Sentidos e Sentimentos

LUCIANA NUNES ALVES²


SENTIDOS E SENTIMENTOS ESTIMULAM CRIANÇAS E PROFESSORES, GERANDO MUITOS APRENDIZADOS E PRODUÇÕES CRIATIVAS


Tudo começou em função do interesse intenso das crianças pelas personagens do Angry Birds, um jogo para celulares e computadores inspirados em esboços de pássaros sem asas.

Todos os dias, quando se encontravam durante a Brincadeira do primeiro quintal, no momento de chegada à escola, os alunos falavam sobre o jogo e suas personagens. Na Mesa desenho, espaço para linguagem gráfica, aproveitavam para desenhar os pássaros do jogo. O tema aparecia novamente em todos os momentos livres da sala.

Como costumamos trabalhar a alfabetização partindo do interesse das crianças, decidimos, com elas, iniciar uma pesquisa sobre pássaros para aprofundar nossos conhecimentos e desdobrar um tema que estava tão intenso para elas.

Conversamos e listamos o que cada um sabia sobre o jogo e sobre pássaros. Em seguida, fizemos relações entre as personagens, suas cores e outros animais.


1 Sentidos e Sentimentos foi um projeto interdisciplinar desenvolvido pelas crianças do 1o ano do Ensino Fundamental da Escola Grão de Chão, em São Paulo (SP).
2 Luciana é pedagoga e psicopedagoga, professora de educação infantil e Ensino Fundamental da escola Grão de Chão.

Iniciamos a pesquisa lendo histórias sobre tucanos, papagaios e outros pássaros brasileiros. Paralelamente, desenvolvíamos o projeto sobre índios com todos os grupos da escola, e por isso visitamos a Toca da Raposa, sítio no município de Juquitiba (SP), com criadouro conservacionista e que recebe, no mês de abril, os índios do Xingú da tribo Kuikuros. Quando chegamos lá, pudemos ver de perto diversas aves… Tucano, arara-azul, papagaio e gavião. Os pássaros encantaram e instigaram a curiosidade dos alunos.

Cada criança escolheu um pássaro sobre o qual pesquisaria em casa. Confeccionamos minilivros e fichas informativas que incluíam desenhos e informações específicas de cada pássaro, sempre relacionando a imagem ao texto.

Depois, cada um construiu o seu pássaro preferido. Os alunos tiveram que pensar em como modelar o jornal com a ajuda da fita crepe. Em seguida, com tiras de jornal embebidos em cola branca com água, empapelaram e complementaram com pintura.

As crianças continuavam muito interessadas nos personagens do Angry Birds, que como o próprio nome diz, são pássaros raivosos. Falavam bastante sobre essa característica deles e, ao brincar, representavam os sentimentos das personagens com muitas caretas, sons e narrativas sobre o faz de conta.

Lidando com conflitos reais

Nas vezes em que duas ou mais crianças queriam ser a mesma personagem, conflitos aconteciam e a negociação dos papéis era difícil. Nesses momentos, propunha e mediava a conversa entre os envolvidos. Meu objetivo era ajudá-los a resolver os problemas e, pensando com eles, encontrar uma solução boa para todos. Esse tipo de intervenção é, muitas vezes, necessária; as crianças precisam ser incentivadas
a lidar com essas situações e devem receber repertório que lhes ajude a expressar suas vontades, a perceber o ponto de vista do outro e a resolver os conflitos.

A partir daí demos um novo rumo às nossas pesquisas e passamos a pensar no que cada criança sentia em diferentes situações.

Seguimos com a proposta de pensar sobre o que é sentir, como sentimos algo e como é a representação
das sensações e dos sentimentos nas artes plásticas.

A pergunta O que é sentimento? instigou o grupo, que passou a prestar mais atenção e a pensar sobre o que é sentir… O que, por que, quem e como se sente algo!

– Sentimento é uma coisa que a gente sente no corpo.
– Os bichos têm sentimentos?
– Se eles vivem, eles têm!

