Recriar dá mais sentido

A recriação e o desenho de observação podem imprimir marca pessoal ao trabalho das crianças de educação infantil
“Nossa Senhora das Dores” (Ilustração de criança de 6 anos)

“Nossa Senhora das Dores” (Ilustração de criança de 6 anos)

O Programa Formar em Rede 1, há 4 anos, vem desenvolvendo ações formativas a distância, que colocam em jogo os saberes dos formadores locais no contexto dos conteúdos e consideram as decisões tomadas na própria dinâmica da ação com os coordenadores e diretores. Para acompanhar esse trabalho, baseamo-nos em ações como a elaboração de projetos institucionais, o desenvolvimento de pautas para os encontros de formação, os relatórios que retratam as escolhas e as decisões tomadas pelo formador e a reunião online. Esta última, que conta com a participação dos formadores de todos os municípios envolvidos, tem como objetivo promover reflexões sobre um determinado conteúdo e criar condições para que os formadores locais aprofundem seus conhecimentos.

No decorrer de 2009, o tema que sustentou todas as discussões no âmbito formativo foi a Arte, com ênfase na linguagem do desenho. Discutiram-se o significado do processo de criação das crianças, a apropriação de novos conhecimentos e os desdobramentos disso nas discussões e orientações desenvolvidas pelos coordenadores e diretores nos contextos das instituições envolvidas. As ações formativas tiveram como princípio a reflexão e a construção de uma relação sensível com o mundo que permitisse aos sujeitos participantes do processo de formação iluminar pensamentos e fazer escolhas pautadas no cuidado, na fruição e na possibilidade de transformação do real. Ou seja, o tema deveria estar nos conteúdos da formação, no interior das instituições envolvidas, e fora delas, como também ser intensamente vivenciado por todos os responsáveis pela construção de ambientes estéticamente cuidados.

Releitura e cópia
A apresentação e apreciação de belas imagens foram recursos usados com frequência na formação, contribuindo, assim, com a ampliação do repertório e de referências para a construção da sensibilidade estética dos envolvidos com o trabalho. Portanto, a visita a museus e a outros espaços dedicados à Arte, a apreciação e a vivência estética foram determinantes no processo. Esse contato com diversas imagens, sem dúvida, propiciou um novo cenário para os ambientes das instituições e ampliou as possibilidades de criação. Contudo, também propôs um desafio a ser tratado na formação: refletir sobre a adequação do uso de imagens de artistas na Educação Infantil.

Alguns relatórios e materiais produzidos pelas formadoras revelaram uma prática comum nas instituições – a releitura –, que se baseava na proposição de cópias de desenhos ou pinturas semelhantes aos produzidos por artistas renomados. Ao longo das conversas ficou claro que a apreciação de bons modelos faz parte do processo de construção de novos conhecimentos. Muitos foram os artistas que buscaram inspiração para aprofundar seus saberes nas artes plásticas e dar mais sentido à própria criação. No entanto, foi muito importante fazer com que os formadores compreendessem o significado dessas práticas de cópia ou de releitura na Educação Infantil.

Desenho “Obra do Aleijadinho” (Wellington, 6 anos)

Desenho “Obra do Aleijadinho” (Wellington, 6 anos)

Para enriquecer as discussões em torno desse assunto, esteve presente em uma reunião online Marisa Szpigel2, uma das autoras do texto Cópia ou releitura? Como não levar gato por lebre?3. As formadoras realizaram a leitura do texto com antecedência e tiveram como apoio algumas questões para intensificar a troca de conhecimentos com a autora. Qual é a diferença entre cópia e releitura? O que e quando se pode aprender com a releitura? Como as obras dos artistas, sem a proposta da releitura, podem contribuir no percurso criador das crianças? Essas foram algumas perguntas previamente elaboradas. A seguir, a formadora Rosely Petri Sarmento, de Ariquemes (RO), comenta, em sua síntese, a reunião realizada sobre essas reflexões.

É maravilhoso nos encontrarmos neste espaço virtual, alimentado pelas experiências de cada município, do fazer de tanta gente, de tantos educadores presentes nas mais longínquas extremidades do Brasil. A partir dos encontros, os saberes são construídos, as mudanças são possíveis e novas histórias podem ser contadas e escritas. Esta foi a nossa 8ª reunião online, a primeira do ano de 2010. E os objetivos foram:

  • Discutir o significado do trabalho com imagens de artistas no contexto da Educação Infantil.
  • Propor a reflexão sobre o significado de alguns conceitos utilizados no ensino e na aprendizagem das Artes Visuais: apreciação, cópia, releitura e percurso criador individual.

