O convívio respeitoso, estimulante e parceiro entre unidade educativa e famílias é muito importante para as crianças que frequentam a educação infantil. Será tão difícil conseguir isto?
“A relação é ferramenta de trabalho do educador” (Maria Carmem Silveira Barbosa)
Fazer valer o princípio da participação e da democracia nas escolas de Educação Infantil exige muito investimento a curto, médio e longo prazo, intencionalidade por parte dos gestores e sintonia de propósito com toda a equipe escolar. O município de Penápolis (SP) atingiu mais uma etapa nesta direção, planejando ações para estreitar o vínculo entre familiares, educadores e famílias das crianças, visando criar uma comunidade educativa.
No novo sistema de educação pública, a escola deve ser um lugar para todos, um lugar de encontro no sentido físico, social, cultural e político da palavra. Um fórum ou lugar para se encontrar e se relacionar, onde crianças e adultos se encontram e se comprometem com alguma coisa; onde dialogam, ouvem e discutem para partilhar significados. É um lugar de infinitas possibilidades culturais, linguísticas, sociais, estéticas, éticas, econômicas e políticas. Um lugar da práxis ética e política, um espaço para a aprendizagem democrática. Um lugar para a pesquisa e a criatividade, coexistência e prazer, reflexão crítica e emancipação. (Associació de Mestres Rosa Sensat, 2005, p. 10. In: MOSS, Peter. Introduzindo a política na creche: a educação infantil como prática democrática. PSICOLOGIA USP, São Paulo, julho/setembro, 2009)
Na visita diagnóstica1 realizada na cidade viu-se que as escolas já haviam avançado na compreensão da importância de receber os familiares das crianças nas salas nos momentos da entrada e saída. Este é um aspecto essencial para promover a troca de informações cotidianas entre educadores e pais. No entanto, revelou-se também a baixa participação dos familiares nas reuniões e o desconhecimento da proposta pedagógica das escolas por parte dos pais.
Um ponto de vista interessante foi expresso por uma mãe que participou da reunião diagnóstica. Ela gostaria de participar mais das atividades da escola; gostaria, por exemplo, de participar de passeios… Essa colocação singela e pertinente contaminou, no bom sentido, os projetos institucionais desenvolvidos na formação dos gestores e educadores no contexto do Programa de Desenvolvimento Infantil da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal2, revelando mais uma vez que escutar os familiares faz avançar significativamente o trabalho das escolas.
Durante a formação, os educadores revelaram alguns receios com relação à participação nas atividades cotidianas da escola. Temiam, por exemplo, que os pais não compreendessem o contexto institucional da escola, espaço em que os educadores precisam dividir a atenção com outras crianças, e que interpretassem mal suas ações. Surgiram também, em diversas ocasiões, críticas às famílias, especialmente às mães – não cuidam das crianças, não impõem limites –, queixas muito frequentes em serviços que atendem à primeira infância.
A construção de uma relação de compartilhamento e complementaridade entre família e escola na educação das crianças pequenas, apontada no texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) ainda necessita ser discutida em profundidade com os profissionais da Educação Infantil. A visão de família pouco competente no cuidado dos filhos tem raízes históricas.
As mães que precisam deixar os filhos aos cuidados de outras mulheres são ainda malvistas na sociedade. Afinal, uma das funções primordiais da mulher não seria educar sua prole? As creches, por sua vez, tradicionalmente ainda ocupam papéis que são de responsabilidade da família, como o banho diário em todas as crianças, dar presente no Natal ou ovos na Páscoa. Muitas vezes os profissionais se colocam no lugar daquele que sabe tudo sobre como educar melhor as crianças. Não raras vezes há uma desqualificação das famílias.
Ser pai e mãe não é instintivo, se aprende, e essa aprendizagem se dá na reflexão e no convívio com outras famílias, observando outros modos de agir em situações semelhantes. Ora, nada mais apropriado que os Centros de Educação Infantil para isso, já que, por sua própria natureza, lidam com várias famílias.
