Formar o leitor literário

ANA CLÁUDIA SANTOS NICOLAU²


ESCOLHA DE UM TEXTO CURIOSO FAZ AS CRIANÇAS SE INTERESSAREM PELA LEITURA E AVANÇAREM EM SEU CONHECIMENTO SOBRE LEITURA


O fantástico está presente de maneira muito marcante no cotidiano de crianças entre seis e sete anos, seja em suas brincadeiras, seja em sua peculiar maneira de enxergar
o mundo. Esta é a fase da vida em que os pequenos começam a se questionar acerca da
existência de seres extraordinários – fadas, monstros, bruxas, Papai-Noel… E, nesse âmbito, encaixam-se os vampiros, monstros sanguinários e cruéis, que tanto apavoram em filmes, desenhos animados e pesadelos.

O Pequeno Vampiro, obra da alemã Angela Sommer-Bodenburg, de 1979, traz uma visão nada convencional desse monstro, por meio de um personagem, um vampiro-criança que deseja fazer amigos, adora ler histórias sobre sua própria espécie e que, em sua extensa árvore genealógica vampiresca, tem uma irmã caçula, de seis anos, que é banguela e se alimenta apenas de leite. Para as crianças de idade aproximada, a identificação com todos os personagens – vampiros e humanos – é imediata. Além
disso, a forma como a narrativa é conduzida, em sua quase totalidade, deixa no ar uma ambiguidade: afinal, o vampiro vai ou não morder seu amiguinho de sangue quente?


1 Artigo publicado no documento interno da Escola da Vila (SP), Conversa de professor, 2011.
2 Jornalista e pedagoga, pós-graduada em Alfabetização; professora das séries iniciais do Ensino Fundamental I e formadora do Núcleo de Práticas de Linguagem do Centro de Formação da Escola da Vila, em São Paulo (SP).

Por isso, escolhi essa obra para uma proposta de leitura em capítulos, considerando que a turma já estava bastante acostumada a acompanhar histórias contadas dessa forma. Minha hipótese era a de que uma extensão maior de tempo para a leitura propiciaria mais momentos de discussão, refinando possibilidades de antecipação e análises de personagens, além de ajustes aos comentários e interpretações realizadas nas sessões dos dias anteriores.

As previsões podem ser suscitadas ante qualquer texto. Quando nos deparamos com uma narração (…), pode ser mais difícil ajustá-las ao conteúdo real e, por isso, é importante ajudar as crianças a utilizar simultaneamente diversos indicadores – títulos, ilustrações, o que se conhece sobre o autor etc. – assim como os elementos que a compõem: cenário, personagens, problema, ação, resolução.³

Nesse sentido, foram definidos como objetivos de trabalho:
♦ ajustar as antecipações ao conteúdo real do texto, levando em conta os indicadores mencionados por Isabel Solé;
♦ refinar as possibilidades de análise por parte das crianças, especialmente focadas nos personagens, observando a descrição de seus sentimentos e personalidades, com base em seus atos e detalhes de seus atos;
♦ iniciar experiências de interpretações advindas da leitura da obra, levando as discussões para além da tradicional troca de comentários, tão peculiar às atividades de leitura guiada com crianças dessa faixa etária.

Devo dizer que esta foi uma proposta experimental para alunos de 1o ano, seguindo preceitos teóricos e metodológicos utilizados na escola, com alunos a partir de fins do 2o ano. Nossa hipótese era de que, antecipando esse tipo de trabalho com turmas mais novas, as análises seriam potencializadas e aprofundadas – bem como interpretações e comentários – nas séries subsequentes, favorecendo, assim, a construção de um programa de leituras e atividades que vise à formação literária inicial.

A escolha por uma obra integral, com 152 páginas, possibilitaria o acesso dos alunos a um título que, por si mesmos, não poderiam ler com aprofundamento nem analisar as nuances de comportamento dos personagens.

