SILVANA AUGUSTO¹
O USO DOS REGISTROS DO PROFESSOR COMO INSTRUMENTO QUE IMPULSIONA A REFLEXÃO POSSIBILITA, EM CURSO A DISTÂNCIA, O DIÁLOGO CONTÍNUO ENTRE TEORIAS E PRÁTICA DO PROFESSOR
Em nossa prática na escola, entendemos que todos os registros devem ser produzidos e utilizados para a formação dos professores. Um planejamento, um registro de prática, uma página de diário de campo, uma anotação de observação direta, em qualquer um desses casos, precisam ter um propósito claro, evitando usar a escrita dos professores de modo burocrático. Ao contrário, é necessário explorar seu potencial como instrumento de reflexão.
Reflexão cultivada
Mas o que, afinal, significa “ser reflexivo”? Todo pensamento é reflexivo? Para Alarcão (2000), o pensamento reflexivo é uma capacidade a ser cultivada. Trata-se da capacidade de voltar-se para si próprio e pensar o próprio pensamento:
“Pressupondo um distanciamento que permite uma representação mental do objeto de análise, a reflexão é, no dizer do grande filósofo educacional americano John Dewey (1933), uma forma especializada de pensar. Implica uma perscrutação ativa, voluntária, persistente e rigorosa daquilo que habitualmente se pratica, evidencia os motivos que justificam nossas ações ou convicções e ilumina as consequências a que elas conduzem. Eu diria que ser reflexivo é ter a capacidade de utilizar o pensamento como atribuidor de sentido”
1 Coordenadora pedagógica dos cursos a distância do Instituto Avisa Lá e professora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz, em São Paulo (SP).
A experiência tem mostrado que, com algumas intervenções, é possível conseguir que os professores produzam relatos bem elaborados de sua própria experiência. No entanto, nem sempre eles se colocam em relação ao que pensaram e fizeram, pensam sobre como chegaram a formular determinada proposta e sua adequação, problematizam o que pensaram anteriormente a partir do que de fato ocorreu em sala de aula e das novas referências teóricas. Ao refletir sobre seus registros, o professor tem a chance de tomar consciência em um nível mais elevado dos fatores que o levaram a considerar determinada interpretação da realidade e as ideias que embasam seu fazer pedagógico. Esse movimento depende de boas mediações, capazes de ajudar o professor a problematizar.
Problematizar uma experiência é algo mais complexo do que simplesmente descrevê-la. Para chegar a esse ponto, é importante que não se aceite a experiência como um evento já dado, pronto ou acabado. Ao contrário, o professor deverá buscar novas informações, outros referenciais teóricos que permitam a ele rever suas posições, ou, ainda, confirmar suas ideias, tomando mais consciência sobre suas implicações.
Mas se essas ideias – o papel do registro como instrumento do pensamento e a reflexão sobre a própria prática – são de fato pontos importantes de nossas concepções e fundamentam nossas ações, então, é preciso pensar em sua aplicação também na formação a distância de professores. É por essa razão que trabalhamos em ambiente virtual de aprendizagem e não desenvolvemos conteúdos prontos para um ensino programado. É por isso também que valorizamos a interatividade das ferramentas, como forma de promover as trocas em grupos heterogêneos. E, ainda, é por essa razão que pensamos o encadeamento das atividades do curso procurando ampliar o sentido que cada escrita tem, seja ela uma postagem no fórum, um registro a ser enviado como tarefa, uma síntese de conclusão de curso. Tudo isso para garantir as melhores condições para o exercício da reflexão sobre a própria prática.
O curso a distância ofereceu materiais como vídeos e textos específicos. Além disso, também propôs algumas atividades que deveriam ser desenvolvidas por todos os participantes. O estudo e a elaboração de textos-síntese são algumas estratégias que utilizamos em nosso curso. Mas não as únicas. O propósito final de todo esse estudo é promover mudanças na prática profissional dos participantes; por isso, valorizamos muito o movimento de retomada dos próprios registros.
O que veremos a seguir é o detalhamento de dois momentos importantes de um curso a distancia, o início e o fim, como forma de ilustrar o uso que fazemos dos registros como instrumento a serviço do professor em seu processo de formação.
Um tanto de teoria
Uma das atividades propostas no início do curso era escrever um texto breve que pudesse explicitar o que pensam as crianças sobre a escrita. Esse passo foi importante porque permitiu que todos acessassem as informações mais recorrentes sobre o assunto, as referências teóricas mais usadas. Ao escrever, cada um também pôde se lembrar do que já sabia, de leituras anteriores e de se dar conta de suas dúvidas teóricas.
