FABIANA COIMBRA E MAIRA TANGERINO¹
UM ASSUNTO QUE GERA POLÊMICA E DÚVIDAS EM PAIS, EDUCADORES E ESPECIALISTAS É SE AS CRIANÇAS PODEM FICAR DESCALÇAS EM CRECHE E PRÉ-ESCOLAS. REFLETINDO ALÉM DA POLÊMICA, DISCUTIMOS AQUI OS MITOS EM TORNO DESSE TEMA ARGUMENTANDO COMO PODE SER SAUDÁVEL E PRAZEROSO A CRIANÇA FICAR DE PÉ NO CHÃO.
A inspiração para essa reflexão nasceu em uma de nossas reuniões de equipe² em uma discussão sobre o motivo pelo qual os educadores não permitiam que as crianças ficassem sem sapato no ambiente da creche. Após a reunião, as enfermeiras perguntaram aos educadores das creches onde atuam: Por que vocês não deixam as crianças ficarem com os pés no chão?
A resposta dos educadores sinalizou que, tantos eles como os pais, acreditavam que aquilo não era bom para as crianças. Comumente, eles fazem escolhas que não permitem que as crianças fiquem sem os seus sapatos em seu cotidiano.
1 Fabiana Coimbra é enfermeira da Unidade CEDUC Avon Interlagos e Maira Tangerino é berçarista da unidade CEDUC Natura
2 CEDUC – Centro de Formação Profi ssional e Educacional LTDA. É uma organização especializada na gestão de creches mantidas por empresas privadas em diversos municípios para atender os fi lhos dos seus trabalhadores.Cajamar.
Uma cena comum de observar é a criança tirando o sapato e o educador vestindo seu pé novamente e nomeando: “Agora, você vai ficar com o seu sapato”. Há ainda mães que costumam pedir, ao deixar seu filho na creche, que a educadora vigie a criança para que ela não tire o sapato durante o dia.
A principal crença é a de que o pé no chão seria o responsável por resfriados e tosse nas crianças. O pé é visto como um condutor de friagem, que causaria doenças. Entretanto, a sola dos pés é pequena em relação à superfície corporal, assim, o contato com o piso da creche ou das residências não resfriaria o corpo da criança, embora em dias muito frios seja ser desconfortável. Além disso, doenças respiratórias são causadas por vírus ou bactérias transmitidos por via respiratória e não pelo resfriamento do corpo. São prevenidos por boa ventilação, proporção adequada em metros quadrados do ambiente em relação ao número de crianças, evitando o confinamento nas salas e, sobretudo, por meio da higiene das mãos e de vacinas especificas.
Discutir os pés no chão, literalmente, envolve, além de rever conceitos sobre a transmissibilidade das doenças mais comuns entre as crianças, pensar a finalidade e função cultural do uso do sapato na história do homem. Em um curso de formação de professores em creches públicas, uma das participantes relatou que havia sido educada pelos pais para sempre se manter calçada. Ela relatava que na sua família de afro descendentes, a mãe sempre falava: “Não é porque vocês são negros que não devem usar sapatos”. Esta fala denota que a valorização do uso do sapato não está relacionada apenas à exposição da sola do pé ao piso, o que poderia causar doenças, mas também ao fato de ser um acessório que compõe uma vestimenta com valor social. A fala da mãe daquela educadora está relacionada ao fato dos negros, enquanto escravos, não usarem sapatos e à perpetuação de um preconceito relativo à cor e à classe social.
Para entender melhor, é preciso revisitar a história dos sapatos e sua função social.
Sapato tem história
Os sapatos aparecem no Paleolítico, usados, inicialmente, para garantir a proteção do pé. Esse período da história foi marcado pela constante necessidade do homem de se adaptar às adversidades impostas pela natureza, já que a terra era muito gelada. O homem que vivia na caverna precisava sair para buscar alimento, necessitando proteger o seu corpo com peles. Desse período, já são datadas as primeiras técnicas de curtir o couro para fazer sapatos. Mais tarde, no Egito Antigo, também encontramos registros do uso de sapatos, porém, com uma finalidade diferente: somente os nobres e faraós podiam vesti-los, com registros de que os últimos usavam sapatos adornados com ouro. Durante toda a história, a função do sapato foi sempre oscilante: usado tanto para proteger o pé, quanto para definir o lugar social dos indivíduos.
No Brasil, o sapato foi usado, inicialmente, como proteção dos pés. Em 1808, com a chegada da corte real, ele se popularizou como artigo de moda e sinal de poder aquisitivo, sendo proibido aos escravos usá-los.
Além disso, no início do século XX, o escritor brasileiro Monteiro Lobato criou o personagem Jeca Tatu: “homem amarelo, franzino, inerte, que provoca a morte dos animais, queimadas, e possui baixa produção”, um homem que não usava sapatos. Lobato fazia uma crítica à imagem do herói brasileiro, até então retratado na literatura como o bom selvagem índio ou como corajoso caboclo. Sua intenção era fazer uma crítica ao modelo de herói adotado na literatura e desvelar as incoerências sociais brasileiras. Jeca também era a representação de tudo que um cidadão brasileiro não deveria ser, já que o país estava começando a se industrializar e o homem ideal era o urbano. Contudo, anos mais tarde, Lobato reavaliou seu personagem, percebendo que sua saúde debilitada era sinal da falta de saneamento básico e de medidas cautelares de saúde. Diante disso, Lobato criou o Jeca Tatuzinho, personagem inspirado no primeiro, mas que, entre outras coisas, era um sertanejo inteligente que usava sapatos para se proteger do contato com o chão amaldiçoado, cheio de vermes. O personagem foi garoto propaganda do Ministério da Saúde do Brasil e defendia o uso de sapatos como forma de proteger a pele contra a entrada de parasitas.
