Ateliês invadem a escola

DENISE NALINI¹


A CONSTRUÇÃO DE UMA PROPOSTA COM VÁRIAS LINGUAGENS ENVOLVENDO TODA A ESCOLA PERMITE COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS EM ARTES, AMPLIANDO O OLHAR DE PROFESSORES E ALUNOS


A proposta dos ateliês integrados surgiu para garantir um trabalho com Artes para além da sala de aula, promovendo trocas entre as crianças de diferentes grupos etários, como também entre os professores dos diversos grupos. Ao propor um ateliê nesse formato, sabíamos que as situações interativas ampliariam as possibilidades de aprendizagem e permitiriam que as crianças circulassem por todo o espaço da escola.

Percebíamos que o trabalho com a alfabetização avançava, mas os desenhos e as possibilidades criativas estavam aquém do potencial dos alunos. Acreditávamos que as crianças seriam capazes de construir procedimentos de uso de diversos materiais e de criação. Apesar de no planejamento semanal constarem momentos em que cada grupo se dedica a desenhar, recortar e colar, pintar e modelar, parecia ainda insuficiente em relação ao que entendemos ser importante, tanto para o desenvolvimento como para a expressividade das crianças.

Partimos de duas grandes preocupações: integrar as crianças de diferentes turmas e aprofundar o trabalho com Artes Visuais. Ao refletir sobre elas, construímos um repertório comum de práticas no espaço do Pró-Saber² que passa pelo conhecimento de várias linguagens, suportes, materiais e instrumentos para o trabalho com Artes.


1 Formadora do Instituto Avisa Lá e coordenadora pedagógica do Centro de Estudos Psicopedagógicos Pró-Saber – Unidade São Paulo.

Assim, decidimos que todas as turmas ficariam divididas em diferentes tipos de ateliê pelo menos uma vez por semana.

Isso mesmo, ateliês espalhados pela escola inteira!

Várias opções de trabalho para todas as crianças em um horário simultâneo em que trabalham com as diferentes linguagens em Artes. Ateliês integrados que propiciam às crianças de diferentes grupos realizarem atividades conjuntas.

Apesar da preocupação com a possível desordem causada por essa mudança, a equipe resolveu investir na proposta e, para isso, organizou-se para tornar essa possibilidade real, enfrentando as resistências e os conflitos naturais nos processos de construção do novo. Foi a clareza de nossos objetivos em relação às aprendizagens das crianças que nos levou a trabalhar com uma cultura escolar que investe na implementação de ações e no acompanhamento desse percurso.

Dessa forma, dois desafios importantes nortearam nosso trabalho: a proposição de situações de interação entre diferentes turmas e idades e o aprofundamento do trabalho com Artes para as crianças. Dois assuntos complexos, enfrentados simultaneamente.

Hoje o grande ateliê proporciona um momento bom para observar as ações individuais e coletivas. Analisar o desenvolvimento dos trabalhos, a questão das preferências, o conhecimento de cada criança sobre o uso dos materiais, como elas se organizam para fazer uma pintura ou escultura, entre outras questões. Essa integração gera diferentes situações de estudo e de pesquisa em Arte.

Do ponto de vista da mudança na forma de organização dos grupos, esse fazer proporciona desafios interessantes. Por exemplo: Como discutir as escolhas dos ateliês?


2 Projeto de Educação Integral, em parceria com a EMEF Paulo Freire (SP), cujas crianças de 6 a 8 anos frequentam o espaço, no contraturno, para realizar atividades complementares.

Conhecer para poder negociar

É preciso muito trabalho relativo aos combinados sobre as regras e é importante esclarecer as possibilidades de critérios para essa escolha.

É apoiar a construção de uma autonomia real e, para isso, a seleção e a escolha requer muita argumentação.

Até aqui tivemos diferentes momentos e experiências. Decidimos, então, que essa primeira fase, em 2013, seria para todas as crianças conhecerem as diversas possibilidades, passando pelos diferentes ateliês. Ainda é uma proposta nova, o que nos leva constantemente a avaliar preferências, vagas e propostas de construção de um trabalho pessoal.

Em relação às linguagens selecionadas, trabalhamos com modelagem em argila, recorte e colagem, pintura, construções tridimensionais, corpo, construções de brinquedos e pesquisa de materiais.

