Por que quarteto gestor?

NANCY COUTINHO¹


ELEGER PRIORIDADES DIVIDIR TAREFAS, BUSCAR SOLUÇÕES, CONSTRUIR CONHECIMENTOS, TOMAR DECISÕES SEMPRE EM CONJUNTO: É ESSA A IDEIA DE GESTÃO COMPARTILHADA EXERCIDA PELA EQUIPE DE PROFISSIONAIS DO CEI – DIRETORA, AUXILIAR ADMINISTRATIVO, COORDENADORA PEDAGÓGICA, ENFERMEIRA.


Em 2007, as então quatro creches da Liga Solidária² trabalhavam de maneira independente, atendendo crianças de uma mesma comunidade. Nessas unidades, cada um dos quatro profissionais com funções específicas exercia seu trabalho de maneira isolada, de acordo com suas competências. A visão de atendimento à criança pequena era assistencialista e muito estereotipada, com atividades que pouco atendiam às especificidades da faixa etária. As supervisões da Prefeitura decidiam os rumos de cada unidade sem ter uma proposta formatada de suas características e necessidades. Havia pouco diálogo entre a equipe e também entre as unidades, mas todos eram guiados pelos mesmos princípios socioeducativos, regidos por uma missão e valores comuns da instituição a qual pertenciam. Baseado na necessidade de alinhar e otimizar o atendimento às crianças, foi estabelecida a função de coordenadora geral dos CEIs e com isso, as mudanças na gestão começaram a acontecer. Hoje são nove unidades e em cada uma delas há um quarteto gestor.


1 Coordenadora pedagógica dos Centros de Educação Infantil da Liga Solidaria desde 2001. Pedagoga especializada em Gestão de Projetos, Gestão e pessoas, Psicodrama e desenvolvimento Infantil.
2 Entidade fundada em 1923 como Liga das Senhoras Católicas, coordena diversos projetos sociais e educacionais, ente eles 9 Centros de Educação Infantil.

Entendendo que o diálogo é premissa fundamental para o consenso e tomada consciente de decisões, o quarteto gestor é responsável pelo gerenciamento global de cada CEI por meio da disponibilidade e compartilhamento da informação, assim como dos processos formativos dos demais profissionais. Para isso, é preciso que se tenha controles muito precisos para a manutenção financeira do sistema, e o reconhecimento da família como o parceiro legítimo da educação das crianças. É preciso também compreender que para haver diálogo é necessário saber ouvir e valorizar todos os envolvidos em cada situação. Isso tudo, um processo conquistado diariamente.

Como começamos

Uma das primeiras ações foi valorizar a necessidade de todos esses profissionais, em cada unidade, pois quando as creches passaram da Assistência Social para a Educação, houve um reordenamento do quadro funcional coberto pela PMSP³. O valor per capita não cobria o salário dos auxiliares administrativo e de enfermagem. No entanto, optamos por manter os dois profissionais, na medida em que entendemos que eles são necessários no fluxo de um atendimento de qualidade. Em se tratando de crianças de 0 a 3 anos, o profissional da saúde é imprescindível, e para podermos priorizar a proposta pedagógica o auxiliar administrativo é fundamental. Utilizamos, no início, recursos financeiros da mantenedora e, aos poucos, conseguimos reincluir na prestação de contas esses serviços, uma vez que, pela portaria da Prefeitura, isso é uma determinação facultativa da DRE4 a qual pertencemos – e que só é possível graças à prestação de contas bem feita dos recursos utilizados e da proposta pedagógica.

Partimos do pressuposto de que são necessários constância e foco para que os grupos de trabalho possam ser constituídos enquanto tal. Então, estabelecemos reuniões quinzenais para discussão coletiva e, dessa forma, o quarteto gestor ia se constituindo, tendo como foco a criança e suas necessidades educacionais e não apenas assistenciais.


3 Os CEIs da Liga Solidária seguem o regime de convênio com Prefeitura Municipal de São Paulo – PMSP.
4 Diretoria Regional da Educação. Existe uma para cada subprefeitura da cidade de São Paulo.