Cinco sentidos, várias experiências

Muitas conversas aconteceram. As crianças falavam sobre as maneiras de sentir, desde algo bem concreto, como uma dor de barriga, a algo subjetivo, como a alegria de fazer um gol ou a ansiedade frente a uma nova experiência. Fizemos uma lista com os nomes dos sentimentos conhecidos pelos alunos.

O grupo concluiu que podíamos sentir também fisicamente com as diferentes partes do corpo, juntas ou separadas. Assim, embarcamos numa sequência de atividades que possibilitaram a exploração, a investigação e o experimento dos cinco sentidos.

Iniciamos pela visão. Cada criança escolheu o lugar favorito da escola para observar e desenhar. Após retratar tudo com detalhes, elas ampliaram num papel maior seus desenhos olhando para o original.

Com os ouvidos, escutaram, identificaram e escreveram os nomes de diferentes tipos de sons, entre eles: os do corpo, dos objetos, de instrumentos, bichos, ambientes… Em seguida escolheram sons que foram representados por meio do corpo, da fotografia e depois com modelagem em argila.

Sentir com as mãos foi divertido! Vendadas, as crianças tocaram os objetos escolhidos por um colega. O objetivo era, utilizando o tato, descobrir qual era o objeto. Além disso, modelaram um pedaço de argila, também com os olhos vendados.

Surpreendente foi o momento em que sentiram a argila com os pés.

– É muito legal patinar na argila. Eu nunca fiz isso na minha vida!, – disse Kora.

Experimentamos diferentes sabores e odores, foi aí que conhecemos o artista Vik Muniz³. Inspirados na série de trabalhos Sugar Children, preparamos o dia do doce e as crianças criaram seus trabalhos com açúcar, cobertura de chocolate, mel, canela, erva-doce. Ao final, fotografaram e deliciaram-se com os trabalhos.

O envolvimento de todos ficou bem evidente: pediram para que a proposta fosse repetida. Sugeri, então, que fizéssemos o dia do salgado.

Exploramos e preparamos cada um dos ingredientes de uma macarronada. As crianças perceberam que podiam desenhar com os fios do espaguete, com o molho de tomate, o manjericão e o queijo ralado. Depois que os trabalhos ficaram prontos, apreciamos cada um deles e a obra Medusa de Vik Muniz.


3 Nascido em São Paulo, em 1961, Vik Muniz é artista plástico conhecido por usar lixo e componentes como açúcar e chocolate em suas obras.

Em ambas as atividades, sentimos necessidade de preparar um projeto. O desenho foi fundamental para pensar, utilizar o espaço no suporte e determinar o lugar dos ingredientes no trabalho.

Após abusar dos sabores e das fragrâncias, Giovana trouxe uma caixa de aromas para compartilhar com os colegas. Sentimos cada perfume e lemos os nomes. As crianças falaram sobre cada um deles, classificaram e avaliaram aqueles que agradavam ou não.

Pessoas que se gostam

Numa visita ao Museu Lasar Segall, programada para contemplar o trabalho de figuração humana, as crianças perceberam inúmeras obras que os fizeram pensar sobre as pessoas, os sentimentos e os traços necessários para representá-los. Exploraram as paredes de vidro do ateliê do museu e desenharam o contorno do corpo de um colega com detalhes. Ao final, apreciaram os desenhos.

Na escola, conheceram um pouco mais sobre a vida de Segall, escutando a história do livro Encontro com Segall, de Rosane Acedo e Cecília Aranha, trazido por um dos alunos. Apreciaram obras, falaram sobre pessoas que se gostavam, nomearam as figuras como mãe e filho, casal, amigos e outros.

– Parece que estão apaixonados por causa das mãos e pela roupa! – conclui o grupo após apreciar a obra Encontro, de Lasar Segall.

– Eles se gostam porque estão abraçados! – comentaram ao apreciar a obra Morro Vermelho, de Lasar Segall.

Após as apreciações, cada criança escolheu e representou com desenhos, pessoas de que gostavam: mãe, filhos e amigos, e inseriram num cenário especial. Catarina, por exemplo, me representou recepcionando-a no portão da escola.