Assim, garantimos que a potência criadora de cada um seja revelada, oferecendo para cada criança espaços para apreciar e poder mergulhar mais profundamente em uma determinada forma do fazer.

Sabemos, como dizia Paulo Freire, que para a formação de alunos críticos é fundamental uma educação que integre a formação ética e estética. Segundo ele, “decência e boniteza de mãos dadas”.³ Esse princípio filosófico, aliado ao conceito de “partilhar o sensível”4, é o que nos move nas discussões de como destinar espaço e tempo para o trabalho com Artes Visuais.


3 Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
4 Conceito proposto por Jaques Rancière em A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2005.

A experiência do sensível

Esse é um conceito que fundamenta a realização dessa proposta. Entendemos esse sensível como as referências que cada um constrói durante sua experiência de olhar, fazer e conhecer Arte. Essas são experiências individuais que formam a maneira pela qual sentimos e estamos no mundo. É, portanto, uma construção que nasce do encontro entre a singularidade de cada um para se constituir num modo de funcionamento social. Ao trabalharmos com educação esse deve ser um dos nossos principais objetivos: construir um olhar ético e estético sobre o contexto no qual vivemos. Além disso, sabemos que o trabalho educativo decorre de uma tentativa constante de superação da distância entre desejo e realidade.

Organizando a ação

São esses argumentos que levam a equipe a buscar formas de integrar as singularidades da criança e do professor, acreditando que, pelo conhecimento de diferentes manifestações e linguagens artísticas, estamos oferecendo uma formação integral para as crianças.

Como viabilizar e manter uma proposta como essa?

Até agora foi esse o grande desafio para a equipe, que durante as reuniões de planejamento precisou destinar tempo para discutir como seriam os ateliês e quais linguagens iriam ser trabalhadas. Nesse planejamento inicial ficou nítida a necessidade de pensar em uma reorganização dos espaços do Pró Saber e em tempos necessários para a execução dessa proposta. Definimos que a pintura ficaria próxima das áreas com torneiras e que utilizaríamos mais o chão em vez de mesas, o recorte e a colagem ocuparam a quadra, e o ateliê tridimensional ficou numa sala com várias tomadas para poder usar cola quente e outros instrumentos e, assim, fomos reorganizando o espaço e o tempo. Começamos no horário depois do almoço; nesse ano, mudamos para o horário da entrada. Pode parecer pouco uma hora e meia de atividades voltadas ao fazer artístico, uma vez por semana, mas essa proposta, se bem organizada e
continuada, muda a perspectiva e a aprendizagem das crianças.

Os professores trabalharam em duplas na criação de propostas diferentes: pintura, modelagem, desenho, recorte e colagem, construções tridimensionais.

Nessa primeira etapa, um dos professores organizava a proposta enquanto outro ficava com a turma, de modo que as crianças pudessem escolher um dos cantos de ateliês oferecidos. Temos assim um momento no qual se constitui uma nova turma com grupos de crianças de diferentes faixas etárias e com outros professores.

No primeiro ano, a sexta-feira foi o dia escolhido para essa atividade. Experimentamos cada proposta por aproximadamente um mês e, posteriormente, na reunião de grupo, discutíamos e modificávamos
o que cada dupla levantava como questão e necessidade de modificação. Atualmente os ateliês acontecem toda quinta-feira, dia em que a equipe tem mais disponibilidade para organizar os tempos e espaços da escola.

Nesse primeiro mês, a intenção era de que todas as crianças pudessem conhecer os ateliês. Seria uma rodada inicial na qual nenhuma criança poderia ainda fazer escolha. Essa decisão foi tomada a partir de uma avaliação feita em reuniões de equipe que revelou o pouco conhecimento das crianças sobre materiais e suas proposições muito estereotipadas. Para nós, essa seria uma etapa de conhecimento e de socialização com os procedimentos e seus resultados. Por exemplo: um ateliê onde pudéssemos explorar o uso de diferentes tipos de riscadores, desde lápis pastel até giz de cera. Na pintura a guache, a diferença do efeito do rolinho, do pincel e da mão.