Os três primeiros anos foram difíceis: desconfiança, medo de perder o poder, resistência na participação, embates sem argumentação, ausência de comunicação, presença passiva e sem opinião efetiva Aos poucos, com reuniões que incluíam um atrativo café da manhã, esse quadro foi se modificando. Ampliação cultural, discussões e estudo de conhecimentos específicos foram os instrumentos principais. A partir disso, estratégias diversificadas a cada encontro foram efetivando o trabalho em grupo: compartilhamento de notícias de interesse comum, jogos cooperativos, músicas, jogos de estratégias, leitura de textos teóricos, conhecimento de documentos específicos que regulamentam a Educação Infantil, troca de experiências.

Um grande e inicial passo foi discutir as diferentes competências e possibilidades gestoras de cada uma das profissionais. Na verdade, a proposta não é eliminar a figura central da diretora na verticalidade de suas decisões, mas compartilhá-las de forma horizontal.

O papel de cada um

Historicamente, o papel da diretora é visto de forma muito centralizadora: ela é aquela que controla e cobra todas as ações dentro da instituição, e todas as decisões finais devem passar por ela. É fato que a diretora é a responsável final pelo que acontece ou deixa de acontecer na unidade, no entanto, seu estilo de gerenciamento pode ser mais ou menos participativo e compartilhado, sem que isso tire seu compromisso com o resultado final do trabalho. Dessa forma, ao envolver todos nas decisões a responsabilidade também é compartilhada.

Havia uma ascendência sobre os demais funcionários por parte da diretora, que tomava as decisões de forma unilateral, sem ponderar a partir da necessidade do todo. Cada membro das equipes apresentava potenciais que, juntos, poderiam resultar em maior quantidade de acertos e, ainda, melhor organização da unidade. Assim, nessas reuniões que deveriam discutir todas as questões pertinentes à gestão, passamos a esclarecer as atribuições e responsabilidades especificas de cada profissional. A partir daí, foi possível também discutir as ações que são comuns a todos os membros da equipe: ter acesso às portarias regulamentares da Prefeitura, conhecer a família de cada criança, saber sobre os recursos financeiros da instituição e, assim, definir as prioridades dos gastos.

Nesse caminho, muitas reuniões foram ocupadas para discutir as competências profissionais, descrever as ações específicas e buscar um alinhamento nas funções. Foi possível mexer com todo o quadro funcional da unidade: resolver a desigualdade salarial, mudar a nomenclatura de cargos com mesmas funções, estabelecer critérios específicos para administração dos recursos humanos.

Outra questão fundamental é que todos tinham contato com as famílias, mas isso acontecia de maneira isolada, com a preocupação em responder a demandas específicas observadas pelos profissionais. Por exemplo, a enfermeira que chamava a família para questionar sobre o estado de saúde de uma criança ou a auxiliar administrativa que dava as informações sobre os horários de atendimento. Um profissional acabava não sabendo do contato que o outro fazia com a mesma família e na hora de tomar uma decisão em relação a uma criança, era a diretora quem assumia, muitas vezes, sem conhecimento de causa do problema como um todo. Em relação à prestação de contas, o mesmo ocorria. Tomar conhecimento dos problemas da unidade e buscar soluções conjuntas, assim como organizar a agenda da semana procurando antecipar a representação nas reuniões e eventos necessários, são situações que constam na pauta dos encontros do quarteto.

Discutir os princípios da instituição, tomar conhecimento de uma missão estabelecida e alinhar a equipe diante de um posicionamento também possibilitaram esse processo. Refletimos sobre o que é a Liga Solidária em sua estrutura e ideologia.

O lugar das famílias

Conhecer e promover maior participação da família no dia a dia do CEI foi, e ainda é, um tema fundamental para esse grupo. Atualmente, estabeleceu-se que haverá, todo mês, trabalho com as famílias: um convite específico para uma ação, como uma fala sobre nutrição, oficina de arte, mostra cultural, atividade para pais e filhos juntos, conversa com enfermeiras sobre assuntos pontuais, como esclarecimentos sobre doenças infantis comuns e os cuidados no CEI. A cada mês, uma proposta de atendimento e aproximação de ambas as partes.

