Uma reflexão sobre passado e futuro

Valéria Gonçalves e Viviane Tomé¹


Crianças pequenas, quando ouvidas em situações adequadas, como um fórum de discussão, são capazes de refletir sobre assuntos diversos e complexos como “qual o futuro do mundo em que vivemos?”


Acreditamos que escutar a criança traga conforto para seus porquês, orientam nossa busca por razões e nos dá força
para encontrar respostas honestas e responsáveis. Partimos da pedagogia da escuta, que se encontra inserida na concepção na qual a escola² se inspira e norteia suas relações de aprendizagem, a abordagem Reggiana³ de Educação. Assim, cada vez mais as crianças pequenas nos revelam sua potência e percepção em relação aos acontecimentos que marcam a trajetória do mundo e dos seres que o habitam. E a maneira como as crianças veem o mundo é sempre peculiar.

Paramos para ouvir as crianças do grupo do Infantil II (meninos e meninas de 5 e 6 anos) durante uma roda de conversa, na qual a proposta era ir à busca de novos conhecimentos a partir de um trabalho já realizado por eles. Surpreenderam-nos com falas que revelam toda uma compreensão cronológica de acontecimentos que marcam de forma significativa passado, presente e futuro. Futuro que, de maneira implícita, preocupa-os quando comparado com o presente e o passado, mas que também pode ser diferente se cada ser humano contribuir com ações de respeito, responsabilidade e comprometimento com este MUNDO que pertence a todas as pessoas.


1 Valéria é coordenadora e Viviane é professora do grupo de 5 e 6 anos da Escola Jardim dos Pequeñitos – Il Sole, Santo André (SP).
2 Escola Jardim dos Pequeñitos – Il Sole, Sandro André (SP).
3 Inspiradas no modelo das escolas de Reggio Emilia, Norte da Itália, orientadas pela concepção pedagógica de Loriz Malaguzzi, que parte do pressuposto de que a criança tem cem linguagens.

Rever a documentação do projeto Um dia existiu4, no qual as crianças revisaram seus estudos sobre a época dos dinossauros e percorreram um caminho histórico, geológico e científico, reconhecendo os fósseis como elementos de ligação do passado com o presente, proporcionou ao grupo relembrar o assunto e discutir sobre o processo de estudo do qual participaram. Isso fez surgir novas discussões que, com intervenções e provocações, foram aos poucos tomando consistência e abrindo caminhos para novos estudos e pesquisas.


4 Os projetos, na escola, podem nascer de uma proposta do professor ou de um grande interesse do grupo. Temos um trabalho de investigação para escutar e entender o que as crianças pensam sobre o assunto, para que possamos formular boas perguntas ou mesmo provocações por meio do ambiente físico etc. Assim, trabalhamos com a projetualidade, sempre escutando as crianças em suas diferentes formas de se expressar, ou seja, em suas cem linguagens.

É verdade, se não fossem os fósseis a gente não ia saber o que existiu quando a gente não existia ainda. (Isabella, 6 anos e 3 meses)

Será que um dia vão existir fósseis das coisas ue existem hoje, para as pessoas que não existem hoje saberem o que um dia existiu? (Professora)

Prô, eu tive uma ideia! A gente poderia estudar os macacos de nariz colorido e que estão quase em extinção. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

O que é extinção? Eu não sei o que é! (Giovanna, 5 anos e 5 meses)

É uma coisa que não existe mais. Tipo os animais, quer dizer, alguns animais. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

Eu sei que existiram animais e que hoje não existem mais. (João Vitor, 5 anos e 11 meses)

A palavra EXTINÇÃO gerou curiosidade, incômodo, muitas ideias e serviu como um fio condutor que foi puxando, de maneira muito produtiva, os assuntos relacionados a ela, principalmente a maneira como enxergam o futuro. Neste caminho, várias rodas de conversas foram feitas, nas quais as crianças, com o apoio de seus desenhos individuais e mediação do professor, iam expondo suas ideias e refletindo sobre o assunto. Seus desenhos eram fortes e expressivos, alguns sem cores em contraste com o mundo verde e colorido em que viveram os dinossauros, outros utilizando símbolos bastante representativos, como cifrões, para representar a ganância do homem.