[…] a ideia principal é que, precisamente para aprofundar sua leitura, as crianças necessitam da ajuda de leitores experimentados que lhe deem pistas e caminhos para construir um sentido mais satisfatório do significado dos livros.4


3 Estratégias de leitura, de Isabel Solé. Porto Alegre: Artmed, 1998, p.109.
4 Andar entre livros – a leitura literária na escola, de Teresa Colomer. São Paulo: Global, 2007, p.185.
5 Dispostos em roda, os alunos ouviram a leitura feita pela professora. Tendo em vista sua curta extensão, foram lidos dois capítulos por dia (com duração média de 30 minutos, entre a leitura propriamente dita e os comentários/análises).

Aquecendo a conversa: primeiras impressões

Em novembro de 2010, minha turma de 1o ano, com 29 alunos entre seis e sete anos, ouviu a leitura em capítulos do livro O Pequeno Vampiro, de Angela Sommer-Bodenburg, entremeada por discussões e atividade escrita, envolvendo alguns aspectos da narrativa. As intervenções planejadas criaram condições para que as crianças inferissem e antecipassem acontecimentos, discorressem acerca dos personagens (atitudes, intenções) e de alguns fatos da história, ampliando, assim, suas possibilidades de comentários, análises e interpretações.5

No momento da apresentação da obra, incentivei as crianças a expressarem suas primeiras impressões a partir do título, das ilustrações da capa e de informações sobre a autora, contidas numa breve biografia publicada em uma das orelhas da publicação. A intenção era de que esses comentários fossem retomados e ajustados, à medida que se familiarizassem com a narrativa, personagens e acontecimentos.6

Uma ressalva importante: não esperávamos respostas corretas ou fechadas desses leitores e ouvintes pouco experientes e, ainda, consideramos que a diversidade e possível divergência de opiniões certamente enriqueceriam discussões e guiariam o desencadeamento das intervenções e dos encaminhamentos.

Durante os dias em que a leitura ocorreu, as questões que norteavam as conversas foram planejadas de modo a favorecer ajustes entre antecipações/desenrolar factual da trama, possibilitar relações entre os títulos dos capítulos e o que vem depois e, também, direcionar o foco das crianças para determinadas ações de personagens e acontecimentos que contribuíssem para o desvendamento de personagens e a descoberta do que aconteceria ao final da trama.

O guia deve servir para mostrar o modo de vencer as dificuldades de sentido da obra, oferecer informação imprescindível para entender determinados aspectos obscuros e chamar a atenção sobre outros aspectos, que suscitem interrogações inadvertidas ou que estimulem novas interpretações mais complexas. É esse, propriamente, o campo de trabalho da escola obrigatória.7


6 Joy Moss, em A arte de fazer perguntas, de 2002, propõe esse tipo de questionamento como favorável para o percurso leitor das crianças.
7 COLOMER, Ibidem, p. 183.
8 Transcrições pessoais de trechos de discussão em aula do 1o ano C, em 5 e 22/10/2010, da Escola da Vila – Unidade Butantã, em
São Paulo (SP).

O vampiro morde ou não morde?

A roda inicial, de apresentação do livro à sala, deixou os alunos muito animados, e algumas crianças ficaram visivelmente assustadas. Recém-vindas de alguns meses de leitura de mitos gregos, ainda processavam a convivência com Medusa, Minotauro, Tifão e outros monstros assustadores. Relatos de algumas mães acerca de pesadelos recorrentes com tais seres fantásticos trouxeram preocupação sobre o quão angustiante seria, para os alunos, lidar com a ambiguidade de Rüdiger, o pequeno vampiro do título.

Depois de observar a capa e o título, a grande maioria afirmou que se tratava de uma história de terror, ou de aventuras “que dão medo”. Houve ligeira discussão acerca da existência de vampiros “na vida real” e, questionados sobre quais personagens acreditavam haver naquela narrativa, disseram:8

Criança 1 – Tem esse vampiro, o da capa. Acho que ele é o personagem principal.
Criança 2 – É isso mesmo! Só aparece ele na capa, a história é sobre ele.                                     

