Café com aroma de literatura

ANNA CRISTINA AMBROZIO TATANGELO E SAMAR CAVALCANTE MARANHÃO NOGUEIRA¹


O CUIDADO COM O PREPARO E O AMBIENTE ONDE SE DÃO OS ENCONTROS DE FORMAÇÃO PODEM FAZER TODA A DIFERENÇA NA MOTIVAÇÃO E NO INTERESSE PELO CONTEÚDO TRATADO


O cheiro do café pode provocar sensações e trazer inúmeras lembranças… Sentir o seu aroma durante a leitura de um bom livro pode ser, sem dúvida, um momento de prazer.

Nesse sentido, o hábito de gostar de ler também está diretamente relacionado aos cuidados e preparos específicos que um leitor pode desenvolver no momento de apreciar uma obra. Essa é uma das formas de mediação e incentivo às leituras advindas de um ambiente leitor familiar, da conversa com escritores, da contação de histórias e dos círculos de leitura.


1 Pedagogas e formadoras locais – Secretaria Municipal de Educação de Salto (SP). Anna Cristina é Diretora do Departamento de Orientação Pedagógica e Samar é professora formadora.

A partir desse contexto surgiu o Café literário nas formações específicas do Programa de Educação Infantil (PEI)², recurso utilizado como uma estratégia no eixo da aproximação com a cultura escrita. O público-alvo dessas formações corresponde a diretores, coordenadores pedagógicos e professores parceiros das unidades de creche e pré-escola, totalizando 80 participantes.

No eixo da cultura escrita são destacados os comportamentos leitores que, de acordo com Delia Lerner³, em sua obra Ler e escrever: o real, o possível e o necessário, estão relacionados a diferentes ações: comentar ou recomendar o que leu, compartilhar a leitura, confrontar com outros leitores as interpretações geradas por um livro, antecipar o texto, ler trechos de textos que gostou para colegas, zelar por diferentes materiais de leitura. Entender esse momento de Café literário como espaço de divulgação, sugestões, incentivo e interação do grupo de educadores significou um despertar e aprofundamento das questões da leitura. Investir neste campo com os gestores representou um aspecto importante nas formações, no sentido de despertar para a vontade de ler mais, algo que já havíamos observado ser um grande investimento dos gestores, em especial nas leituras iniciais que precediam os encontros. Os critérios de escolha de qual livro ler sempre estiveram relacionados à apresentação de uma diversidade de gêneros, uma vez que as leituras para as crianças, na maioria das vezes, direcionavam-se aos contos de fadas tradicionais.


2 Programa de formação do Instituto Avisa Lá que instala novas práticas nos municípios.
3 Pedagoga, docente universitária em nível de graduação e pós-graduação, investigadora das áreas de Didática da Matemática e Didática da Língua.

Ressaltamos aspectos fundamentais no planejamento do Café literário para tornar a leitura algo bem prazeroso: pesquisar, preparar o ambiente, pensar a respeito do público. Em um dos cafés, Mario Quintana foi o autor escolhido, pois sua produção literária é de qualidade. Para essa formação focamos a literatura infantil em forma de poesia para atendermos o objetivo da diversidade de gênero textual. A obra Lili inventa o mundo foi a escolha para esse dia de formação.

Mario Quintana foi um importante escritor, jornalista e poeta gaúcho. Nasceu na cidade de Alegrete – Rio Grande do Sul no dia 30 de julho de 1906. Faleceu na capital gaúcha no dia 5 de maio de 1994, deixando uma herança de grande valor em obras literárias. Poeta da simplicidade, das coisas mundanas, caracterizado como sendo um romântico nostálgico, aliado a uma postura moderna. Já dizia o poeta: “o amor só é lindo, quando encontramos alguém que nos transforme no melhor que podemos ser”. Principais obras: A rua dos cataventos, de 1940 (poesia), Lili inventa o mundo, de 1983 (literatura infantil), 80 anos de poesia, de 1986 (antologias).

A poesia chama encantamento, e todo o preparo desse Café literário apresentou o cuidado com a estética e o lúdico. Esse Café aconteceu em uma sala específica de leitura situada no Centro de Formação do Professor, na cidade de Salto, chamada Sala de Leitura e Pesquisa Darcy Ribeiro. As imagens do livro Lili inventa o mundo, de Mario Quintana, foram transformadas em 3D dando vida aos objetos e às personagens da história. Todo esse material foi exposto nas mesas para apreciação e interação dos gestores e professores. Xícaras, bule e grãos ornamentaram a mesa central sobre a qual havia uma biografia do autor em destaque.

