Alessandra Ancona de Faria e Maria Teresa Venceslau de Carvalho²
Reconhecer o aprendizado que ocorre nas atividades de misturas dá mais sentido a esta prática na educação infantil
Ao propormos para as crianças a exploração de diferentes materiais, deparamo-nos com um possível desconhecimento, por parte dos educadores, tanto do desenvolvimento que ocorre com cada criança como dos cuidados necessários para a apresentação da proposta. No cotidiano atual do trabalho em instituições ela tem recebido o nome genérico de “Trabalho com melecas”, uma vez que a ação de se lambuzar, sujar o corpo, “produzir melecas” podem ser prazerosas para as crianças e acabam assim sendo o foco da proposta. Fazer meleca pode ser uma das consequências da atividade, porém
outros aspectos são fundamentais e devem ser considerados.
A exploração das misturas permitirá o contato prazeroso ou não, mas certamente sensorial dos materiais presentes. Esta exploração permite grandes descobertas nesta etapa do desenvolvimento em que o conhecimento se dá prioritariamente pelos sentidos e pelo movimento. As aprendizagens são múltiplas. Lembramos que nem sempre, ou a todo o momento, as crianças se divertem com a experiência, pois nessa fase da vida, em que tudo é novo, o estranhamento e o receio também podem fazer parte.
Ressaltamos a diferença entre viver a experiência ou observá-la; portanto, embora ocorram aprendizados quando a criança observa a educadora preparar uma massinha ou acompanha a transformação de uma bolinha de gel crescendo, os aprendizados são diferentes e mais potentes quando ela participa e explora com todos os seus sentidos. Afinal, suas primeiras descobertas e aprendizados sobre o mundo ocorrem pelo próprio corpo em ação, ou seja, elas constroem conhecimento a partir de suas próprias ações.
1Este artigo tem por base um material produzido em processo de formação realizado em 2016 com as Auxiliares de Desenvolvimento Infantil (ADIs) da rede municipal de Educação de Jundiaí (SP), sob a coordenação de Cisele Ortiz do Instituto Avisa Lá. 2Formadoras do Instituto Avisa Lá.
Sensações e marcas
Embora a produção de marcas seja uma característica bastante presente nestas atividades, não é sempre que ela ocorrerá, já que nem todos os materiais permitem uma visualização clara do gesto, do movimento, do corpo. Deixamos marcas pelo mundo de diferentes formas, seja com nossos desenhos, desde as cavernas, seja com esculturas, construções e todas as múltiplas transformações do espaço no qual vivemos. Em geral, esta proposta evidencia a possibilidade de deixar indicadores de nossas ações. Traços e sinais duradouros no papel, no chão, na parede, na própria pele; efêmeros na areia, na farinha, no líquido que se evapora.
Cada substância proporciona um tipo de experiência. Os materiais secos possuem características diversas quando misturados com líquidos, já que sua plasticidade se transforma. Textura, consistência, temperatura são algumas das propriedades de cada substância que podem ser sentidas nessa operação.
A característica fundamental das misturas é a plasticidade, isto é, a possibilidade de ser um material que se transforma, que se modifica por não ter a rigidez de uma madeira, de um metal ou de um plástico duro. Um dos aprendizados decorrentes desta experiência se dá exatamente por esta característica tão específica das crianças pequenas: a sensorialidade e o movimento.
Cuidado e planejamento
Diversos aspectos devem ser considerados ao propormos a exploração da mistura, e alguns deles serão abordados por nós.
O fato de ser um material que se modifica implica sujeira no espaço, nos materiais e nos corpos das crianças. E como tudo que provoca mudanças, pode gerar conflitos. Por tal motivo este tipo de atividade demanda uma comunicação mais estreita e cuidadosa com toda a comunidade institucional, assim como com a família.
Importante valorizar o aprendizado possível com as várias opções oferecidas e as diferenças proporcionadas pela condição criada, o que inclui o comportamento corporal previsto, o suporte utilizado e os utensílios oferecidos com a mistura.
Em cada proposta, podemos observar a diversidade nas formas de propor, tanto no que diz respeito à confecção da massa, que pode variar, como do local onde será oferecida ou dos acessórios que apoiarão a exploração. Por exemplo, quando oferecemos massinha no chão de maneira que a criança possa se sentar ou se deitar para manuseá-la não será a mesma relação estabelecida no momento em que a massa estiver sobre uma mesa e a criança sentada na cadeira. Se ela pode usar objetos que amassem, como rolinhos, ou que contenham a massa, como potinhos, ela perceberá possibilidades diversas daquelas perceptíveis somente com as mãos.