Professora – Pela imagem da capa, como vocês acreditam que é esse vampiro?
Algumas crianças – Feio!!!
Criança 3 – Ele é criança, tem cara de criança…
E no título diz que é pequeno…
Criança 4 – E se for um vampiro anão?
(Muitos risos)
Professora – Criança 3 disse que ele tem cara de criança. Alguém mais tem essa opinião?
Criança 5 – Eu acho que é, também.
Professora – E por que você pensa assim?
Criança 5 – Porque ele está fazendo pose de malvado, mas não parece assim tão malvado.
Criança 6 – Os vampiros são malvados, esse deve ser também.
Algumas crianças – É malvado, sim!
Criança 5 – Mas a Cláudia falou que a autora era professora e que escreveu esse livro pra crianças… Não deve ser assim, tão assustador…
Criança 7 – Você não lembra da (sic) Chapeuzinho Vermelho, que o lobo comeu e não voltou mais? Tem história assustadora, também!
Professora – Bom, esse é um ponto pra gente conferir durante a história… E vocês acham que há outros personagens?
Todos – Sim!
Criança 4 – Eu acho que tem outros monstros, tipo (sic) lobisomem, por exemplo.
Criança 8 – Se ele é pequeno, deve aparecer o pai e a mãe dele também.

Logo após essa discussão, optei por ler apenas o primeiro capítulo da obra, sobre a vida cotidiana
de Anton, o menino de oito anos que conhece o pequeno vampiro numa noite em que está sozinho Logo após essa discussão, optei por ler apenas o primeiro capítulo da obra, sobre a vida cotidiana de Anton, o menino de oito anos que conhece o pequeno vampiro numa noite em que está sozinho em casa. Vários alunos ficaram surpresos pelo fato de a narrativa não se iniciar logo com a entrada do personagem que dá título à obra, o que possibilitou discutirmos sobre quem era o real protagonista da história. Uma conversa bastante interessante, na qual as opiniões se dividiram de maneira bem explícita. Alguns argumentavam que o personagem principal era, de fato, o menino Anton, pois a história, até ali, tratava mais dele e de seus pais do que do vampiro em si. Outros defendiam que, se o título era O Pequeno Vampiro, o protagonista só poderia ser Rüdiger. Nenhum deles cogitou a hipótese de que ambos poderiam ser os personagens centrais, mesmo quando foram provocados a isso.

No decorrer das quatro rodas de história que se seguiram, foram lidos mais oito capítulos. As crianças ainda tendiam a fazer comentários simples, que diziam respeito apenas aos seus personagens prediletos, ou se estavam gostando da história, ou, ainda, antecipavam os próximos acontecimentos, levando em consideração os títulos dos próximos capítulos.

Pensando em como poderia, de fato, ampliar as possibilidades das crianças, propus uma atividade escrita, individual, realizada assim que ficou mais claro que Rüdiger e Anton (o vampiro e o menino) realmente se tornariam amigos, e que este não seria, de fato, mordido. Como perguntas genéricas
levariam a respostas igualmente genéricas, vi a necessidade de pensar num foco específico de trabalho
e elaborar questões precisas, cujas respostas pudessem suscitar diferentes análises por parte das crianças e, conforme o desejado, levassem-nas mais além em suas possibilidades de discussão literária. Assim, de acordo com alguns preceitos formulados por Joy Moss9 e considerando a faixa etária do grupo e suas possibilidades de resposta, foram formuladas três perguntas:

1. No decorrer da história, você mudou de opinião sobre algum personagem? Por quê? (centrada na análise da narrativa)
2. Como você se sentiria se fosse Anton e se deparasse com um vampiro na janela de seu quarto? (centrada em comentários pessoais a partir de fatos da história)
3. Por que você acha que Anton continua visitando Rüdiger em sua cripta, mesmo com o risco de encontrar alguém da família dele? (centrada em interpretações possíveis, levando em consideração acontecimentos da trama e personalidade dos personagens)


9 “Em uma discussão literária os estudantes não só compartilham e defendem suas ideias, mas também descobrem e refletem a respeito dos pontos de vista e interpretações dos outros. Esse tipo de intercâmbio faz com que, muitas vezes, os estudantes voltem a pensar e a aprofundar os contatos iniciais que como leitores tiveram com o texto”. Joy Moss. Literary Discussion in Elementary Classroom, Urban: NCTE (2002).

