Sopas, chás, mingaus e outros que tais. Mais que alimentos, essas delicadas delícias são um verdadeiro banquete para a alma nos momentos de tristeza, saudade ou até mesmo de dor de cotovelo. Isso é o que pensa a cronista e gourmet Nina Horta em seu livro Não é Sopa. Inspirados pela autora a equipe de operacionais da creche e pré-escola Gota de Leite, em Santos, SP, resgatou suas próprias comidas da alma para editar um pequeno livro. Para falar sobre o assunto avisa lá convidou a nutricionista Elza Corsi1, que orientou o grupo
Para Elza Corsi, bióloga, nutricionista, amante da boa cozinha e dedicada formadora, os cozinheiros, nas instituições de educação, fazem muito mais do apenas preparar alimentos: “esses profissionais estão ligados aos papéis que a alimentação exerce nas relações humanas, pois é certo que a alimentação serve para nutrir mas também para intermediar relações, tranqüilizar, festejar, celebrar, acolher etc.”.
Contudo, muitos dos profissionais que lidam com a alimentação não têm consciência de seu papel. Por isso, é importante que o processo de formação garanta a construção de uma identidade profissional que amplie e fortaleça sua atuação. Para tanto, Elza utiliza diversas estratégias. Uma delas é a apresentação de crônicas sobre o assunto, como as de Nina Horta, autora de Comida de Alma, que está no livro Não é Sopa.
Na entrevista a seguir, Elza nos fala das relações entre cultura, alimentação e educação e de como utiliza o texto de Nina no trabalho de formação de cozinheiros de educação infantil, em especial nos encontros com a equipe da Gota de Leite.
avisa lá: Como você vê o papel da alimentação na vida das pessoas?
Elza: A alimentação é muito importante para o ser humano. Comer é uma ação presente em toda sua vida, literalmente, do nascimento até a morte.
Existe a função de nutrir o corpo, propriamente falando, para que se garanta a sobrevivência, mas não é só isso. Muitas vezes nos alimentamos para nos relacionarmos com as pessoas. Pensamos num jantar para os amigos, numa ceia para a família. Quando arrumamos um namorado novo, por exemplo, a primeira coisa que pensamos é: “de que prato que ele gosta” ou “a que restaurante vou levá-lo, que há uma comida boa?” A comida traz consigo um sentido de aproximação, abre espaço para conversar mais tranqüilamente, para mostrar afetividade, compartilhar.
avisa lá: E a comida da alma,o que é?
Elza: É a comida que a gente não precisa mastigar muito, que escorrega pela garganta, segundo a Nina Horta. É úmida, quentinha, gostosa. Pode ser um chá com canela, uma sopinha de pão com leite morno. É uma comida que não foi obrigatoriamente feita para alimentar o corpo mas sim a alma, para amainar a tristeza, a dor de cotovelo, para consolar, apaziguar. É a comida do consolo que precisamos quando caímos e machucamos o joelho ou quando o namorado foi embora. O livro Não é Sopa da Nina Horta traz algumas receitas da alma que ela resgata da infância, aquelas que nos relacionam com nossas histórias e nos remetem à memória de algum momento em que fomos cuidados por alguém que nos preparou um alimento especial.
avisa lá: A gente pede ou ganha a comida da alma?
Elza: No começo a gente ganha de um adulto mais experiente que sabe cuidar, percebe nossas necessidades e vem consolar. Depois que a gente descobre o que é, rapidamente aprende a pedir. Eu, por exemplo, sempre fui cercada por mulheres que sabiam fazer comidas da alma. Minha avó acordava bem cedinho, cinco horas da manhã, na fazenda, e ia para o curral buscar leite. Os netos dormiam num quarto que dava para o curral. Ela corria para lá com um monte de copos e uma bandeja, tirava um monte de leite da vaca, com aquela espuma branquinha, voltava com os copos cheios e batia na janela.
A gente levantava da cama e bebia o leite morninho, ali mesmo na janela. Depois voltava para a cama. Uma tia fazia fios de ovos. Cortava papelmanteiga e fazia bolinhos com os fios de ovos, como se fossem balas, e a gente ganhava no fim da tarde. A outra avó servia uma sopinha pela manhã: pegava uma cumbuquinha, punha leite, pão e canela. Era dada na cama,bem quentinha, no inverno. Era muito bom. Por isso, é claro, a gente aprendia a pedir.
avisa lá: Como você usa o texto de Nina Horta na formação das cozinheiras?