Esse tempo foi bem maior, pois pudemos observar que as crianças precisavam de um segundo olhar para escolher. A vivência é que permite avanços. É preciso confrontar-se com os materiais, com a limpeza deles, com a aprendizagem de forrar os espaços, com a observação dos resultados. As crianças precisam experimentar os materiais e observar seus diferentes efeitos, pois, como diz o ditado: “Quem conhece pode escolher melhor”.

Para as propostas de atividade nos ateliês prevaleceu a intenção de oferecer materiais e espaços para a criação pessoal numa única linguagem. A cada organização, manter um material e variar os suportes, discutindo com as crianças o que fizeram a partir de cada proposta e pedindo a elas que mostrassem a maneira de fazer para as outras crianças.

Sendo o processo de avaliação o nosso guia, percebemos nas reuniões pedagógicas a necessidade de revisar os tempos do ateliê e, por isso, passamos a incluir uma roda inicial de apreciação alimentada pela observação das obras de alguns artistas. Olhar as produções e conhecer os desafios de cada linguagem demandam investimento e tempo de trabalho. Só aprendemos a olhar quando observamos.

Alimentação estética

Tanto para a criança quanto para o professor, percebemos um desafio diferente em cada ateliê. Por exemplo, no ateliê de recorte e colagem, a tendência era a de recortar uma figura, colar em outro suporte e dizer: “pronto, terminei”. Por considerarmos isso muito pouco, investimos na apreciação das obras do francês Henry Matisse (1869-1954) e na restrição de materiais como, por exemplo, trabalhar a partir de pequenos restos de papéis. Isso modificou o resultado, possibilitou outras formas e propiciou que as crianças pudessem pensar e observar diversas possibilidades. O maranhense Ferreira Gullar (1930- ) também foi muito importante ao longo de nosso trabalho com as crianças, especialmente com sua produção de colagens intitulada Zoologia bizarra. A observação de vídeos e das obras ajudou a pensar sobre os diferentes tipos de corte de Matisse (1869 -1954), como também em relação ao modo de guardar e usar pedacinhos muito pequenos de papel de Ferreira Gullar. Outro ponto tratado nas reuniões dizia respeito ao fato de as diferentes experiências se tornarem um espaço de comunicação entre professores e crianças, de modo que o assunto referente ao fazer Arte passava a ser comentado. Contar para o outro o que aprenderam é um dos temas das conversas entre as crianças.

Um resultado muito interessante do ateliê de recorte e colagem foi a ampliação de tipos de cortes e o surgimento de formas mais “gordas e redondas” e construções com pedacinhos muito pequenos, o que deixava as produções bem diferentes das anteriores.

Estúdio ou ateliê

Lugar de trabalho de pessoas com vontade de criar e onde se pode experimentar, manipular e produzir um ou mais tipos de arte. Incluem-se nesta definição não só qualquer sala pequena onde um indivíduo trabalha com fotografia, vídeo, ilustração, escultura, pintura, animação, música, rádio etc., inclusive na grande indústria fonográfica e cinematográfica.

A etimologia da palavra “estúdio” deriva do Latim studere, que pode ser traduzido como a “ânsia de conseguir algo”. Ela também deriva de uma adaptação do termo em inglês studio.

Em francês, a palavra atelier, além de designar um estúdio artístico, caracteriza também o estúdio de um designer de moda ou mesmo artesão. Nesta última acepção, é frequente a presença de cavaletes, mesas de desenho, suportes para escultura etc. nos ateliês. Conotativamente, atelier também pode ser a casa de um alquimista ou de um feiticeiro.

Fonte: Dicionário de termos artísticos, de Luiz Fernando Marcondes. Sâo Paulo: Editora Pinakotheke, 1988.

Resultados diversificados

Já no ateliê de pintura, os desafios eram totalmente diferentes, pois aprender procedimentos de trabalho com tinta, aprender a misturá-las, usar diferentes tipos de pincéis, explorando o mais possível seus efeitos, precisa de ensino. Um dos desafios para as crianças era o manuseio do guache. Como elas próprias diziam: Nossa, essa tinta a gente nunca viu; Não é que pode usar a mão?; Veja, com esse pincel (fino) fica mais bonito; Professora, acho que eu botei muita água, a tinta sujou tudo; Aí, eu quero fazer um verde diferente.