Para podermos entender melhor a maneira como as crianças visualizam esse futuro, continuamos com a proposta realizada sobre o presente e o passado, na qual as crianças representaram, por meio do desenho, o mundo em que viveram os dinossauros e o mundo em que vivemos. Desenharam em suportes circulares e de forma coletiva, de acordo com suas pesquisas, como era o mundo na época dos dinossauros, com uma natureza exuberante, e o mundo no qual vivem hoje, com ruas, carros, prédios altos etc. Dessa vez foi pedido que representassem como acham que será o futuro. Oferecemos mais uma vez o suporte circular, para que, além dos desenhos anteriores, pudesse servir de comparativo.

A gente não viveu no tempo dos dinossauros, mas a gente pode viver no futuro, e eu acho que não vai ter muitos animais e o rio vai ser muito sujo, muito mais do que é hoje. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

É verdade, as pessoas jogam muito lixo no rio. (Giovanna, 5 anos e 5 meses)

Vai ter muitos carros que sujam o ar. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

As borboletas vão ser tristes e não vão ter cores. Elas vão ser pretas. (Manuella, 6 anos e 4 meses)

Vai ter muitas menininhas tristes. (Leticia, 5 anos e 11 meses)

Eu acho que as pessoas vão ser tão tristes que não vão ter rosto, vão ser iguais aos zumbis. (Giovanna, 5 anos e 5 meses)

Eu vou desenhar um navio batido. (João Vitor, 5 anos e 11 meses)

Isso, João… esse navio é daqueles que soltam óleo no mar, e quando esse óleo vai na pele dos animais do Oceano ele faz ruim para os bichinhos do mar. (Leonardo, 6 anos e 2 meses)

Essa menininha está chorando porque ela gostava muito do mundo e ele está acabando. (Luise, 5 anos e 10 meses)

Tadinha! (João Vitor, 5 anos e 11 meses)

Em outro momento, retomamos o desenho para que pudessem explicar suas ideias.

Agora eu entendo porque a prô fala para não gastar muito papel, porque o papel é feito de árvores, e se não existir árvores as pessoas podem morrer. (Thiago, 5 anos e 11 meses)

É mesmo, Thiago. Se acabarem as árvores, as pessoas e os animais podem morrer, porque as árvores conduzem o ar, e se não tiver árvore as pessoas podem morrer no futuro. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

As pessoas compram muitas coisas e não usam tudo o que compram e depois jogam as coisas no lixo. (Alice, 5 anos e 10 meses)

Eu me preocupo com as águas dos mares, porque tem navios, e muitos soltam óleo nas águas e fazem mal para os bichos que moram lá. (Leonardo, 6 anos e 2 meses)

Tem muitas pessoas que jogam coisas no rio. (Manuella, 6 anos e 4 meses)

Vai ter muito lixo, as coisas vão estar ruins porque vai acumular muito lixo. (Luise, 5 anos e 10 meses)

Tem muitas pessoas adultas que têm crianças em fase de crescimento e os pais, às vezes, precisam ser caçadores, aí precisam matar os bichos para vender ou para dar aos filhos, aí isso também pode deixar eles em extinção. (Arthur, 6 anos e 4 meses)

Mas vocês acham que só pelo fato de existirem caçadores os animais podem entrar em extinção? (Professora)

Vão existir muitos carros que vão sujar o ar, e  as pessoas vão matar os passarinhos. (Vinícius, 6 anos e 1 mês)

Eu acho, prô, que um dia vai ter muitos carros, o ar vai ficar sujo e os homens vão matar todos os passarinhos. (Isabella, 6 anos e 3 meses)
[…]

Diante da possibilidade de um futuro triste discutido pelas crianças, no qual o planeta será destruído pelas próprias pessoas, questionamos se é o desejo de todos viverem nesse futuro visualizado e desenhado por eles.

E a resposta veio mais uma vez por meio de desenho, no qual o grupo se empenhou para demonstrar a maneira como gostaria que o mundo fosse.

O desenho na escola é visto como uma forma de linguagem expressiva das crianças desde muito pequenas. E assim interpretado, valorizado e legitimado como tal. Muito utilizados nos projetos como forma de registro, pesquisa, análise e síntese, os desenhos podem ser individuais ou coletivos, dependendo de como as crianças se organizam ou da intencionalidade da proposta.