O processo seguiu com um levantamento dos sentimentos que conheciam, fizemos uma lista do que eles ditaram:

Conversamos a respeito de cada um dos sentimentos. Sempre que tratávamos do assunto, as crianças tinham o espaço da roda para falar, não falar e ouvir. Contavam sobre suas vivências e compartilhavam ideias; falavam sobre quando se sentiam de determinada maneira e o motivo que podia ou não desencadear cada um dos sentimentos. Conversávamos sobre o que fazer quando algo ruim acontecia; maneiras de lidar com medos, frustrações, conflitos e outros.

A mãe de uma criança, que é atriz de teatro, foi convidada para visitar o grupo. Stella contou sobre o seu trabalho, brincou com a expressão corporal e as maneiras de representar alguns sentimentos. As crianças se movimentaram pela sala fazendo de conta que estavam tristes, preocupadas, com medo, assustadas, felizes e eufóricas. Esse exercício foi importante porque ajudou as crianças a reconhecer os seus sentimentos e os dos outros.

Salvador Dali foi outro artista que nos inspirou. Apreciamos algumas fotografias do artista brincando com sua própria imagem, dando formas diferentes ao bigode e à expressão do rosto. As crianças reconheceram diversos sentimentos e formas de se estar: assustado, pensativo e bravo. Isso convidou o grupo a imitar o artista e a observar o rosto dos amigos de sala para depois representar com desenhos.

Cada um compôs seu autorretrato com caneta hidrocor preta, observando-se diante do espelho e, em diversas etapas do trabalho, as crianças utilizaram maneiras diferentes de copiar este desenho: fotocópia, cópia em papel vegetal e com apoio da mesa de luz.

Em cada reprodução abordamos um sentimento. As fotocópias foram pintadas e as cópias em papel vegetal foram transformadas depois de uma longa conversa sobre o que deixava cada um feliz. As cópias em sulfite (com auxílio da mesa de luz) foram transformadas depois de falarem e escreverem sobre situações que deram ou dão medo.

Jogo de percurso sobre os sentimentos

Durante o trabalho em sala tivemos momentos para brincar com jogos. As crianças exploravam diferentes tipos de jogos de ação, construção e raciocínio, entre eles os de tabuleiros e de percursos. Pensando nisso, inventamos o Jogo de percurso dos sentimentos, que passou a fazer parte do acervo da sala. Cada criança criou um dizer que possibilitava avançar ou recuar no tabuleiro, tudo relacionado aos sentimentos:

♦ Você foi à casa do seu amigo e ficou feliz. Avance três casas.
♦ Você ficou triste porque seu amigo ficou doente.
♦ Volte uma casa.
♦ Você está entusiasmado porque vai fazer aniversário. Avance quatro casas.
♦ Você escutou uma história assustadora. Fique uma rodada sem jogar.
♦ Você chorou porque se machucou, vá fazer o curativo. Avance duas casas.
♦ Você ficou furioso porque um colega te bateu.
♦ Volte uma casa.
♦ Você está muito feliz porque vai ao zoológico. Avance três casas.

Um lugar especial

Quando tratávamos de sentimentos, principalmente daqueles relacionados à felicidade, percebia-se que, além de falar sobre situações, as crianças abordavam pessoas e lugares especiais que lhes proporcionavam boas recordações. Os alunos pesquisaram na internet algumas imagens da arte naïf4, em que puderam perceber os cenários, detalhes e figuras humanas que se referiam a sentimentos conhecidos. Depois disso, cada um pensou, compartilhou e representou com pintura um lugar especial.
Rafael pintou a sua casa. Miguel representou-se na casa do avô. Kora preferiu pintar a praia.


Conflitos em quadrinhos

Fiz uma pesquisa sobre a pop art e percebi que algumas imagens de Roy Lichtensteinpoderiam inspirar os alunos a compor histórias em quadrinhos com cenas de conflitos. O tipo de representação da figura humana e dos sentimentos, o uso das onomatopeias e das cores foram os elementos levados em consideração e apreciados pelas crianças.

Única luta da Baleia foi o título da história em quadrinhos de Pedro. Nela, a Baleia Gorda diz ao peixe que irá mordê-lo; o Peixe resiste, diz não, mas é devorado por ela.
Miguel usou onomatopeias para representar os sons durante a luta criada em sua história que se chamou
Império do Mal.