Visando ampliar a concepção de família, discutimos com o grupo a partir de algumas imagens de arte. Que ideias nos transmitem tais imagens? Em que medida as famílias retratadas se parecem ou se diferenciam da nossa? Há características que gostaríamos que as famílias das crianças da escola tivessem? Como é em nossa casa? Com essas perguntas e com o debate que se seguiu entre os participantes – a escola, muitas vezes, cobra muito dos familiares – verificou-se de que forma alimentamos uma visão idealizada e, portanto, muito diferente da família real das crianças da escola, e mesmo de nossas famílias, e concluiu-se: existem famílias de todos os tipos, de todas as cores, de todas as formas, de vários humores. São tão parecidas e, ao mesmo tempo, tão diferentes! Mas, sem dúvida, todas elas têm a sua maneira singular e especial de ser e de contribuir com a história da Educação Infantil na nossa escola.
Na ocasião, Célia Sena, gestora do Centro de Educação Infantil Municipal – CEIM Branca de Neve, arriscou uma poesia sobre o tema:
Sorrisos, afagos, amores
Abraços em ternos braçosPerfeito seria
Não fosse a imperfeição da vida
Que teima em jogar ao vento
Traumas, dramas, feridasPares tornam-se ímpares
Continentes transformam-se em ilhas
Pessoas que vêm e que vão
Caminhando diversas trilhas
O mito do amor materno
Será o amor materno um instinto, uma tendência feminina inata, ou depende, em grande parte, de um comportamento social, variável de acordo com a época e os costumes? É essa a pergunta que Elisabeth Badinter procura responder no livro Um amor conquistado: o mito do amor materno3, desenvolvendo, para isso, extensa pesquisa histórica.
A autora conclui que o instinto materno é um mito, não havendo uma conduta materna universal. Ao contrário, a autora constata a extrema variabilidade desse sentimento, segundo a cultura, as ambições ou as frustrações da mãe. Não pode, então, fugir à conclusão de que o amor materno é apenas um sentimento humano como outro qualquer e, como tal, incerto, frágil e imperfeito. Pode existir ou não, pode aparecer e desaparecer, mostrar-se forte ou frágil, preferir um filho ou ser igual para todos. Contrariando a crença generalizada em nossos dias, ele não está profundamente inscrito na natureza feminina.
Observando-se a evolução na história das atitudes maternas, verifica-se que o interesse e a dedicação à criança não existiram em todas as épocas, em todos os meios sociais. As diferentes maneiras de expressar o amor ou não são extremamente variáveis.
O amor materno não constitui um sentimento inerente à condição de mulher; ele não é um determinismo, mas algo que se adquire. Tal como o vemos hoje, é produto da evolução social desde princípios do século XIX, já que, como o exame dos dados históricos revela, nos séculos XVII e XVIII o próprio conceito do amor da mãe aos filhos era outro: geralmente, desde cedo, as crianças eram entregues às amas para que as criassem. Elas só voltavam ao lar depois dos cinco anos. Dessa maneira, como todos os sentimentos humanos, ele varia de acordo com as flutuações socioeconômicas da história. (Sinopse do livro Um amor conquistado: o mito do amor materno)
Movidos por essas reflexões, os gestores das unidades educativas de Penápolis e os educadores elaboraram projetos institucionais visando aproximar os familiares, promovendo situações significativas de convívio entre educadores, pais, avós e crianças, com vistas a descobrir e valorizar as características e os valores culturais da comunidade.
Os projetos desenvolvidos apostaram que investir no estreitamento dos laços entre educadores e familiares contribuiria para dirimir os conflitos e transformaria a visão dos educadores sobre as famílias. O CEIM Jardim Pevi optou pelo acolhimento cotidiano das crianças acompanhadas de seus familiares, flexibilizou os horários de entrada e saída e organizou situações de brincadeira e atividades de artes em que os familiares pudessem participar com as crianças e educadores.
Ação simples que permitiu aos educadores construir um olhar mais positivo sobre as famílias que, por sua vez, vivenciaram situações significativas junto aos filhos no espaço escolar, como mostra o depoimento de uma das mães envolvidas: “Fui, brinquei, corri, curti com outras mães, não me importando com nada. Sim, vi nos olhos de minha filha a alegria de me ver ali com ela”.
A escola organizou uma caixa de sugestões para colher a opinião da comunidade e identificar temas pertinentes para as reuniões de pais. Organizou um lanche preparado conjuntamente pelas mães e cozinheiras, passeios coletivos, idas ao teatro e leitura de histórias.