Para fomentar a discussão e a reflexão, um bom texto estudado previamente. O título dele é Cópia ou releitura? Como não levar gato por lebre?, de Valéria Pimentel e Marisa Szpigel. Nesta reunião, tivemos o prazer de contar com a participação de uma das autoras do texto, Marisa Szpigel, que contribuiu com seu conhecimento e sua experiência. Para iniciar, uma boa reflexão: Qual é a diferença entre cópia e releitura?

Concluiu-se que a cópia é uma reprodução do modelo, que não tem a intenção de criar algo novo. É uma imitação sem alteração de nenhum dos aspectos empregados na obra no que tange à modalidade, aos elementos e temática. Na releitura, esses aspectos podem sofrer alterações de acordo com as marcas e interferências propositais daquele que relê, transformando a primeira versão em algo novo.

Ao trabalhar a cópia, alguns cuidados são precisos e preciosos. É bom saber: quando e como trabalhá-la? Vamos afinar o nosso olhar, apurá-lo para o contexto da Educação Infantil, nosso foco e campo de estudo. Para as crianças pequenas, o mais apropriado é que o professor a trate como estratégia, porque elas não têm condições de fazer uma cópia fiel ao modelo, o que é exigido quando o conteúdo é cópia. Tratando-a como estratégia, o educador propicia à turma condições para que pesquise outras possibilidades no desenho, criando situações favoráveis para a ampliação do percurso criador. Segundo Marisa Szpigel, “quando os pequenos querem copiar uns aos outros, eles estão copiando mas também criando; nesse caso, o adulto pode fazer intervenções para que as trocas de repertório entre eles sejam estimuladas. O que está em jogo não é a cópia fiel, mas o que eles podem aprender em relação aos procedimentos relativos às linguagens nas quais estão envolvidos”.

Essa é, na verdade, uma ação involuntária aos propósitos do professor, uma situação criada pelas próprias crianças, o que torna a atividade prazerosa. Ver a outra fazer é muito importante. Quando elas observam procedimentos de seus pares e copiam umas às outras, estão produzindo, trocando repertórios e se apropriando de métodos que alimentam a própria produção. Daí a importância do educador valorizar essas situações criando condições para que os pequenos possam alimentar o percurso criador.

Propor, também, a cópia desenhos é uma boa estratégia para a troca de repertório entre os indivíduos do grupo, não como reprodução, mas como uma oportunidade para valorar a criação infantil. Um cuidado muito importante ao se planejar essas situações está na valorização de determinadas produções, que pode gerar a desvalorização de outras. O propósito é provocar situações em que determinados aspectos da linguagem visual possam ser usados por mais crianças, suscitando novas aprendizagens.

É preciso não legitimar só o bonito, é necessário considerar as diferentes marcas pessoais. Quanto à cópia “fiel”, ela implica aprendizagem de conteúdos relativos à apreciação e à reprodução ao modelo, que os pequenos de Educação Infantil não darão conta de resolver, podendo ficar frustrados. Outra estratégia interessante, que não é cópia nem releitura, é o desenho de observação. Ele favorece a pesquisa, a ampliação de repertórios no desenho e a aprendizagem de alguns aspectos da linguagem visual. Aqui, as crianças precisam encontrar estratégias para transformar graficamente o que estão vendo. Por exemplo, como transformar um objeto tridimensional em bidimensional?

O valor não está mais na cópia fiel, mas nas diferentes soluções encontradas. Por isso, o desenho de observação, geralmente, é proposto a partir de elementos da natureza, objetos, pessoas, animais etc. A cópia e a releitura, por sua vez, são relacionadas mais às produções artísticas, sejam de adultos ou de crianças. Quanto à releitura, essa merece atenção, devendo ser tratada, segundo Marisa Szpigel, “quando as crianças tiverem a possibilidade de identificar suas próprias marcas… tomando como referência trabalhos de Arte e transformando-os, acrescentando novos elementos”. São necessários cuidados, pois é comum a compreensão do termo releitura de maneira errônea. As crianças de até 7 anos copiam e acrescentam elementos a seu modo, de acordo com suas vivências, não sabem fazer releitura no sentido próprio da palavra. O que se observa, na verdade, em determinadas produções consideradas como releituras, são encaminhamentos relacionados à cópia, que ficam bem diferentes do modelo, recebendo o nome de releitura.