4 O termo arte naïf aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, original e/ou instintiva, produzida por
autodidatas que não têm formação culta no campo das artes. A pintura naïf se caracteriza pela ausência das técnicas usuais de representação e pela visão ingênua do mundo. As cores brilhantes e alegres – fora dos padrões usuais –, a simplificação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza. No século XX, a arte naïf é reconhecida como uma modalidade artística específica e se desenvolve no mundo todo. (www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_ic/index.
cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=5357)
5 Roy Fox Lichtenstein (Nova York, 1923 -1997) foi um pintor estadunidense identificado com a Pop Art. Em suas obras, procurou
valorizar os clichês das histórias em quadradinhos como forma de arte, colocando-se dentro de um movimento que tentou criticar a
cultura de massa. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Roy_Lichtenstein)

Socialização, resolução de conflitos e expressão dos sentimentos na escola

A escola é o local privilegiado onde as crianças se relacionam com outras crianças da mesma idade. A primazia é do grupo e é no grupo de iguais que a criança se constitui como um ser social. O convívio entre as crianças ensina sobre como se relacionar: como chamar o outro para brincar; o limite de cada um; o que machuca, o que magoa; o que deixa o outro feliz; como negociar papéis, espaços e objetos nas brincadeiras; como estar atento ao grupo, respeitar o outro, acolher e lidar com as diferenças.

Por isso é importante, além de cuidar das relações, cuidar também dos sentimentos que estas relações geram. Como as crianças de educação infantil ainda têm muita dificuldade em perceber a perspectiva do outro, é importante que ela possa reconhecer seus próprios sentimentos e entender que os outros também sentem dor, medo, alegria…

As crianças ainda não conseguem se colocar no lugar do outro e chegar a um acordo. Este é um exercício nem sempre muito fácil. Por isso, diante de um conflito, a escola deve ajudar a criança a encontrar uma solução de maneira a respeitar os sentimentos de cada um, de ajudá-la a se colocar no lugar do outro.

Favorecer experiências de cooperação, a manifestação da afetividade e pensar os conflitos como parte
do processo e oportunidade de desenvolvimento, são ações fundamentais para promover o desenvolvimento moral de nossos alunos.


O artista austríaco Gustav Klimt foi o inspirador das demonstrações de afeto. As crianças conversaram sobre o tema e brincaram com o corpo, demonstrando as maneiras de se representar afeto entre elas. As cenas foram fotografadas e apreciadas. Depois disso, cada um dos  alunos fez o registro da vivência a seu modo.

Miguel desenhou-se num abraço entre amigos, os braços esticados representaram bem a manifestação de amizade. Rafael fez um abraço entre ele e sua mãe, a composição dos traços determinava a perspectiva do desenho: ele de costas e a mãe de frente.

Trabalhar com os conflitos na educação infantil e fundamental é uma tarefa diária. As crianças precisam aprender a expressar o que sentem e resolver seus problemas conversando. Nem sempre é fácil… Brigas, tapas, choro, mordidas e outros fazem parte do dia a dia na escola. Os educadores devem ter claro como ajudar seus alunos a avançar em tais situações. Além de todas as atividades desenvolvidas no projeto, trouxemos para o grupo histórias infantis que abordam conflitos, fazendo as crianças refletirem a respeito. Entre elas: “O Dono da bola” e “Teresinha e Gabriela”, do livro Marcelo, marmelo, martelo
e outras histórias de Ruth Rocha6. Também: “Cospe Fogo, o Dragão”, “Caixa de segredos” e
“O medo da Bia”, de Luciene Regina Paulino Tognetta7.

E assim, seguimos com muitas experiências… Percebemos o quanto avançamos em relação à expressão dos sentimentos, aos relacionamentos, à resolução de conflitos e na maneira de enxergar o outro e o mundo.

Foi um projeto bem feliz!


6 São Paulo: Moderna, 1999.
7 Americana: Adonis, 2011, 2012 e 2013 respectivamente.

Posted in Revista Avisa lá #59.