Para apoiar a tarefa, oferecemos uma orientação detalhada de estudo de um texto e um vídeo, além de uma orientação para a escrita. Desse modo, a proposta criou para todos os professores uma oportunidade para colocar em jogo procedimentos da leitura e da escrita profissional.
Em seu texto, Cibele Kanazake, participante do curso, lembrou o papel do nome próprio na construção
da identidade da criança:
– O trabalho com nome próprio é importante por se tratar do nome da criança, que é única, e que acaba por se tornar parte de sua identidade. Esse trabalho, desde a Educação Infantil, é relevante porque o nome pode servir para indicar alguém, para destacar pessoas, por não se alterar, para conhecer-se e conhecer outras pessoas que também têm seu próprio nome, tornando-se uma referência para distinguir a si mesma dentro de um grupo. Aliás, algumas crianças acham que as letras que compõem seu nome só pertencem a elas, e ficam aborrecidas quando notam que outras pessoas usam as mesmas letras de seu nome. Com o tempo essa insatisfação passa por perceberem que as letras são as mesmas, mas o que torna as letras diferentes são suas ordens e o que elas representam.
Dinara Orlando pensou algo parecido:
– Para a criança, o nome serve como meio de identificação, para reconhecer o que é seu, demarcar o seu espaço. Escrever o nome possibilita à criança compreender como a escrita funciona, fazendo-a refletir sobre o sistema alfabético. Aprendendo a escrever, a criança poderá identificar um trabalho feito (desenho, pintura…), será capaz de diferenciar letras de números ou mesmo diferenciar umas letras de outras, até mesmo a orientação da direção da escrita. A partir do momento que ela sabe escrever seu nome ou até mesmo o dos colegas, esse conhecimento servirá como base para ela escrever outras palavras.
Cibele e Dinara estão certas. Mas ficariam restritas a essas abordagens se não estivessem participando de um grupo heterogêneo, que tem tantas ideias diferentes sobre o assunto. Essa é uma das vantagens de se trabalhar em grupo e de ter boas ferramentas que permitam conhecer o que os colegas pensam. Claudia Cristina de Arruda Schons, por exemplo, observou a questão sob outro aspecto. Ela refletiu sobre o papel do nome na reflexão que a criança faz sobre como se escreve:
– O nome do aluno, na alfabetização, é extremamente importante, pois é através dele que os alunos conhecem as primeiras letras do alfabeto. Esse trabalho se inicia na Educação Infantil, quando a professora apresenta para a criança o seu nome e começa a fazer relações com a letra inicial do nome da criança. Escrever o nome, nesse período, se torna algo prazeroso para o aluno. Ao chegar ao primeiro ano do Ensino Fundamental, o nome próprio se torna um aliado do professor, pois é a partir daí que se inicia todo o trabalho da alfabetização. O professor apresenta o alfabeto aos alunos, sempre relacionando com o nome das crianças e com outras palavras de referência a letra apresentada. O nome próprio é importantíssimo na alfabetização, pois no início desse processo a criança se reporta às letras que já memorizou, que são com certeza as letras do seu nome. Só quando está num nível de alfabetização mais
avançado é que deixa de utilizar as letras do seu nome para, então, começar a fazer as relações de fonema-grafema.
Na mesma direção, Sandra Mara Mendes de Campos escreveu:
– Para responder à questão proposta, se não tivesse assistido ao vídeo2 que aborda essa questão, provavelmente ligaria a proposta de trabalho com o nome às questões de identidade de nossos alunos e à primeira forma significativa de contato com a escrita. Pelo fato de o próprio nome relacionar-se com algo muito próprio de cada um, mesmo que na sala de aula os alunos tenham nomes repetidos. Faria essa ligação, pois o nome me caracteriza e me situa dentro de um contexto familiar, escolar… A partir do vídeo, percebi práticas que realmente precisam ser discutidas, pois o nome é a dimensão maior que a criança faz da escrita. No vídeo, o menino se utiliza das letras de seu próprio nome para escrever sua lista de brincadeiras, demonstrando sua referência para a escrita. Outra questão para reflexão é o fato de
que mesmo a criança dominando a escrita de seu nome, não significa dizer que ela entende o sistema de escrita. Portanto, há muito mais que se pensar na aquisição da escrita e no uso do nome próprio para propor um trabalho consciente de alfabetização e de apropriação da escrita
2 O nome próprio e o próprio nome, vídeo da coleção do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), disponível no ambiente do curso a distância.