O conceito de contenção é um exemplo dessas diferenças. Embora a mão contenha a massinha, colocá-la em um pote permite que a criança explore uma das funções dos potes e similares na nossa sociedade. O mesmo podemos pensar para os demais materiais a serem misturados e explorados.
Apresentamos uma tabela com os elementos que têm sido utilizados nas creches e escolas para essas experiências, evidenciando a diversidade de propostas e de aprendizados que a exploração de misturas permite.
Valorizar a experiência
A experiência pode ser tomada como ato ou efeito de experimentar(-se), de provar algo novo, entrar em contato, explorar possibilidades. Na infância, temos uma prontidão para viver experiências, estamos mais dispostos e curiosos para descobrir novas possibilidades de uso de objetos, queremos desvendar mistérios e conhecer ainda o que não conhecemos. Conforme o tempo vai passando, vamos tendo dificuldade de nos mantermos presentes em tudo o que fazemos. A presença é fundamental, é ela que nos mantém conectados com o que está vivo, com o movimento, com o aqui e agora. É o que acontece com as crianças: quando estão brincando, elas não estão pensando em outra coisa, elas estão fazendo e pensando, com o corpo presente, de forma presente aqui e agora”.³
Cada instituição, de acordo com suas possibilidades, deve procurar esclarecer o sentido destas propostas, e também conversar sobre as condições de segurança, limpeza e higiene; sobre o valor dos alimentos; sobre organização e desorganização do espaço.
Entender o significado de atividades como as que estamos propondo, ver as expressões de descoberta e de alegria dos bebês é o que nos move sempre!
3 Interações: onde está a arte na infância?, de Stela Barbieri. São Paulo: Blucher, 2012, p. 32.
O que dizem os documentos
As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira e garantir experiências que promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança. (Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil, 2010)
Campo de experiências – Espaço, tempos, quantidades, relações e transformações.
As crianças são curiosas, observadoras e buscam compreender o ambiente em que vivem, suas características, suas qualidades, os usos e a procedência de diferentes elementos da natureza e da cultura com os quais entram em contato, explorando-os e criando explicações sobre o “como”, o “quando” e o “porquê” das coisas. Desde bebês, elas podem perceber o próprio corpo, o espaço que ocupam, os tempos (no pular corda, nas brincadeiras e nas músicas ritmadas) e podem construir sua consciência corporal (sentir sua respiração, o pulsar e as batidas do coração, os sons e os ruídos do corpo e da natureza, as sensações de calor, frio, seco e molhado, as transformações e manifestações do seu corpo como as dores e as excreções). (Base Nacional Curricular para Educação Infantil, segunda versão revista, 2016)
Recomendação
Os alimentos, nas experiências exploratórias das crianças, devem ser utilizados com parcimônia.
Os alimentos, nas experiências exploratórias das crianças, devem ser utilizados com parcimônia.
Sempre que possível, os elementos da natureza devem estar muito próximos das crianças: terra, água, ar, insetos, plantas. As experiências em que se puder usar terra, areia, folhas, galhos são preferíveis àquelas que usam alimentos industrializados:
1) Porque as crianças estão diferenciando o que é comestível e o que não é. Estamos ensinando isso a elas a todo o momento.
2) A melhor hora de experimentar os alimentos é no horário das refeições, colocar a mão nos alimentos para sentir sua temperatura, textura e consistência é um comportamento esperado das crianças, especialmente as de 6 a 8 meses até 1,5 ano e 2 anos. É neste momento em que as sensações estão aguçadas e a autonomia é um fator preponderante em relação aos demais. Crianças comem com a mão também pelo exercício de se alimentarem sozinhas.
3) Os artistas usam alimentos quando querem transgredir. É uma atitude consciente e voluntária, o que não é o caso das crianças.
Exemplo de artista: Vick Muniz4
Culinária…é mistura?
A atividade de culinária, presente nas escolas de Educação Infantil, é por natureza uma experiência de misturar ingredientes, perceber e acompanhar transformações: farinha e leite que viram massa, óleo e açúcar que viram biscoitos, massa que assa e cresce, massa que muda de cor e forma quando sai do forno ou do liquidificador.
Mas é uma atividade que tem outro fim específico, o de comer e de experimentar o sabor do alimento.
Muito diferente disso, as experiências com misturas NÃO têm o fim de comer. Ao contrário, deve-se evitar que isso aconteça
Assim, incluímos a culinária nas experiências de misturas, lembrando que essa é apenas uma parte de sua natureza.