Família de corpo inteiro na escola

ADRIANA UEMORI E SANDRA MARIA DE SOUZA CURY¹


FAMÍLIA E ESCOLA, SEMPRE UMA RELAÇÃO COM QUESTÕES DELICADAS. MAS QUANDO BEM CONDUZIDA É UMA PARCERIA DEFINITIVA E IMPORTANTE PARA O DESENVOLVIMENTO DAS CRIANÇAS


Todo início de ano letivo, as escolas têm um grande desafio: planejar ações que contribuam para a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos. Na nossa², há uma particularidade que sempre merece atenção: menos de ¼ dos alunos continua conosco de um ano para o outro; o restante é atendido em outras unidades escolares. Temos sempre de recomeçar o processo de aproximação, pois são muitas crianças novas e seus familiares a serem acolhidos pela escola. Como então realizar este processo?

A família é fundamental na vida da criança, inclusive para apoiar suas primeiras experiências escolares. É ela que dá o suporte e o incentivo necessários para a criança vivenciar essa nova etapa. Como cada família tem sua cultura, que pode ser bem diferente da escolar, precisa ser respeitada e ouvida no processo de inserção da criança na escola.


1 Adriana é diretora municipal de Educação Básica e Sandra é coordenadora pedagógica, ambas atuando em escola de Educação Infantil I (zero a dois anos).
2EMEB Paulo Gonçalves de Mello, localizada no interior de São Paulo, na cidade de Jundiaí.

De que família falamos?

A perspectiva do atendimento aos direitos da criança em sua integralidade requer que as instituições de Educação Infantil, na organização de suas propostas pedagógica e curricular, assegurem espaços e tempos para a participação, o diálogo e a escuta cotidiana das famílias, o respeito e a valorização das diferentes formas que elas se organizam³.

Assim, lembramos que as famílias se constituem de maneiras diversas:
♦ NUCLEAR: pai, mãe e filho(s)
♦ MONOPARENTAL: pai e filho(s); ou mãe e filho(s)
♦ EXTENSA: composta pelos avós, tios, primos, irmãos, cunhados etc.
♦ SUBSTITUTA: por guarda, tutela ou adoção
♦ ANAPARENTAL: convivência entre parentes ou entre pessoas, ainda que não parentes, dentro de uma estruturação com identidade de propósito
♦ RECONSTITUÍDA: pais separados unem suas famílias
♦ ALTERNATIVAS: famílias homoafetivas (trata-se de um casal do mesmo sexo que vivem juntos, tendo filhos adotados ou biológicos de um dos parceiros ou de ambos)
♦ EUDEMONISTA: família que busca a realização plena de seus membros, caracterizando-se pela comunhão de afeto recíproco4.

Diante dessa nova realidade, a escola precisa estar pronta, garantindo respeito e qualidade no atendimento, atuando como parceira das famílias.

A ausência da família ampliada – avós, tios, irmãos morando próximo – e o envolvimento de muitos desses adultos no mundo do trabalho têm indicado a escola de Educação Infantil como parceira privilegiada para ser o suporte na tarefa de cuidar e educar as crianças pequenas.


3PARECER CNE 20/2009.
4Fonte: http://www.ambitojuridico.com.br/

Como gestores, acreditamos que as famílias precisam estar na escola mais do que para ouvir e ser orientadas, precisam ter espaço para questionar, opinar, sugerir, refletir, para fazer junto; respeitar e ser respeitada e para criar vínculos consistentes.

Ações planejadas para construir parceria

Com o objetivo de aprofundar este vínculo e torná-lo favorável para o desenvolvimento das crianças, elaboramos um plano de ação, contido no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da unidade, que previa ações simples, como o acolhimento na entrada e saída das crianças, o fácil acesso à direção e à coordenação para tratar qualquer assunto, além de intensificar a presença na instituição, seja individualmente ou por representatividade, como é o caso do Conselho de Escola.

É comum, inicialmente, que os familiares tenham dúvidas e até se sintam inseguros.

Eu não tinha muita segurança. Por ser minha primeira filha, tomei a decisão de sair do serviço para ficar com ela. Mas teve o momento que eu tive que voltar a trabalhar devido à necessidade. (Francisca, mãe da aluna Ana Laura)

No começo, um pouquinho de insegurança a gente sempre tem, mas no decorrer dos dias que ele foi ficando… só pelo carinho que todos (a professora, as ADIs5, a diretora, a coordenadora) tiveram com ele e saber que isso é recíproco já dá muita segurança. (Michelle, mãe do aluno Alan)


5Agentes de Desenvolvimento Infantil, em algumas redes denominadas monitoras.

Criar vínculo torna-se, então, fundamental, pois ajuda a manter a receptividade e possibilita garantir mais confiança nas propostas da unidade escolar, facilitando muito o entendimento do caminho e a construção pedagógica.