O mundo que queremos…

Precisa ter um ar limpinho pra respirar, animais felizes morando junto dos homens e também na mata, passarinhos coloridos voando. As águas dos rios precisam ser limpinhas também,  vai ter muitos peixinhos lá. As pessoas precisam andar de bicicleta para não sujar o ar. Vai ter muitas árvores e flores. Tudo vai ser colorido e lindo. (Texto coletivo do Infantil 2 AT – crianças de 5 e 6 anos)

Para que as crianças pudessem aprofundar as reflexões acerca do tema Passado–Futuro, tivemos encontros com os alunos do 4o e 6o anos que discutiram com as crianças menores sobre as mudanças que foram acontecendo ao longo dos anos e o que podemos fazer para que o futuro não seja tão ruim como as crianças relataram em seus desenhos.

Nesses encontros, os pequenos expuseram sua preocupação com o futuro e os grandes explicaram como a Terra se formou ao longo dos bilhões de anos até chegar aos dias de hoje, e daí a necessidade de preservar o que demorou tanto tempo para se formar. Num segundo momento, discutiram ideias sobre uma cidade ideal, com meios de transporte coletivos eficientes, educação, saúde e lazer acessível a toda a população.

A pedagogia da escuta: a perspectiva da escuta em Reggio Emilia (Trecho)

Carla Rinaldi

Uma das primeiras perguntas que fazemos como educadores é: “Como podemos ajudar as crianças a encontrarem significado no que fazem, no que encontram e no que vivenciam? E como podemos fazer isso para nós mesmos? Na busca por significado devemos perguntar: Por quê? Como? O quê? Essas são as três perguntas-chaves que as crianças constantemente questionam, tanto dentro como fora da escola.

É uma busca difícil, especialmente para as crianças que têm tantos pontos de vista e referência em suas vidas: a família, a televisão, a escola e os locais que frequentam. Ainda assim, não podemos viver sem significado, porque isso deixaria nossas vidas sem identidade, esperança ou noção de futuro. As crianças sabem disso, elas têm o desejo e habilidade de procurar pelo significado da vida e de si mesmas assim que nascem. (…)

Um ‘contexto de escuta’ é criado quando os indivíduos sentem-se legitimados para representar suas teorias e oferecer sua interpretação de uma questão específica. Enriquecemos nosso conhecimento e nossa subjetividade escutando os outros e abrindo a eles quando aprendemos com o grupo. Quando as crianças trabalham juntas, cada uma desenvolve o seu próprio processo aprendendo com o processo dos outros.

As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio – Emilia em transformação (Volume 2), de Carolyn Edwards, Lella Gandini e George Forman (organizadores). Porto Alegre: Penso, 2016, p. 235.

Desse diálogo entre “grandes e pequenos”, em colegiado, os professores e coordenadores decidiram reuni-los em um fórum de discussão para dar voz e envolvê-los na proposta de ações e atitudes para um futuro melhor, tendo a consciência de que o futuro é responsabilidade de todos e começa a cada instante. Assim aconteceu o “Fórum de Educação da Educação Infantil – reflexão sobre passado e futuro por crianças de 5 anos – caminhos possíveis para um mundo melhor”.

A conversa teve uma intencionalidade maior no tema e um compartilhamento de ideias num trabalho conjunto entre pequenos e grandes. Num primeiro momento, por meio dos desenhos projetados na parede, os pequenos foram contando seus pensamentos aos grandes e aos professores envolvidos. Estes últimos (professores de Ética, Ciências e Geografia) foram perguntando e provocando a discussão no grupo. Todos estiveram atentos às provocações, participaram ouvindo, discutindo e gerando novas indagações. Num segundo momento, dividiram-se para escrever e desenhar a proposta possível sobre o tema.

Essas propostas foram apresentadas para todos com utilização do microfone, o que ocorreu de maneira muito natural. Havia crianças que, diante do microfone, às vezes perdiam o foco ou ficavam tímidas; outras, ajudadas pelos adultos e colegas maiores, foram explanando as ideias antes discutidas nos pequenos grupos, e outros, mais seguros e extrovertidos, colocaram-se de forma natural. O que observamos desse momento foi uma grande cooperatividade e interação entre idades diferentes, engajamento no tema e sentimento de pertencimento.

A prática de discussões coletivas na escola faz parte do cotidiano da instituição, que acredita que a aprendizagem se dá por meio de uma relação de escuta, respeito às individualidades e potencialização do coletivo.

Posted in Revista Avisa lá #70.