Andrea Cunha foi um pouco além, explicitando as questões linguísticas que estão em jogo na escrita do nome:
– A escrita do próprio nome representa uma oportunidade privilegiada de reflexão sobre o funcionamento do sistema de escrita, pelas seguintes razões: tanto do ponto de vista linguístico, como do gráfico, o nome próprio é um modelo estável; é um nome que se refere a um único objeto, com o que se elimina para o educando a ambiguidade na interpretação; tem valor de verdade porque se reporta a uma existência, a um saber compartilhado por ambos – emissor e receptor; do ponto de vista da função, fica claro que identificar objetos ou indivíduos com nomes faz parte dos intercâmbios sociais de nossa cultura; a forma e o valor sonoro convencional das letras; a quantidade de letras necessárias para escrever os nomes; a variedade, a posição e a ordem das letras em uma escrita convencional; a realidade convencional da escrita, que serve de referência para checar as próprias hipóteses. O trabalho oportunizará aos alunos, além da conquista da escrita do próprio nome, a compreensão da escrita do próprio nome; momentos de reflexão sobre a escrita a partir de uma referência estável – o próprio nome; e a compreensão da importância do nome próprio, suas letras, sua quantidade, variedade,
posição e ordem.
A reflexão sobre a prática
Ao longo do curso, a formadora foi alimentando as discussões do grupo com vídeos, novos textos e análises de atividades. Mas além do conhecimento teórico que foi construído em grupo, também houve
grande investimento nos desafios práticos, convidando a todos para a reflexão sobre algumas ações de sala de aula. Dessa maneira, o curso foi promovendo o diálogo contínuo entre as teorias e a prática do professor.
Mas não nos interessava apenas a análise de práticas desenvolvidas por outros professores, o que era possível ser feito a partir dos vídeos. Queríamos mais do que isso porque acreditamos que o que faz o professor mudar seu trabalho não é refletir sobre qualquer prática, mas sim refletir sobre sua própria prática. Por isso, criamos um contexto que permitiu que todos os professores pudessem rever suas aprendizagens e reavaliar o que costumam fazer em sala de aula. Na primeira unidade do curso, havíamos proposto que todos os professores listassem todas as atividades que realizam a partir da escrita do nome próprio. Ao final, deveriam retomar seus escritos e avaliar o que poderiam mudar, considerando tudo o que foi aprendido em grupo, nas atividades individuais e nos fóruns de discussão.
Observamos resultados muito interessantes. Cibele Kanazake, por exemplo, já havia dito, em uma de suas atividades individuais, que
o trabalho com nome próprio deve ser usado para montar uma lista com o nome dos alunos de um grupo, dos alunos que faltaram, para escrever o nome nas atividades, nos trabalhos e nos seus materiais. Creio que escrever repetidas vezes o nome é uma cópia sem significação, portanto, não creio que seja uma atividade interessante.
Ao rever sua prática, ela aprofundou seu olhar, como se observa no relato seguinte.
Durante o curso, fui confrontando meus conhecimentos pessoais com os adquiridos, e essa nova assimilação me fez repensar minha prática pedagógica e os tipos de atividades oferecidas aos alunos. Reli o texto que eu havia produzido no início do curso, relatando as diferentes atividades que já havia realizado e, dentre elas, selecionei uma que considero necessário rever e modificar.
De todas as atividades que fiz e descrevi cuidadosamente em unidades anteriores, penso que a quarta atividade citada é menos desafiadora. Essa foi a descrição da atividade:
Fizemos a comparação dos nomes das crianças utilizando os crachás. Elas anotaram seu primeiro nome no meio da ficha de papel quadriculado que lhes dei e tinham que procurar pela sala o nome de algum colega com mais quantidade de letras para colocar sobre o seu nome e outro com menor quantidade que deveria ser registrado abaixo do nome deles. Eles saíam pela sala manipulando os crachás e contando as letras dos nomes dos colegas. Foi uma festa!
Como podem notar pela descrição acima, os alunos não foram desafiados a ler o que estava escrito, apenas contaram a quantidade de letras e pouco se importaram com os nomes que selecionaram para registrar acima e abaixo de seus nomes próprios. Também não se preocuparam com as letras empregadas nesses nomes, se havia semelhança ou diferença no uso delas, se tinham letras iguais às do seu nome etc. Sendo assim, essa atividade não foi significativa, não mobilizou todo o conhecimento deles, tanto para a leitura quanto para a escrita. Apesar de as crianças terem ficado felizes e animadas com a atividade, isso não gerou novos conhecimentos sobre a língua escrita.