Pensando nisso, a reconstrução do PPP se deu a partir de observações e conversas com a comunidade escolar (professoras, ADIs, funcionários, familiares das crianças), durante reuniões, entrevistas e também informalmente. Percebemos a necessidade de refletir e criar ações sobre alguns pontos que favorecessem esse processo:

1) Comunicação: muitas crianças utilizavam o transporte escolar e, por este motivo, fazíamos contato com as famílias apenas pela agenda (caderno que circula entre casa e escola com informações sobre a criança), o que tornava a relação mais distante. No entanto, alguns problemas eram detectados: não havia retorno dos pais ou o texto não representava de fato alguma questão importante que afetava a criança; às vezes, as mensagens não eram claras, gerando interpretação equivocada. O aumento no contato por telefone ou, quando possível, pessoalmente, garantiu um retorno mais imediato e a possibilidade de sanar as dúvidas, solucionar problemas e aproximar as famílias.

2) Entrada e Saída: a presença da diretora e/ou coordenadora nesses momentos favoreceu o contato e a criação de vínculo. Assim, os familiares sentiram-se mais à vontade para esclarecer dúvidas, fazer comentários e críticas. Também foi preciso o treinamento in loco de um funcionário para desempenhar essa tarefa na ausência da gestão, o que favoreceu a autonomia da escola e o bom atendimento aos pais. É necessário, para quem desempenha essa função, ser bastante observador e capaz de detectar possíveis preocupações ou desagrados a fim de resolvê-los por meio do diálogo.

Eliane, mãe do aluno Vinícius, ainda destaca:

Aqui, logo na entrada, nós somos recebidos e a gente percebe que conhecem as crianças, chamam meu filho pelo nome, sabem o meu também, me sinto bem acolhida.

3) Fácil acesso: as professoras, em seu horário de trabalho, disponibilizaram-se para o agendamento de atendimento individual em momento mais adequado para a família, facilitando a vinda para conversar sobre a criança e a escola. Houve também a abertura da direção e da coordenação para tratar qualquer assunto, de forma a acolher as necessidades e compreender as situações, individualizando a forma de resolução dos problemas.

A diretora e a coordenadora estão sempre disponíveis se precisar ir até elas, e elas estão sempre vindo até a gente, dando oportunidade de tirar qualquer dúvida e isso dá muita segurança. (Michelle, mãe do aluno Alan)

A escola tem nos dado uma credibilidade e uma confiança. Desde o início houve uma grande transparência pela diretora, professores, ADIs, que nos dão atenção e todas as informações necessárias. (Alberto, pai da aluna Amanda)

4) Visibilidade de todos os funcionários: os pais precisam conhecer as pessoas que colaboram para o bom desenvolvimento das crianças, e isso inclui as pessoas que trabalham para tornar o ambiente limpo e organizado, as que preparam as refeições, as que desempenham as tarefas administrativas e as pedagógicas. Pensamos que todos somos educadores dentro da escola, cada um com sua função específica, mas todos com um compromisso com a educação e os exemplos proporcionados aos pequenos. Para que as famílias conheçam toda a equipe, reservamos um tempo na reunião de pais para apresentar os segmentos de funcionários e deixar que eles interajam de alguma maneira com
os familiares (lendo um texto, fazendo uma dinâmica…). Também colocamos fotos nos murais da escola desses profissionais interagindo com as crianças.

Vilmar, pai da aluna Natália, relembra:

A direção deste ano trouxe uma coisa muito bacana que é as operacionais e as cozinheiras estarem interagindo junto às crianças, fazendo um papel a mais… É muito importante para as crianças a participação de todos. Hoje vejo nos murais da escola fotos das crianças brincando junto com elas. Não estão só brincando, estão aprendendo.

5) Fortalecimento do Conselho Escolar: no início do ano, cada turma elegeu um pai ou mãe representante, além de cada segmento de funcionários também escolher os seus. Realizamos reuniões mensais com os conselheiros no intuito de iniciar uma gestão mais democrática na escola. Esta tarefa não é fácil. Esbarramos em muitos obstáculos, como conseguir um horário adequado e despertar nos participantes a importância de colocar suas opiniões, respeitando as dos demais. Outro problema é o fato de não termos uma sala de reuniões que acomode a todos os participantes. No entanto, apesar dos desafios, há avanços, como a participação de alguns representantes em Curso de Conselheiros oferecido pela Secretaria de Educação de Jundiaí e o envolvimento da comunidade escolar para conseguir melhorias.

Em nossas reuniões que todos os meses fazemos, nós discutimos o que acontece dentro da escola, desde arrecadações, como foram feitos nossos eventos, as ideias que temos para melhorar a escola… (Márcio, pai dos gêmeos Arthur e Rhuan)

É bem legal porque a gente tem voz mesmo. Todas as nossas reclamações e sugestões são ouvidas. E isso é muito produtivo para os dois lados, pois a escola precisa entender a visão que os pais têm e os pais, a posição da escola. (Jenifer, mãe do aluno Caio)

6) Reuniões de pais: são planejadas para divulgar o trabalho feito. Nelas, discutimos nossas ações, apresentamos os funcionários e convidamos profissionais para palestrar e esclarecer dúvidas, além de proporcionar espaço para que os conselheiros escolares divulguem suas propostas e ouçam avaliações dos pais presentes.