Diferentes aspectos do cuidado

As diferentes culturas experimentam os cuidados de um jeito próprio e particular. A cultura greco-romana, através dos mitos e das fábulas, deixou uma herança eloquente de como o cuidado é intrínseco à natureza humana.

Segundo a lenda de Higino, o cuidado é anterior ao espírito e ao corpo, e acompanhara o homem por toda a sua vida.

No texto Café com aroma de literatura, o conceito de cuidar do outro está ligado ao acolhimento dos formandos, à organização dos materiais, ao planejamento, à escolha do que oferecer e como oferecer. Cuidar do outro significa, então, desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. Segundo Leonardo Boff: “Os homens e as mulheres só são capazes de cuidar de si e dos outros se forem cuidados, o cuidado humaniza e aflora a essência do humano”.

Outro conceito implícito é o cuidar de si, segundo Michel Focault: “Um certo modo de encarar as coisas, de estar no mundo, de relacionar-se com o outro e consigo mesmo; de agir de si para consigo, de modificar-se, purificar-se, se transforma, e transfigurar-se. Esta forma de cuidar-se remete o sujeito à reflexão sobre seu modo de ser e agir, conferindo ao cuidado de si, além de uma dimensão política, uma noção da ética como estética da existência. Identidade”.

Os participantes experimentaram diferentes ações de cuidado, descobriram um encantamento na construção do conhecimento, no saber. Nessa experiência, sempre única, puderam decidir, desenvolver gostos, fortalecer a própria identidade e transformar-se.

Para educar, além de cuidar do corpo, precisamos cuidar de muitas coisas: ambiente, materiais, espírito, lazer, do lúdico etc… No coletivo, significa planejar ações e ter intenções.

Elza Corsi – Formadora em Saúde do Instituto Avisa Lá

Uma palavra muito significativa nesse momento do Café literário foi acolhimento, postura essa que revelou o quanto isso faz diferença para aqueles que vêm para um encontro de formação. Abre os caminhos para o aprender. Acolher possui um significado amplo na medida em que há um olhar especial para as interações e também para o cuidado com o ambiente.

Diversas foram as expressões espontâneas:
– Nossa, tudo isso foi preparado para nós?!?
– Que carinho!!

A expressão de surpresa também ficou evidente no rosto dos gestores. Pareciam crianças querendo interagir com os materiais expostos. Alguns comentários merecem destaque:

– Vamos reproduzir essa estratégia na escola, com os professores, para que eles possam multiplicar com os alunos.

Fábula-Mito do Cuidado

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.

Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada.

De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer.

Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver.

E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil.

(Fábula de Higino, escritor da Roma Antiga – Século 17 a.C.)

A forma de apresentar os livros, destacando algumas passagens, foi muito marcante… Nunca tinham imaginado a apresentação de um livro dessa maneira.

Observar e compreender o despertar da curiosidade do adulto naquele momento nos fez remeter ao brilho do olhar da criança que necessita ser sempre evidenciado. Segundo Rubem Alves4, pensador e crítico da Educação, “é através dos olhos que as crianças tomam contato com a beleza e o fascínio do mundo”.

Como adultos, gostamos de surpresas, de acolhimento, de momentos de despertar de nossa curiosidade. Pensando na construção de leitores, o grupo observou o quanto esses elementos fazem a grande diferença no planejamento dos espaços para os leitores em nossas Unidades Escolares, temática amplamente trabalhada nas formações do Programa de Educação Infantil. O Café literário reforçou essas questões, revelando-se um valioso instrumento de análise e de mudança das práticas dos professores.

Entendemos que, como formadoras locais, nossos compromissos foram cumpridos, e todo o planejamento criterioso se refletiu nas mudanças das práticas dos educadores: um professor mais cuidadoso com o ambiente leitor, com a escolha das obras, atento à circulação dos acervos e, por fim, mais motivado e consciente a respeito do desenvolvimento do planejamento das suas ações.


4 Mestre em Teologia, Doutor em Filosofi a, psicanalista e professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo.
Posted in Revista Avisa lá #69.