O trabalho com coleções literárias

MARIA EUGENIA BURNIER MALTA KIRA¹


POR QUE TRABALHAR COM PERSONAGENS QUE APARECEM EM COLEÇÕES LITERÁRIAS CONTRIBUI PARA DESENVOLVER COMPORTAMENTOS LEITORES NAS CRIANÇAS?


Na idade de 3, 4 anos, muitas crianças estão iniciando seu percurso escolar. Algumas delas já trazem experiências de interação com textos literários, outras não, e poucas estão acostumadas a conversar sobre os textos que ouvem. Mesmo as que já vivenciaram essas conversas, interagiram, em sua maioria, com os adultos e não com colegas da mesma idade. Portanto, é importante pensar com cuidado a aproximação prazerosa e compartilhada com os textos literários. O trabalho com literatura na escola abrange:

♦ a realização de rodas sistemáticas diárias, nas quais o professor lê e promove conversas sobre o texto;
♦ a organização do grupo para promover uma escuta mais atenta e o uso de estratégias para assegurar o interesse e a concentração (como, por exemplo, rituais para iniciar e finalizar a roda, um tapete “mágico” para apoiar os livros), entre outros aspectos.

Nesse contexto, desenvolvi com o grupo de criança em idade de três anos um trabalho com sequência de atividades com a coleção “Estela”, de livros literários escritos por Marie Louise Gay. Essa coleção é composta por cinco livros: Quando Estela era muito, muito pequena; Estela estrela do Mar; Estela Princesa do céu, Estela rainha da neve e Estela fada da Floresta.


1 Professora do Grupo 1 da Escola da Vila.

Selecionei a coleção, pois todas as histórias possuem desenvolvimento cronológico linear, sequências narrativas e informações que favorecem a previsibilidade (fomentando a antecipação) e estreita colaboração entre imagem e texto. A imagem introduz informações que seriam difíceis de entender caso não houvesse as ilustrações, como por exemplo, a caracterização dos personagens, do cenário e inclusive de algumas ações. Propiciamos, dessa forma, que leitores não convencionais pudessem antecipar e inferir significados cada vez mais pertinentes com relação a essas narrativas.

Planejar e encaminhar as conversas sobre o que se leu ou sobre o que se lerá é uma tarefa bastante complexa. Isso porque as crianças da faixa etária trabalhada possuem pouca experiência com essa situação. Assim, entendo que a familiaridade com títulos envolvendo sempre um mesmo personagem dá a oportunidade ao professor de tematizar as narrativas, e, às crianças, de ter elementos para participar dessas conversas. Além disso, favorece a aproximação a algumas ideias que são importantes, como a de “coleção” e a de “personagem”

O papel da escola na formação de leitores e a necessidade de criação de comunidades de leitores na sala de aula têm sido temas de estudo e discussões na escola. Pesquisas de alguns autores, entre eles: Teresa Colomer, Anne Marie Chartier, Fanny Abramovich, Daniel Pennac e Ana Teberosky, embasam essas situações e, consequentemente, influenciam minhas opções didáticas.

Leitura como princípio

No início do ano, as crianças do Grupo 1, geralmente recém-inaugurando o espaço escolar, precisam compreender a existência da rotina diária e as pautas de conduta para cada momento. Portanto, nesse início, os objetivos da roda de história são:

♦ Ampliar o repertório de histórias;
♦ Despertar o gosto pela leitura e
♦ Favorecer a participação em uma comunidade de leitores de literatura.

Ao longo da sequência, esperamos que as crianças possam:

♦ Escutar narrações e leituras de textos narrativos;
♦ Conversar com os colegas e com o professor sobre os efeitos que um texto literário produz: “fiquei triste”, “fiquei com medo”, “achei engraçado”, “gostei mais”, “não gostei” etc.;
♦ Comentar com os colegas e com a professora alguns aspectos tais como: as semelhanças entre os títulos da coleção, no que diz respeito às narrativas, às ilustrações e aos aspectos da edição (por exemplo, na capa, onde se localiza o título, a editora, o nome da autora, as marcas que identificam a coleção); as características dos personagens (Estela e Marcos, essencialmente);
♦ Começar a considerar os comentários feitos pelos colegas, ouvindo-os atentamente e/ou tecendo novos comentários a partir deles;
♦ Recuperar oralmente trechos das histórias que fazem parte da coleção, distinguindo-as;
♦ Antecipar acontecimentos ou ações dos personagens a partir do conhecimento sobre as histórias da coleção ouvidas anteriormente e a partir das ilustrações.

Conversas sobre coleções e livros

No momento da roda de história, organizei em nosso “tapete mágico” (tapete de tecido onde sempre apoiamos os livros que lemos) os cinco títulos da coleção “Estela” e informei as crianças que iríamos ler todos eles. A pergunta inicial que fiz foi “quem sabe o que é uma coleção?”, e a intenção era saber se eles conheciam a palavra, se entendiam seu significado. Uma criança referiu-se a uma coleção que tem em casa, “eu tenho uma coleção de bonecos de playmobil, bonequinhos na prateleira da minha casa e que eu brinco com eles”. Muitas afirmaram conhecer esses bonecos. Estabeleci, então, uma relação entre o que estavam dizendo e a coleção com os títulos que estavam disponibilizados em nosso tapete.