Visando incluir os pais, o CEIM Renascer realizou uma oficina de confecção de brinquedos, que contou com a colaboração de todos na organização dos cantinhos de brincadeira nas salas para receber as crianças. O CEIM Alphaville investiu em visitas às casas dos alunos com o grupo, o que aprofundou o conhecimento dos professores sobre o contexto de vida das crianças que, por sua vez, puderam conhecer mais sobre os diferentes modos de vida dos colegas. A equipe concluiu que o trabalho torna-se mais fácil quando os familiares estão próximos.
Além disso, as escolas reorganizaram os murais informativos dedicados aos familiares, com artigos sobre saúde e educação, cardápio do dia, rotina dos grupos e divulgação do trabalho pedagógico, com produção contextualizada das crianças, com legendas explicativas, para que os familiares pudessem compreender as propostas e aprendizagens. A transformação do olhar dos educadores sobre as famílias é relatada por uma das diretoras:
“No início da implantação do projeto algumas educadoras se mostravam inseguras, preocupadas com a reação dos familiares; contudo, essa condição foi se abrandando à medida que perceberam o envolvimento dos familiares e as demonstrações de valorização do trabalho realiza do na unidade. A equipe decidiu que o projeto deve-se tornar uma ação permanente, pois precisamos conhecer melhor as famílias, valorizar seus aspectos positivos, sem preconceitos ou julgamento.”
(Eliana Chalmers Sisla, atua na formação de profissionais da Educação Infantil em vários municípios do Estado de São Paulo pelo Instituto Avisa Lá e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, ambos localizados em São Paulo-SP)
1Reuniram-se educadores, gestores escolares e técnicos do município e familiares para discutir as necessidades dos CEIMs de Penápolis com vistas à formação que seria empreendida por meio do Programa de Desenvolvimento Infantil da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.
2Pautada pela convicção de que as vivências da primeira infância são determinantes para todo o desenvolvimento do ser humano, amplamente referendada por pesquisas em neuropediatria, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal vem investindo em programas de desenvolvimento para as crianças de 0 a 3 anos em diversos municípios paulistas, envolvendo ações, entre outras, de formação dos profissionais da saúde, da educação e de gestores públicos.
3Um amor conquistado: o mito do amor materno – Elisabeth Badinter – Nova Fronteira, 1985
Para refletir com a equipe
Como os familiares são acolhidos em nossa escola?
De que forma o trabalho com as famílias está inscrito na organização do espaço da escola?
Encontro de pais e professores
Os pais entram na unidade escolar? Os corredores comportam o fluxo? Há possibilidade de flexibilizar os horários de entrada e saída? Os professores são orientados sobre a forma de acolher os familiares? As atividades propostas na entrada e saída permitem ao professor acolher a criança e seus familiares? Os familiares podem se despedir com calma das crianças? A rotina do grupo está afixada na sala?
Murais
Há murais com informativos para os pais? São atraentes, estão em local estratégico? As informações são pertinentes e interessantes? O cardápio está afixado? As atividades das crianças estão expostas nos locais coletivos da escola? Está de acordo com a estatura das crianças? As legendas revelam a proposta da atividade? Propiciam aos familiares a apreciação das produções das crianças, valorizando-as?
Recepção
Como se dá a recepção dos pais? Há agendamento de reuniões? Como está organizada a recepção: o mobiliário é confortável, há oferta de água e café? Há informativos sobre a escola para levar para casa? Há espaço adequado para a mãe que amamenta: sofá, apoio para pés, almofada, água e imagem bonita para apreciar? Há caixa de sugestões para os familiares?
Ficha Técnica
- Programa de Desenvolvimento Infantil (0 a 3 anos) da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal
Consultora: Eliana Chalmers Sisla (Lica)
E-mail: lsisla@gmail.com
Centros de Educação Infantil do Município de Penápolis (SP)
Chefe do Serviço do Centro de Educação Infantil Municipal (CEIM): Leonila de Aguiar Torrezan
E-mail: ceim.eduinfantil.pmp@terra.com.br
Para saber mais
Livro
- Um amor conquistado: o mito do amor materno, de Elisabeth Badinter. 4a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Tel.: (21) 3882-8200. Site: www.ediouro.com.br//site/blogs_portal/novafronteira/
Site
- Práticas cotidianas na Educação Infantil: Bases para a reflexão sobre as Orientações Curriculares. Programa Currículo em Movimento, de Maria Carmem Silveira Barbosa. Brasília: Ministério da educação e do Desporto e Secretaria de Educação Fundamental (MEC/SEF), 2009. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/relat_seb_praticas_cotidianas.pdf>