Olhando, agora, para todo esse caminho percorrido, podemos identificar que esse início teve três momentos principais:

♦ O conhecimento do próprio grupo e ampliação de visão de mundo;

♦ O entendimento do que é um grupo e que ele está junto nas diferentes tomadas de decisão (selecionar equipe para a abertura de novas unidades, modo de atendimento às famílias, organização de eventos comuns etc.);

♦ O fortalecimento do papel de cada um em suas especificidades, a valorização das famílias na participação do trabalho cotidiano e a valorização das parcerias que vão sendo construídas ao logo do trabalho (grupos específicos de universidades e entidades que desenvolvem trabalhos pontuais em diferentes campos, como fonoaudiologia, psicologia, recursos humanos).

Assim, pudemos construir uma identidade própria.

Quatro em um

Atualmente, os quatro integrantes da equipe gestora – diretora, coordenadora pedagógica, enfermeira e auxiliar administrativa – têm objetivos compartilhados, reúnem-se semanalmente por quatro horas para tratar assuntos gerais e dividir tarefas. Elaboram uma pauta de prioridades e fazem os encaminhamentos necessários dentro do CEI.

A base essencial para desenvolver um trabalho de qualidade é a reflexão contínua entre a teoria e a prática, assim como a promoção constante de ampliação dos conhecimentos individuais e coletivos.

Os encontros promovem reflexões sobre a importância da participação das famílias, a formação continuada das equipes, o aprimoramento da compreensão sobre o desenvolvimento e a aprendizagem das crianças de 0 a 3 anos, o gerenciamento financeiro, o estudo e o encaminhamento de casos específicos de crianças e famílias, o acompanhamento das parcerias externas, entre outras demandas que podem emergir como prioridade. A comunicação partilhada torna o processo mais transparente, mais simples, e aumenta a cooperação; quando todos estão conscientes do que esperam, há um resultado melhor, há maior participação; dissipa-se a relação de poder, otimiza-se o tempo para a realização dos objetivos junto às crianças. Além disso, no momento em que todos se colocam com suas características próprias, o grupo tem condições de se equilibrar, assim, quem é retraído acaba por expor suas ideias, quem é impulsivo é obrigado a frear atitudes imediatistas e assim por diante; buscando-se o melhor tom e as melhores soluções para as tomadas de decisão.

Duas ações são essenciais para assegurar a qualidade das propostas na Educação Infantil por meio dos quartetos: o acompanhamento dos componentes da equipe e a formação continuada.

No acompanhamento cotidiano do trabalho, cada profissional da unidade é observado pelos integrantes do quarteto de acordo com a função.

De um modo geral, enfermeira cuida da formação e do acompanhamento das equipes de cozinha e higiene dos ambientes; a auxiliar administrativa cuida de todos quando o assunto é relativo aos recursos humanos; a coordenadora pedagógica é responsável pela formação e o acompanhamento do grupo de professores no que se refere ao desenvolvimento das propostas de trabalho com as crianças e destas em suas especificidades e relação com as famílias. A diretora cuida diretamente da manutenção, acompanha todos os processos constantemente, avaliando a participação e o andamento, faz a ponte com parcerias externas e com a coordenadora geral, promove a comunicação com os públicos interno e externo e zela pelas boas relações interpessoais. Porém, essa divisão de foco de acordo com a especialidade não isenta o grupo de ter uma ação coletiva e procedimentos que devem ser observados de modo comum, e que, para isso, precisam ser sistematizados.

Por exemplo, há um plantão de atendimento às famílias e, apoiados em recursos internos de comunicação (cadernos onde são anotadas as ações cotidianas e as intercorrências, reuniões por setor), um gestor pode resolver questões da área de outro gestor, pois ambos tomam as decisões conjuntamente e sabem como devem ser feitos os encaminhamentos necessários em cada caso. Todos os gestores são capazes de agir, pois conhecem as pessoas, as regras do convênio com a Prefeitura e a importância de mantê-las, assim como os princípios da instituição mantenedora.