A reunião de pais é muito importante para a gente conhecer um pouquinho mais da escola, o que ela traz de importante para a vida de nossas crianças e filhos, e conhecimentos que são trazidos, através de dentistas, nutricionistas… Faz aumentar um pouquinho nosso conhecimento e tem agregado bastante. (Alberto, pai da aluna Amanda)

É importante para a gente ter um contato maior com as professoras e as ADIs, e para conhecer um pouco mais o trabalho delas, ver o quanto colaboram com o desenvolvimento da minha filha. (Regis, pai da aluna Miya)

As operacionais e as cozinheiras também participam da reunião. Não é só fazer parte da limpeza e sim do dia a dia das crianças. Então elas também são educadoras. (Michele, mãe do aluno Alan)

Jenifer, mãe de Caio, também faz parte do Conselho Escolar e diz:

Nas reuniões de pais, a gente se posiciona, mostrando que a gente está aqui, está aberto e por que é importante os pais estarem na escola também.

Márcio pensa que:
a comunidade vai estar aqui dentro vendo o que estamos fazendo, as ações que estão acontecendo com as nossas crianças, e nisso, a gente vai mostrando para a criança que a gente vive num mundo democrático, onde a gente pode dialogar para conseguir alguma coisa.

Inclusive, durante uma reunião de pais, o conselheiro representante propôs a formalização de uma carta assinada por todos os pais presentes solicitando a pintura da escola. Por causa dessa mobilização, o pedido foi atendido pela Secretaria de Educação e a reforma está sendo feita.

7) Encontro de família: planejamos alguns eventos durante o ano para que os familiares pudessem estar na escola e participar, estreitando laços com as outras famílias, com os funcionários e, principalmente, com as crianças.

Seguimos alguns princípios:
♦ logo no início do ano, as datas são estipuladas no Calendário da Unidade aprovado pelo Conselho Escolar para que as famílias se programem;
♦ qualquer familiar ou responsável pela criança é bem-vindo a participar dos encontros;
♦ mostramos às famílias aquilo que as crianças têm vivenciado na instituição, o mais próximo do dia a dia.

Outros pontos são trabalhados junto à equipe para melhor atender aos familiares, como:
♦ o planejamento dos espaços;
♦ a importância da acolhida;
♦ a divulgação do trabalho, seja pela fala, seja por murais;
♦ criação de oportunidades de interação dos funcionários com as famílias;
♦ a postura de ouvir para entender;
♦ permitir a livre-escolha dos pais de onde brincar com a criança.

A interação é percebida durante essas atividades e, principalmente, nos depoimentos dos familiares.

É muito bom tanto para a criança quanto para a gente, que vamos aprendendo e trocando experiências. (Francisca, mãe da aluna Ana Laura)

Sobre o Encontro de Família, Márcio, também conselheiro escolar, diz:

É uma coisa muito gostosa, porque nós, pais, não viemos só para ver eles dançando, brincando, pulando… nós viemos para interagir com as crianças e elas vão sentir que nós estamos perto. Vão aprender com a gente e a gente vai acompanha-las dentro da escola. Meus filhos se sujam, sujam a gente, e isso é muito gostoso. A gente está brincando e aprendendo ao mesmo tempo. Isso é interagir com a criança.

Para Jenifer, mãe do aluno Caio, os eventos não são momentos de expor a criança (alunos no palco e pais assistindo), mas de participar e interagir com eles.

As atividades propostas foram em conjunto para trabalhar com a criança. É um momento muito gostoso que, às vezes, os pais não têm tempo para fazer estas atividades com os filhos.

Conquistar essa confiança favorece o trabalho da escola. Com o estreitamento das relações, a família vê na instituição uma parceira no processo de desenvolvimento da criança. Pequenos problemas são resolvidos com um diálogo respeitoso, no qual a família e a escola precisam chegar a um entendimento. A relação e o vínculo mudam a forma de ver as situações e as tornam muito mais fáceis de serem resolvidas. É preciso que o foco não esteja no levantamento de culpa, mas sim na partilha de responsabilidades e na ajuda mútua.

Devemos continuar tentando maneiras de empoderar os sujeitos escolares numa perspectiva democrática e corresponsável nas ações, além de proporcionar uma educação de qualidade às pessoas envolvidas, ou seja, às famílias, aos funcionários e, principalmente, às crianças, razão do nosso trabalho. É preciso que a educação seja de corpo inteiro!

Posted in Revista Avisa lá #65.