodas desta semana, acho que eu consegui mudar minha orientação durante a discussão. Na verdade, antes eu ficava com uma expectativa alta em relação ao que as crianças iriam dizer e esperava que elas tivessem a mesma impressão que eu a respeito do texto. Agora, entendo que esta impressão é apenas uma das muitas que as crianças podem ter e que são pessoais.
Antes da leitura, eu conto a minha impressão, mas não posso fazer com que a conversa depois gire apenas em torno dessa impressão. Cada um terá a sua e deve poder contá-la. Assim, minhas impressões funcionam como referência e não como único tópico a ser discutido pelo grupo.Quanto ao falar sobre a história, antes da leitura, fica evidente, no que disse João, na primeira história, que as crianças, quando já estão habituadas, não perdem o interesse. Aliás, acho que o grupo ficou muito mais interessado em ouvi-la do que antes, quando não conversávamos nada sobre o texto.
Acho que estou aprendendo, me despindo de posturas inadequadas, muitas vezes enraizadas. As rodas de leitura têm ocupado um outro espaço no meu trabalho. Tem sido muito prazeroso compartilhar com as crianças estes espaços dedicados às leituras, troca de impressões, construção de novos significados.
Conversa conquistada
Bete tem estado orgulhosa de sua turma. Está mais tranqüila, menos ansiosa, mais solta e confiante nela mesma e nas crianças, e satisfeita com as rodas de leitura. Conversando e avaliando, pudemos identificar mudanças significativas. Bete reconhece que passou a acreditar mais na capacidade e potencialidade das crianças. Passou a ouvi-las mais, a estar mais atenta para as suas falas, a garantir espaço, tempo e tranqüilidade necessários para a conversa, não interromper e nem induzir respostas.
Por outro lado, a sua maior clareza quanto ao objetivo das rodas de leitura, isto é, o desenvolvimento de comportamentos leitores nas crianças, contribuiu para o encaminhamento mais adequado das atividades, bem como para sua atitude pessoal e profissional. Tomou consciência de seu duplo papel.
Primeiro, como leitora, manifestando suas idéias, opiniões, preferências, servindo assim de referência para as crianças. Segundo, como professora, que entende que ensinar não é transmitir conteúdos, mas criar situações em que as crianças possam agir como leitoras, manifestando suas impressões, emoções, desejos. Enfim, sua ação estimula que as crianças façam parte de uma comunidade de leitores e também se comportem como cidadãos, que pensam sobre o mundo onde vivem, conscientes de seus próprios recursos, possibilidades e qualidades.
Os registros da Bete e suas reflexões, os conteúdos das conversas das crianças antes, durante e depois da leitura das histórias são o testemunho de que a prática da conversação sem o compromisso da fixação favorece a manifestação, por parte delas, de idéias ricas, variadas, interessantes e surpreendentes!
O interesse, o entusiasmo, a coragem da educadora em explicitar suas dúvidas e se questionar são imediatamente premiados pelas crianças com suas perguntas, explicações, definições, fantasias, teorias. O movimento da educadora impulsiona as crianças, que impulsionam a educadora, que impulsiona novamente as crianças…em um modo contínuo. Como diz Bete: “Na verdade, acho que eu também estou aprendendo, ao mesmo tempo que as crianças, a estabelecer estas relações com as histórias e ‘viajar’ no texto, literalmente, em vez de ficar presa no que a história quis dizer”.
(Maria Virginia Gastaldi, formadora do Instituto Avisa Lá, São Paulo)
1Elizabete da Silva Duarte, professora do grupo de crianças com 6 anos, da Escola Nossa Senhora do Morumbi, em São Paulo, onde Denise Tonelo é coordenadora.
2Ler e Escrever na Escola, o Real, o Possível e o Necessário, Delia Lerner, Artmed, 2002.
3Livros sobre histórias de deuses africanos trazidas para o Brasil com os escravos.
Comportamento do leitor
Entre os comportamentos do leitor que implicam interações com outras pessoas acerca dos textos, encontram-se, por exemplo, os seguintes: comentar ou recomendar o que se leu, compartilhar a leitura, confrontar com outros leitores as interpretações geradas por um livro ou uma notícia, discutir sobre as intenções implícitas nas manchetes de certo jornal… Entre os mais privados, por outro lado, encontram-se comportamentos como: antecipar o que segue no texto, reler um fragmento anterior para verificar o que se compreendeu, quando se detecta uma incongruência, saltar o que não se entende ou não interessa e avançar para compreender melhor, identificar-se com o autor ou distanciar-se dele assumindo uma posição crítica, adequar a modalidade de leitura – exploratória ou exaustiva, pausada ou rápida, cuidadosa ou descompromissada… – aos propósitos que se perseguem e ao texto que se está lendo…
(Ler e Escrever na Escola – O real, o Possível e o Necessário, Delia Lerner, pág. 62)
Por que realizar sequências didáticas
O percurso realizado por Bete e seu grupo de alunos foi possível, entre outras coisas, porque ela planejou e desenvolveu uma seqüência didática, modalidade organizativa do tempo didático composta por um conjunto de atividades planejadas e orientadas com o objetivo de promover aprendizagens específicas.