As crianças da Educação Infantil não possuem as competências e habilidades necessárias para a produção de uma releitura. “A falta de consciência e controle sobre o processo comunicativo que a criança pequena apresenta impedem-na de reler uma obra, ou seja, transformar alguns de seus aspectos para tornar suas interpretações sobre a imagem mais comunicativa e expressiva possível.” Como diz Gardner4,“crianças de até 7 anos ainda não conseguem apreciar com clareza as diferenças entre ilusões artísticas e experiências reais, pois, para elas, uma obra de arte é a própria realidade, e não seu símbolo ou representação”. Segundo as autoras do texto Cópia ou releitura? Como não levar gato por lebre?, a prática da releitura é indicada para os maiores, do Ensino Fundamental, precisamente a partir do 5º ano.

No contexto da Educação Infantil, as imagens devem ser utilizadas para que os pequenos apreciem-nas, aproximando-se de uma diversidade de obras e artistas, para aprenderem sobre o uso de novos materiais e como combiná-los, alimentando o percurso de criação por meio do desenho, da pintura e da escultura.

Como é possível observar, a troca entre os participantes da reunião e a mediação de Marisa Szpigel favoreceram reflexões importantes sobre o significado da cópia ou releitura no trabalho de Arte. A interação entre os diferentes discursos e a interrogação dos saberes e das experiências construídas pelas formadoras em torno desse assunto contribuíram para a construção de novos conhecimentos.

(Clélia Cortez, formadora do Instituto Avisa Lá, em São Paulo (SP) e Rosely Petri Sarmento, formadora local do município de Ariquemes – RO)

1O Programa Formar em Rede é uma iniciativa conjunta dos Institutos Avisa Lá e Razão Social, em parceria com o Instituto C&A, a Gerdau e a Natura. Nasceu do desejo de contribuir com o atendimento prestado às crianças pequenas por meio de ações formativas, dirigidas a diretores, coordenadores e educadores de Educação Infantil, que auxiliem a criança a construir conhecimento de maneira criativa e inteligente.

2Artista plástica e arte-educadora do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo (SP), e do Centro de Educação e Documentação para Ação Comunitária (CEDAC).

3Artigo escrito em parceria com Valéria Pimentel, coordenadora pedagógica da Escola Verde Que te Quero Verde, em São Vicente (SP), e consultora de Artes Visuais para Educação Infantil e Ensino Fundamental.

4Howard Gardner (1943) nasceu na Pennsylvania, Estados Unidos da América. É psicólogo, professor de Cognição e Educação na Universidade de Harvard e professor adjunto de Neurologia na Universidade de Boston (EUA).

À esquerda, Retrato da Infanta Margarida da Espanha, de Velásquez (1654); à direita, a Releitura da Infanta Margarida, de Picasso (1957). Velásquez, Coleção Mestres da Pintura, Nº 84 - Abril Cultural, 1977

À esquerda, Retrato da Infanta Margarida da Espanha, de Velásquez (1654); à direita, a Releitura da Infanta Margarida, de Picasso (1957). Velásquez, Coleção Mestres da Pintura, Nº 84 – Abril Cultural, 1977

Ficha técnica

Programa: Formar em Rede
Coordenadora: Beatriz Gouveia
Email: biagouveia@uol.com.br
Consultora: Clélia Cortez
Email: clecortez@uol.com.br
Responsabilidade técnica: Instituto Avisa Lá
Parceiros: Instituto Razão Social, em parceria com o Instituto C&A, a Gerdau e a Natura.
Municípios participantes: Ariquemes (RO), Caxias (MA), Mogi Mirim (SP); São João do Meriti (RJ), São José do Rio Preto (SP), Sorocaba (SP) e Uberlândia (MG).
Formadoras locais: Edinalva Silva Ramalho, Eliana Lopes Mussi, Eliani Ragonha, Lídia Lemos Dias Cabral, Luziely de Fátima Borges, Marina Florismar Castro, Miranda Maria de Nazareth Fernandes Martins, Maria do Carmo Leme Lucon, Neonilia Viana Maia Alves, Regina Maria Vargas Bordieri, Rosimeire, Rosely Petri Sarmento
Site: www.formaremrede.org.br

Para saber mais

Livros

  • Artes e o desenvolvimento humano, de Howard Gardner. Ed. Artmed. Tel: 0800-703-3444. Site: www.artmed.com.br.
  • Cópia ou releitura? Como não levar gato por lebre, de Marisa Szpigel e Valéria Pimentel. Revista Pátio, Fórum de Artes, ano 4, nº 14, agosto/outubro de 2000. Ed. Artmed.
Desenho de observação, “Tuiuiu” (Ilustração de crianca de 5 anos, CEBASP)

Desenho de observação, “Tuiuiu” (Ilustração de crianca de 5 anos, CEBASP)

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