Hoje em dia, existem sapatos de cores, materiais, modelos e formas variadas. São artigos de moda. Por trás dos sapatos, existe gente especializada para pensá-los e uma indústria que movimenta em média, no Brasil, R$ 90 bilhões por ano. Há setores diferentes, que disponibilizam a variedade de acordo com cada faixa etária, além de uma mídia robusta que incentiva o consumo. O sapato, sem dúvida, no senso comum, ainda é sinal de poder econômico, já que os preços definem a capacidade de compra dos seus consumidores. Além disso, eles ainda definem lugares sociais, afinal, a mulher bem sucedida usa saltos altos, os oficiais do exército usam coturnos ou os mais relaxados ou pobres usam chinelos.
E não podemos deixar de falar na indústria do calçado com o alvo nas crianças que reinventa modelos adultos em formatos menores com o objetivo de vestir os pequenos com estilo…
Riscos e benefícios dos pés descalços
Sem dúvida, é preciso que os pais e educadores zelem pela segurança dos filhos e usem os sapatos como protetores dos pés em dias muito frios, em pisos muito quentes ou ainda em ambientes contaminados por esgoto, em lagoas ou águas paradas, em areia ou terra desprotegida que pode ter parasitas. Esses são ambientes transmissores de doenças.
Sapatos apropriados como tênis protegem os pés em caminhadas, corridas ou em brincadeiras com outras crianças em ambientes externos.
Deve-se evitar andar descalço em ambientes externos cobertos por pedregulho, com desníveis onde se possa tropeçar, ou com objetos cortantes ou pontiagudos que causem lesões.
No entanto, a criança não precisa nem deve usar sapato o tempo todo. Ficar descalça a ajuda a manter o equilíbrio e a aperfeiçoar a coordenação. Andar descalço fortalece o peito e os músculos do pé e da perna do bebê, evitando o pé chato e colaborando para o equilíbrio.
O contato com o chão na infância ajuda na formação do pé. O calcanhar da criança está completo por volta dos cinco anos de idade, aos sete a marcha já se aproxima muito do que será andar do adulto. Porém, como o crescimento acontece até os 12 ou 15 anos, o pé ainda não está formado. A reação do pé ao chão vai ajudando na constituição dos ossos, além de ajustar a coluna ao equilíbrio que vai sendo adquirido pela marcha.
Andar em diferentes superfícies como chão, grama, areia, carpete ou madeira com os pés descalços, deixa o aprendizado da marcha mais divertido, além de permitir o contato com texturas e sensações diferentes, oferecendo experiências sensoriais importantes para o aprendizado da criança.
Quando o bebê precisa começar a usar sapato?
Existe muita dúvida se o momento de colocar o sapato nos bebês é quando eles começam a ficar de pé e a se movimentar. A maioria dos especialistas considera que os sapatos são necessários só quando a criança estiver andando na rua com frequência, pelos riscos já elencados.
Em ambientes internos e limpos como em casa ou na creche, é melhor deixá-lo andar descalço, pois os dedos e a sola dos pés agarram melhor no piso evitando escorregões em superfícies lisas. Reiterando, os sapatos podem ser usados nos ambientes externos e públicos para evitar lesões ou contaminação com parasitas ou bactérias que são transmitidas pelo contato com urina ou fezes de animais.
Para se desvincular da ideia do uso contínuo do sapato é preciso entender a função histórica desse objeto e assumir uma posição crítica quanto ao significado de seu uso, vinculado ao posicionamento social e econômico dos indivíduos. Além disso, é necessário considerar a publicidade imperativa da mídia no que se refere ao consumo abusivo de sapatos, especialmente, para crianças.
Para se desvincular da ideia do uso contínuo do sapato é preciso entender a função histórica desse objeto e assumir uma posição crítica quanto ao significado de seu uso, vinculado ao posicionamento social e econômico dos indivíduos. Além disso, é necessário considerar a publicidade imperativa da mídia no que se refere ao consumo abusivo de sapatos, especialmente, para crianças.
As crianças se sentem mais livres e nós adultos não precisamos a todo o momento fazer com eles coloquem os sapatos. Fazer isso nos deixava bastante angustiados e cansados, afinal, era o dia todo colocando o sapato e a criança tirando. Percebi que o grupo fica feliz com o pé no chão, andam e correm com mais confiança… Pelas expressões, parece ser muito gostoso para eles sentir a textura lisa do chão da creche, a textura um pouco mais áspera do chão do parque ou a sensação esfoliante da areia… A criança escolhe! Se ela tira o sapato, deixamos, mas, se não quiser tirar, também fica tudo bem. Fiquei mais tranquila na medida em que fui percebendo a boa relação das crianças com o pé descalço; na medida, também, em que fui me convencendo sobre o quanto isso é saudável!
A opção pelo pé no chão pode ser construída como uma prática saudável que legitima uma relação mais humana com a terra.