Este fato aconteceu num abrigo de crianças em situação de risco*, onde a educadora Márcia Cristina começou a trabalhar, enfrentando a resistência das crianças
No segundo encontro com a turma foi-me reservada a sala de vídeo; as crianças foram levadas para lá. Eu tinha previsto uma série de atividades que de fato aconteceram, mas tive muitos problemas. Levei uma grande cartolina colorida para marcarmos os nomes dos integrantes do grupo. As crianças foram chegando e reclamando por estarem ali. Uma criança ficou ligando e desligando a TV. Outras gritando e algumas correndo pela sala. Do grupo todo, apenas três decidiram sentar-se.
Os adultos da instituição – as outras professoras e a coordenadora pedagógica – também estavam agitados: trancavam e destrancavam portas, toda hora tinha criança batendo na porta de minha sala, enfim, uma bagunça. Com tudo isso acontecendo, fui tentar contar uma história, Guilherme Augusto. Tinha tudo a ver com a proposta, mas o grupo recebeu muito mal, dizendo que alguns já conheciam, que eu já havia lido e eu dizia que sim, que reler uma história poderia ser bem interessante.
Conforme fui lendo, alguns sentaram-se e outros resolveram intensificar a confusão: corriam pela sala batendo as almofadas de couro no chão, fazendo um barulho imenso. Chegou um momento em que eu explodi e dei uma bronca nos meninos que estavam provocando o tumulto, dizendo-lhes que, se não parassem, não poderiam continuar ali na sala.T. dizia que não iria embora e que lá permaneceria fazendo bagunça. C. e P. seguiram-no. Nisso o grupo todo entrou na bagunça. Os três saíram, finalmente. Li a história para o restante e então improvisei uma brincadeira que foi a salvação da lavoura! Como tinha um barbante nas mãos, coloquei-o na cabeça do menininho que estava a meu lado e falei:
– Assim como a velhinha da história, vamos
puxar uma lembrança da memória do C.
E quando o C. disse pronto, eu puxei o barbante e ele contou sua lembrança. Em seguida, eu “devolvi” aquela lembrança à sua memória, tocando-o novamente com o barbante, para que ele pudesse pescar uma do amigo ao lado e assim sucessivamente. Os relatos foram muito interessantes.
– Lembrei de um ursinho que eu tenho – disse um.
– O meu pai brincando – acrescentou o outro.
– Um dia em que dei arroz que a minha mãe fez para um garotinho que morava na rua.
– Uma pipa roxa e preta que soltei no ar.
– Uma vez que eu dei comidinha para um cachorrinho.
Pareciam uns anjos encantados. Foi um momento muito delicado e singelo. Todos conseguiram acalmar-se, sorrindo. Sinceramente eu gostaria de saber acertar mais o que toca essas crianças.
(Márcia Cristina da Silva)
*O abrigo em que Márcia trabalha assume provisoriamente a guarda de crianças em situação de risco. A omissão de seus nomes é uma solicitação legal, uma medida para protegê-las. Márcia vai ao abrigo duas vezes por mês para desenvolver um trabalho que serve como referência para iniciativas das educadoras. Até então, o abrigo não tinha uma rotina pedagógica e as crianças não conheciam a Márcia. Apesar dos problemas, sua intervenção tem sido bem-sucedida. Em pouco tempo, ela criou vínculos com a turma e desenvolveu um trabalho muito interessante.