Agem de forma autônoma, sabendo que haverá um fórum comum para avaliarem a pertinência e o desdobramento de cada decisão tomada, pois a avaliação faz parte desse processo.

Tudo é discutido: a hora melhor do passeio, a briga entre funcionários; a pauta e a estratégia da reunião de pais, a reclamação por parte da equipe de limpeza quando as crianças estão fazendo sujeira demais com tintas, o excesso de açúcar nas refeições, o uso de luva, formas de atender as famílias, as datas de fechamento da unidade para formação, as festas e atividades diversificadas etc.

Participar do quarteto não é uma opção e sim parte da estrutura de funcionamento da instituição, afinal acreditamos que: “A participação, em seu sentido pleno, corresponde, a uma atuação conjunta, superadora das expressões de alienação, passividade, de um lado, e autoritarismo e centralização, de outro, intermediados por cobrança e controle”5.

O que beneficia esse resultado de autonomia, e diminui os ruídos na comunicação, é uma metodologia de trabalho já estabelecida para o grupo, os chamados projetos institucionais que, de maneira geral, seguem os seguintes passos:

♦ Tomar consciência do problema. Um membro da equipe pode trazer uma ação isolada para torná-la uma questão de grupo. Exemplos de situações já enfrentadas: a constância de bilhetes dos professores aos pais de modo inadequado; mordidas constantes em um grupo específico de crianças; professoras ficando insensíveis ao choro das crianças; surto de diarreia no berçário; formas de sistematizar os procedimentos internos no momento de tirar as fraldas das crianças; organização do sucatário; melhora na leitura pelo professor; melhora na documentação das propostas.

♦ Diagnóstico. Cada profissional dá o seu parecer e faz sua observação ao problema durante um tempo determinado. Cada um, a partir da perspectiva de sua função, vai observar o problema/questão relatada. Por exemplo, podem imaginar que a diarreia está ligada a uma reação em relação ao processo de adaptação, a introdução de novos alimentos, a procedimentos errados na hora da troca, a não lavagem de mãos etc;

♦ Definição do encaminhamento, das ações conjuntas que podem ser feitas;

♦ Geração de alternativas;

♦ Escolha de uma das alternativas;

♦ Desenvolvimento de um plano de ação com etapas objetivas;

♦ Comunicação do plano;

♦ Implantação;

♦ Avaliação e revisão.


5 A escola participativa, de Heloisa Luck. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 47

Quartetos juntos na formação

Duas vezes por mês, todos os quartetos de cada CEI reúnem-se com a coordenação geral e estudam com a supervisão externa os temas específicos dos projetos institucionais. Dessa forma, se fortalecem, revisitando suas decisões, os conhecimentos adquiridos e os resultados das reflexões para fazerem a formação dos demais profissionais de cada unidade.

Além disso, é possível estabilizar a comunicação em encaminhamentos conjuntos, buscar a cooperação entre todos os CEIs e suas relações de poder, rever a relação com tempo, buscar aberturas para além da instituição, alinhar a proposta de trabalho dos CEIs aos valores da organização (ética, solidariedade, equidade, compromisso).

As soluções que os envolvidos, atuando em forma de grupo coeso, são capazes de encontrar, permitem construir a coerência necessária para orientar a ação comum, beneficiando o atendimento à criança. É um processo dinâmico e evolutivo de aprendizagem. Com a intervenção da coordenação geral, um quarteto ajuda o outro na troca de experiências, na disponibilização de verbas para necessidades diferenciadas, na utilização de verbas de diferentes setores, nas discussões para dar continuidade ao alinhamento de práticas e concepções, e para fazer as propostas e os combinados coletivos valerem.

Esse é o esforço permanente para manter as ações democratizadas da gestão dos CEIs, que não queremos perder e que, com certeza, torna mais consistente a proposta de educação para as crianças em busca de uma sociedade com justiça social.

Posted in Revista Avisa lá #60.