Elza: A crônica Comida de Alma é um belíssimo gancho para começar a construir a identidade profissional, para trabalhar com a estética e criação de receitas. Eu leio para as cozinheiras. É impressionante a identificação que elas demonstram. Rapidamente começam a falar de suas memórias de infância, histórias às vezes tristes, outras divertidas, recursos e artimanhas que utilizavam, quando crianças, para receber atenção e carinho.
Depois de ler e conversar sobre a crônica de Nina Horta eu convido as cozinheiras a escrever suas receitas da alma. Em geral elas se tornam orgulhosas de seu trabalho, porque compreendem que cozinhar em uma instituição de educação não é só fazer comida. Sabem que têm um papel educacional na formação das crianças que se alimentam por suas mãos no mínimo três vezes por dia. Passam a perceber as crianças, a olhar para elas. Desenvolvem uma atitude mais carinhosa e se permitem fazer coisas que antes não faziam. Num dia de chuva, por exemplo, podem fazer bolinhos de chuva, para agradar. Quando alguém está mais manhoso, podem dispor de um tempo para fazer um chazinho, sabendo que não vai alimentar o corpo e sim levar carinho e atenção, um jeito de cuidar.
avisa lá: Como surgiu Receitas da Alma em Santos?
Elza: Na Gota de Leite, as cozinheiras e as faxineiras estão há dois anos vivendo um intenso processo de formação profissional.A equipe faz reuniões de planejamento de suas ações e encontros mensais para discutir e aprender mais sobre as especificidades de seu trabalho.
O grupo leu a crônica Comidas da Alma, de Nina Horta, e durante alguns meses, com o apoio da diretora Marlene Remião e de uma atenta escriba (veja box), as pessoas levantaram as comidas que marcaram suas histórias, trazendo à tona lembranças de cuidados essenciais à infância.
Ao final elas publicaram um livro, depois doado a oito instituições de educação da cidade que compareceram ao seminário organizado na creche. “O livro é dedicado a todas as pessoas que trazem no coração receitas para praticar o amor”, dizem as autoras logo nas primeiras páginas. E ainda: “são receitas elaboradas com dedicação …trazem histórias de pessoas especiais, transmitidas a você para que consigamos compartilhar a sensação de estar alimentando não só o corpo, mas também a alma. Quando fizermos algumas das receitas contidas nesse livro, saberemos que se trata de muito mais que uma simples refeição”.
Quem é Nina Horta – a escritora que regala o paladar
Mineira de origem, Nina Horta chegou a São Paulo aos cinco anos e por aqui ficou. Formou-se em pedagogia, mas dedicou grande parte de sua carreira a estudar a arte culinária. O bom humor, a perspicácia e a inteligência com que Nina escrevia as crônicas para o jornal Folha de São Paulo conquistaram os leitores curiosos e amantes da culinária, sempre dispostos a folhear uma página a mais para encontrar as delícias do sabor, da memória, da arte e da história. “Onde estão as receitas de antanho, repetidas num sem-fim, perpetuadas através dos tempos como histórias infantis em que não se pode mudar uma vírgula? Onde aquele compromisso com o passado? A paz de criança dormindo, o conforto do conhecido, do maduro?”, diz ela ao defender o bom livro de receitas tradicionais.
Certamente podemos encontrar isso e muito mais nas páginas de seu livro Não é Sopa, da editora Cia. das Letras. Entremeadas de boa prosa, encontram-se receitas tradicionais, inventadas, copiadas ou oferecidas pelas leitoras e colaboradoras da boa mesa. Procurada pela avisa lá, Nina mostrou-se satisfeita com a repercussão de seu trabalho nas creches e diz estar animada e inspirada para escrever um novo livro. Nós, leitores fiéis, aguardamos ansiosos!
Central do Brasil na cozinha: alternativas para enfrentar a dificuldade de escrever
Escrever receitas da alma, acompanhadas de suas histórias, foi a tarefa que Elza deixou para a equipe operacional da Gota de Leite. Parecia interessante, porém nada fácil. Sabemos da dificuldade que muitas pessoas encontram ao lidar com a língua escrita, sobretudo no caso de profissionais que, por diversos motivos, não tiveram durante os anos de escolaridade um contato mais íntimo com a leitura e a escrita.