Apreciamos as capas e contra capas dos livros, lendo os títulos correspondentes. Avisei que iniciaríamos a leitura com o título Quando Estela era muito, muito pequena, e leríamos depois os 4 títulos restantes. Nesta roda as crianças trocaram impressões sobre o que estavam observando nas capas e contracapas. Fiz também algumas perguntas:

♦ Quem é a Estela?
♦ No livro Quando Estela era muito, muito pequena, ela aparece de forma diferente do que nos outros livros?
♦ Se olharmos a capa e a contracapa dá para sabermos quais personagens vão aparecer na história?
♦ Aparece outro personagem nesse livro? Quem será esse menino?
♦ O que será que vai acontecer na história?

Lendo as narrativas, apresentei, então, o título que íamos ler, mostrando a capa,, o nome do autor, do ilustrador, da editora. Analisamos a capa e a contracapa. Iniciei a leitura, procurando não fazer interrupções para não comprometer a narrativa. Nos dois dias seguintes, lemos respectivamente os títulos Estela, estrela do mar e Estela rainha da neve. Também os leio sem promover discussões, a não ser quando alguma criança pede a palavra para tecer comentários sobre a narrativa.

Após a leitura desses dois títulos, lemos em dois dias consecutivos, Estela fada da floresta e Estela princesa do céu. Antes de iniciar a leitura, possibilitei que as crianças antecipassem o que poderia acontecer nas narrativas, perguntando, por exemplo:

♦ Quem vai aparecer na história?
♦ O que vai acontecer na história?
♦ Vai acontecer alguma coisa na história que também aconteceu nas outras?

Durante a leitura desses dois últimos livros, fiz as mesmas perguntas para comparar se, de fato, as crianças se atentaram para as diferenças que os subtítulos fada da floresta e princesa do céu, representam nas histórias, estabelecendo relações entre o enredo e as ilustrações através de comentários sobre as particularidades de cada uma das narrativas.

A coleção como parte da rotina

Depois de lermos todos os títulos da coleção, planejei situações onde, diariamente, no momento das rodas de história, disponibilizei todos os livros no tapete e conversamos sobre vários aspectos, a saber:

♦ Diagramação dos livros (capa, contracapa, editora, autor e ilustrações)
♦ O que vocês perceberam de parecido nesses livros, agora olhando para a capa, contracapa, ilustrações?
♦ Onde está escrito o título do livro, a editora e o nome do autor?
♦ Vocês acham que a gente pode ter ideias sobre o que acontece nessas histórias se olharmos as capas?
♦ Semelhança da narrativa entre todos os títulos:
♦ O que há de parecido entre todos os livros? Quais personagens aparecem sempre?

– Como é a Estela? E o Marcos? O que a Estela geralmente faz nas histórias? Ela gosta de participar das aventuras? E o Marcos, ele também participa? A Estela ajuda o Marcos de alguma forma?
O que ela faz?

Nessas atividades, falamos sobre o que se lê: os efeitos que as obras produziram nas crianças – o que sentiram, do que gostaram, as partes e preferidos, se a história lembra uma outra etc. A ideia é ampliar as interpretações que as crianças constroem sobre os textos lidos.

Indicação literária

Após essas conversas, sugeri que escrevêssemos uma indicação de leitura para que as crianças de outros grupos da Educação Infantil pudessem conhecer os livros da coleção “Estela”. Para isso, li durante algumas rodas, indicações de leitura produzidas por outras classes para servir como modelo e para se observar quais aspectos são específicos das histórias da coleção “Estela”, para que fosse possível apontar em nossa indicação de leitura. O que pretendi nessa etapa da sequência é fazer com que as crianças avançassem rumo à construção de opiniões como leitoras, que construíssem progressivamente justificativas cada vez mais elaboradas e centradas sobre alguns aspectos das obras lidas.

Escrevemos a indicação de leitura, a enviamos para os outros grupos da Educação Infantil e para o site da biblioteca da escola, para que toda a comunidade escolar também tivesse acesso à indicação.

Em se tratando de uma sequência de leituras, defini a periodicidade com que os títulos seriam apresentados. Como são cinco títulos de uma mesma coleção, lemos um por dia, no momento de nossas rodas de história, pois é preciso que o intervalo entre uma leitura e outra não seja grande, favorecendo o estabelecimento de relações entre uma obra e outra, a identificação do perfil do personagem principal e das características suas que aparecem em todas as histórias da coleção. No caso dessa coleção, era interessante que as crianças se colocassem a seguinte questão: “O que acontecerá com a Estela nesta história, já que ela é o protagonista sempre?”. À medida que o personagem e o tipo de trama em que se veem envolvidos ficam familiares, as crianças conseguem fazer antecipações e previsões bastante ajustadas.

Para que eu pudesse planejar intervenções mais adequadas e avaliar as que tinham sido feitas, contei com os registros das rodas, tais como: transcrições das conversas, gravação de áudios e filmagens. Isso foi importante, pois a avaliação da atuação das crianças se deu, sobretudo, por meio de suas falas durante as atividades.

Ao término dessa sequência, outras duas coleções foram trabalhadas, “Marcos” (de Marie Louise Gay) e “Pedro, o guarda do parque” (de Nick Butterworth). Porém, considero necessário repensar essas escolhas, já que todos os títulos são traduzidos, ou seja, são de autores estrangeiros. Seria potente eleger um autor nacional, pesquisa que iniciei recentemente.

Tendo encaminhado a sequência de leitura e de conversas a partir da coleção “Estela”, pude avaliar que as crianças avançaram de modo significativo em suas possibilidades, não apenas de interagir com os títulos, como também de contar com mais elementos para compartilhar com os colegas, ou seja, passaram a ter, de fato, “mais o que dizer” sobre as obras.

Posted in Revista Avisa lá #61.