As seqüências de atividades estão direcionadas para a leitura com as crianças de diferentes produções de um mesmo gênero ou subgênero (poemas, contos de aventuras, contos fantásticos etc.), diferentes obras de um mesmo autor ou ainda diferentes textos sobre um mesmo tema.
Ao contrário dos projetos, que se orientam para a elaboração de um produto final, as seqüências incluem situações de leitura, cujo único propósito explícito – compartilhado com as crianças – é ler. Ao contrário das atividades habituais, essas seqüências têm uma duração limitada a algumas semanas de aula, o que permite que se realizem várias delas no curso de um ano letivo e se tenha, assim, acesso a diferentes gêneros. Elas contribuem para o cumprimento de diversos objetivos didáticos: comunicar o sentido e o prazer de ler para conhecer outros mundos possíveis, desenvolver as possibilidades dos alunos de apreciar a qualidade literária (ou detectar sua ausência), formar critérios de seleção do material a ser lido, gerar comportamentos leitores, como o seguimento de determinado gênero, tema ou autor4.
A seqüência didática de contos africanos possibilitou que as crianças conhecessem não somente um pouco da cultura ioruba, mas que, nesse novo contexto criado, conhecessem também um pouco mais a si próprios, uns aos outros e ao mundo em que vivem. Percorrendo os preciosos registros de Bete, isso fica evidente. Alguns exemplos: A questão da mentira em A Mulher que se Transformava em Búfalo, em que a própria Bete, ao apresentar a história, adianta e aponta para as crianças relações entre as histórias já lidas, sinalizando um comportamento leitor, o de seguir um tema: “Sabe, eu fiquei pensando, quando eu lia esta história, que muitos contos africanos falam dessa questão de mentir para o outro, enganar o outro. Vocês se lembram de algum conto africano que falava de mentira?”.
As crianças vão ficando mais à vontade para expressar seus pontos de vista, como em A Briga da Velha Senhora com o Ferreiro: “É muito feio falar que é o melhor! Cada um tem a sua intimidade melhor, cada um faz uma boa coisa!!!” (Pedro), na medida em que aprendem que eles são aceitos e legitimados no espaço da sala de aula. Passam a conversar sobre eles entre si, dispensando a mediação da professora a cada fala, como em A Morte Ajuda Ferreiro numa Disputa com o Trovão:
Andressa: – Ele pediu pra morte dar dinheiro!
Izadora: – Ela não deu dinheiro! Porque ela já é morta, ela não dá dinheiro.
Willian: – Ela assustou um deles e o outro pegou o dinheiro do que ficou assustado!
Gustavo: – Quando meu peixe morreu, eu pensei que ele estava dormindo, mas ele não acordava, aí eu fui avisar a mamãe que o Batatinha tinha morrido!
A seqüência vai promovendo ganhos nas aprendizagens das crianças, diferentes daqueles das atividades permanentes, em que os objetivos são os de aproximar as crianças de um conteúdo, de criar hábito e familiaridade. Com o desenvolvimento da seqüência didática, as crianças e a professora vão trazendo para a cena textos já lidos, experiências já vividas e, agindo como leitores reais, tecem na intertextualidade uma significação comum para essas experiências e buscas.
Ficha técnica
Realização: Colégio Nossa Senhora do Morumbi. Av. Giovanni Gronchi, 4.000. CEP: 05724-020 – São Paulo – SP. Tel.: (11) 3742-5513. E-mail: nsmorumbi@nsmorumbi.com.br / Site: www.nsmorumbi.com.br
Consultoria: Maria Virginia Gastaldi
Coordenadora Pedagógica: Denise Milan Tonello
Para saber mais
- Ler e Escrever na Escola – O Real, o Possível e o Necessário, Delia Lerner. Ed. Artmed, tel.: 0800-703-3444.
- Que História É Essa?, Flávio de Souza. Cia das Letrinhas, tel.: 0800-014- 2829.
- Ogum, O Rei de Muitas Faces e Outras Histórias, recontado por Lídia Chaib e Elizabeth Rodrigues. Ed. Cia das Letras, tel.: 0800-014-2829.
- Oxumarê, O Arco-Íris, Reginaldo Prandi. Ed. Cia das Letrinhas, tel.: 0800-014-2829.
- Sete Contos Russos, Tatiana Belinky. Ed. Cia das Letrinhas, tel.: 0800-014-2829.
- Acordais: Fundamentos Teórico-Poéticos da Arte de Contar Histórias, Regina Machado. Editora DCL, tel.: (11) 3932-5222.