A dificuldade de se expressar por escrito muitas vezes envergonha e impede que as pessoas registrem e socializem suas idéias. Mas, em Santos, isso não foi empecilho. A exemplo de Dora – representada pela atriz Fernanda Montenegro no filme Central do Brasil, de Walter Salles –, que se punha diariamente a escrever as cartas ditadas pelos nordestinos que mandavam notícias aos familiares distantes, Léa, da equipe operacional da creche, se pôs a registrar as histórias que ouvia de suas companheiras de trabalho nos corredores da Gota de Leite.
Elogiada por uns e criticada por outros, ela se explica: “estão dizendo que eu é que escrevi o livro, mas não foi, não! Eu só ouvi as histórias. Eu ia perguntando e depois escrevia tudo. Melhorava um pouco para escrever. Mas as histórias foram elas que me contaram.” Graças à escuta atenta de Léa e o registro, Ruth Maria, Domingas, Maremy, Maria, Maria do Carmo, Maria José dos Santos e Maria José Arruda puderam transmitir suas tradições, levando adiante um conhecimento que servirá não só às crianças e ao seu grupo de trabalho, como também às cozinheiras de oito creches que também poderão, depois desta agradável leitura, descobrir as memórias e os cuidados que estão por trás das comidas da alma.
Mingau de Canela
Quando eu estava meio adoentada ou um pouco triste, minha mãe fazia esse mingau. Eu me lembro que gostava tanto porque ela levava na cama e se preocupava perguntando se eu estava melhor, se queria mais. Às vezes eu pedia que ela fizesse, mas não era a mesma coisa se eu não estivesse doente.
Ingredientes:
1 copo de leite
1 colher de maisena
canela
açúcar a gosto
Modo de preparar:
Engrossar no fogo, retirar, colocar no prato fundo e salpicar canela.
(Marlene Remião)
Salada de batatas com ovos
Quando criança, lembro que minha mãe tinha uma criação de galinhas e cada filho cuidava de uma em especial. Quando a galinha botava os ovos era uma briga, porque eu queria comer o ovo da minha galinha. A minha irmã mais velha, que tomava conta de mim e dos meus irmãos, preparava uma salada de ovos, que era a minha favorita. Então, quando eu chegava do colégio, ia correndo ver se tinha a salada com ovos da minha galinha.
Ingredientes:
Batatas
ovos
sal
Modo de preparar:
Depois de cozidas, picar as batatas e misturar os ovos também cozidos e picados.Temperar com sal.
(Ruth Maria da Silva Santos)
Capim Cidrao
Eu me chamo Maria José Arruda.Tenho 60 anos. Quando nasci, já vim carregando comigo sofrimento.Tivemos dificuldades financeiras, éramos oito irmãos. Naquela época, nós vivíamos resfriados, então mamãe começou a fazer esse chá, que por sinal é uma delícia. Hoje em dia, quando meus filhos e netos ficam resfriados, eu logo vou dando a eles o que eu aprendi com mamãe.Todas as vezes eu lembro da minha infância, dos meus irmãos e da minha mãe, principalmente. Na época de chuva ela também dava esse chá para nós, para prevenir doenças. Pois essa é uma lembrança que jamais se apagará em minha mente.
Ingredientes:
6 folhas de Capim Cidrão
1 copo de água
1 gema
Açúcar a gosto
Modo de preparar:
Lave bem as folhas. Depois, coloque-as em uma leiteira com 1 copo de água. Leve ao fogo para ferver. Depois de fervido, bata a gema do ovo, coloque no chá ainda quente e mexa para fazer a mistura. É só beber.
(Maria José de Morais Arruda)
Ficha técnica:
Participaram do projeto proposto por Elza Corsi: Domingas V. de Andrade, Maremy Ortiz de O. Santos, Maria B. de Oliveira, Maria do Carmo de Jesus, Maria José dos Santos, Maria José Arruda e Ruth Maria da S. Santos, sob a coordenação de Marlene Remião.Valdiléa Alves M. Silva escreveu e preparou os originais editados e diagramados por Carla Luizato.
Gota de Leite.Av. Conselheiro Nébias, 388, Encruzilhada, Santos, SP, 11045-000. Tel.: (13) 3234-5933.
E-mail: gotadeleite@uol.com.br Contatos com Elza: elzacorsi@bol.com.br
Bibliografia:
- Não é Sopa. Nina Horta. Ed. Cia. das Letras.Tel.: (11) 3846-0801