Refletindo sobre as atividades no curso, descobri que existem propostas mais interessantes que eu poderia desenvolver com meus alunos num próximo ano. Uma delas é Nome Oculto. Trata-se de uma proposta na qual a criança precisa adivinhar o nome que o professor esconde no crachá com um papel. Para adivinhar, a criança precisa pensar no nome dos colegas de sala e pedir dicas, perguntando sobre as letras que devem estar ali. Só então o professor vai mostrando aos poucos, confirmando ou não a hipótese da criança. Essa atividade é desafiadora e motivadora, pois as crianças vão repensando sobre os nomes que podem ter com a letra inicial e final mostradas, bem como tirando as dúvidas de que nome formaria, observando a segunda, a terceira letra, e assim sucessivamente, até “descobrirem” (na verdade estão lendo) o nome que estava escondido no crachá, principalmente quando os nomes forem parecidos.
Outra atividade que considero desafiadora e relevante, que eu não tinha feito ainda, só fiz depois da sugestão da formadora Cristiane Pelissari, é a da agenda telefônica. Nessa atividade, a criança percebe, por meio de uma atividade real, a necessidade e utilidade desse tipo discursivo de escrita. Separei a turma em agrupamentos distintos, de acordo com o que sabiam, distribuí os crachás de mesa, apresentei a proposta da atividade, explorei a forma como deve ser organizada essa agenda e, por fim, expliquei o conceito de ordem alfabética. Primeiro cada grupo deveria identificar os nomes recebidos por eles e, depois, classificar os nomes em ordem alfabética. Durante essa classificação, eu percorri os grupos para observar se eles estavam reconhecendo o nome dos colegas, se tinham entendido o que era ordem alfabética. Caso necessário, faria algumas intervenções nos grupos com questões que favoreceriam a execução da atividade: qual será o nome deste crachá? Qual é a primeira letra deste crachá? E qual é a letra que termina esse nome? Que nome tem essa letra inicial e final? E agora, o que devemos fazer se há nomes começados por letras iguais? Como faremos para saber qual deles aparecerá primeiro em nossa agenda? Essas questões seriam mudadas conforme a necessidade do grupo.
Após os grupos terem feito suas tarefas, eu conduzi a organização alfabética de todos os nomes na lousa para depois colocarmos na nossa agenda. Para isso, foi questionado qual era a primeira letra do alfabeto e quais nomes tinham com essa letra. Ao esclarecermos essa dúvida pela observação da segunda letra e olhando no alfabeto pra saber qual letra vem antes, fomos para a segunda letra, até chegarmos à última letra do alfabeto. Nenhum grupo deixou de participar. Para que todos falassem, eu ia chamando os alunos mais calados para compartilharem suas ideias.
Durante a classificação da ordem dos nomes, os alunos foram falando seus telefones de contato para completarmos nossa agenda e, como eu era a escriba, fui registrando tudo. Expliquei como seria registrado na agenda: primeiro o nome e depois o telefone dos colegas. Todos passaram a registrar o nome dos colegas para montar nossa agenda telefônica com minha orientação, quando necessário.
Por fim, verificamos que algumas folhas ficaram sem nomes. Questionei: Por que será que essas folhas ficaram em branco? Eles concluíram que, na nossa turma, não havia nome com todas as letras, e como cada folha tem uma letra, algumas delas ficaram em branco.
Nessa atividade, a ordem alfabética e o repensar sobre os nomes apareceram duas vezes. Na primeira vez num grupo menor e, em seguida, para a classe toda. As crianças precisaram mobilizar todo o conhecimento que possuíam sobre o sistema de escrita e tiveram contato com uma situação real e, assim, puderam perceber a função social da escrita baseada num gênero discursivo bastante útil. Penso que tenha explicado as atividades detalhadamente e exposto o que aprendi sobre a alfabetização.
Cibele Kanazake
Esse breve texto só foi possível ser escrito graças à participação dos professores que explicitaram suas ideias nas sínteses que formularam e também nos fóruns de discussão. Agora, outros professores podem repensar sua prática considerando o que esse grupo elaborou até agora. Esse é, para nós, um dos principais motivos de continuar investindo na formação a distância.