Nesse ateliê de pintura temos, em geral, pouca prática de uso de diferentes instrumentos, pois o tempo que demanda, a necessidade de um espaço amplo e a sujeira que produz dificultam o uso de tinta com as crianças. Isso é uma pena, pois a tinta não serve apenas para desenhar. O pincel pode se transformar em caneta, mas pintar mesmo é construir texturas, profundidades, atentar para a produção e complementação de cores. Na pintura, as crianças têm de pensar em como garantir que uma cor não cubra a outra, ou como chegar a cores diferentes e específicas. As descobertas e o trabalho com paleta de cores (bandejinha de isopor para confeccionar uma nova cor) tornaram-se hit em vários ateliês. A textura foi outra questão, pois ao propor um palito para riscar sobre uma pintura criou-se outra forma e estabeleceu-se outra relação entre a figura e o fundo, e a produção começou a ganhar profundidade e força.

Na modelagem, os desafios foram conseguir que as peças secassem sem se romperem e aprender como preparar a argila antes da chegada das crianças, um trabalho grande e imprescindível do professor. Aprender a fazer cola com argila, aprender a usar um palito para uma figura ficar de pé, tirar o ar da argila são aprendizagens complexas que nem sempre dão o resultado esperado.

Nas avaliações, pudemos entender que o aprofundamento de cada linguagem revela um desafio específico, que requer, sobretudo, um olhar cuidadoso sobre o percurso das crianças. Além disso, cada encontro com uma linguagem traz problemas para o criador. É preciso conhecer o que se sabe e ter espaços para compartilhar os resultados. É uma prática que exige um olhar constante, uma aprendizagem que demanda tempo e sistematização. Nos ateliês, o foco são os problemas encontrados, o caminho para a busca de conteúdos a serem estudados pelos professores e, depois, recolocados para as crianças.

O planejamento como suporte

Assuntos diferentes permearam o trabalho nessa primeira etapa de implantação do ateliê: pesquisar os artistas mais interessantes para a apreciação das crianças, rever a organização do espaço, modificar o tipo de material oferecido, pensar com as crianças uma curadoria para a exposição das produções, reservar um tempo para as rodas de apreciação das produções delas. E assim transcorreram seis meses de trabalho intenso, permeados por reuniões constantes para avaliar e refazer caminhos e processos.

Do ponto de vista do fazer cotidiano, o ateliê integrado é a realização do nosso desejo de proporcionar às crianças a oportunidade de construir e desconstruir olhares e saberes dados no eixo das Artes. Ao conhecer e experimentar materiais, ao ter reconhecido seu percurso individual, ao observar as produções das crianças de outros grupos, cada criança pôde vivenciar uma mudança em seus paradigmas estéticos. Fazer Arte requer disciplina. E isso as crianças vão percebendo aos poucos.

Para nós que compomos a equipe, essa é uma construção contínua, pois na medida em que o olhar e o fazer individual são constantemente trabalhados e revisados coletivamente, sempre surgirão novos desafios.

A prática desses grandes ateliês nos ensinou que é preciso ampliar o olhar, e que a construção de uma educação melhor precisa de muito estudo, do trabalho coletivo e de desejo.

Dica de Leitura

A inspiração de Reggio Emilia

Apesar de não ser voltado para o Ensino Fundamental, esse livro pode ser considerado uma grande referência para o trabalho com ateliês. Por meio de entrevistas e relatos das experiências vividas no processo de implantação e implementação dos ateliês em Reggio Emilia, Itália, os autores suscitam discussões importantes. Enfatizam a concepção de ateliê como o lugar da vivência dos processos de criação, no qual os produtos sempre provisórios têm como objetivo a construção de experiências com as diferentes linguagens artísticas rumo à sensibilização do gosto e do sentido estético das crianças e dos professores. Espaço individual e coletivo que emerge do desejo de um cotidiano que desconstrua a rapidez e o automatismo do nosso tempo, ele é o espaço no qual a escola se volta para pensar, rever, propor, apreciar, reconectando a vida cotidiana e a cultura. O espaço para a construção da reflexão e da crítica, e o papel do atelierista como lugar de encontro no qual as crianças e os professores têm à disposição materiais e propostas que lhes permitem interpretar o mundo a partir da observação de suas hipóteses e experiências.

O papel do ateliê na Educação Infantil, de Lella Gandini et al. Porto Alegre: Editora Penso, 2012.

Posted in Revista Avisa lá #55.