Algumas das respostas mais interessantes das crianças podem ser conferidas a seguir.10

1. No decorrer da história, você mudou de opinião sobre algum personagem? Por quê?
– Eu achei que os vampiros fossem maus, mas na história não são.
– Eu achava que o vampiro era mau, porque geralmente os vampiros são maus. Quando Rüdiger levou Anton à cripta, eu achei que ele fosse ser mordido.
– Eu achei que o pai e a mãe de Anton iam descobrir que ele tinha um amigo vampiro.
– Pensei que Rüdiger era mau. Mudei de ideia porque percebi que ele era um vampiro amigável.
– Eu percebi que o Rüdiger é do bem.
– Eu achava que o Anton era corajoso, mas eu descobri que ele era medroso.
– Eu achava que o vampirinho era do mal, porque ele apareceu do nada. Não acho mais, porque ele não chupou sangue do Anton.

2. Como você se sentiria se fosse Anton e se deparasse com um vampiro na janela de seu quarto?
– Eu não acharia nem um pouco normal.
– Com um pouco de medo.
– Com muito medo. Mas, se fosse um vampiro legal, eu gostaria.
– Com medo, porque é um vampiro!
– Eu não queria me deparar com um vampiro na janela do meu quarto…
– Eu acendia a luz ou iria à cozinha e pegaria um alho.
– Eu ia me assustar, porque um vampiro de verdade é assustador.

3. Por que você acha que Anton continua visitando Rüdiger em sua cripta, mesmo com o risco de encontrar alguém da família dele?
– Porque, como o Rüdiger ficou doente, achei que ele queria cuidar do vampiro.
– Porque eles eram amigos.
– Porque ele gosta de Rüdiger.
– Porque ele virou meu amigo. (Evidencia o quanto este aluno “mergulhou” no ponto de vista do personagem, a ponto de responder como se fosse ele.)
– Porque ele não tem medo.
– Porque o Anton é muito amigo de Rüdiger.
– Para ver se ele está bem e para ver a irmã de Rüdiger.
– Porque Rüdiger é o melhor amigo de Anton.


10 Para garantir a compreensão, foram corrigidos os deslizes ortográficos e de pontuação (com a ressalva de que, no 1o ano do Ensino Fundamental, tais conteúdos das práticas de linguagem não são foco de trabalho).

As respostas formuladas pela classe transformaram-se em focos de discussão. Foi solicitado a eles que indicassem quais partes/acontecimentos da narrativa haviam sido determinantes para que chegassem àquelas conclusões. Tal movimento – de voltar ao que já havia sido lido/ouvido com vistas a justificar as opiniões obtidas – permitiu que a maioria dos alunos adotasse uma posição mais analítica em relação à história que tanto gostavam de ouvir, sem se limitarem a comentários unicamente relacionados à apreciação ou ao simples relato do enredo – o que, indubitavelmente, tornaria as discussões mais vazias.

Se fizermos perguntas sobre o “conteúdo” ou “significado” de um texto, parece que estamos apenas testando a competência social de uma criança (…). Dessa maneira, tudo o que as crianças que se saem bem nos testes de compreensão demonstram é que podem encontrar a resposta implícita na pergunta. O significado “real” do texto para o indivíduo continua oculto; as crianças (talvez para sempre depois disso) desenvolvem a habilidade de dizer aquilo que se espera que digam, e bem podem supor que seus entendimentos pessoais estão, de algum modo, “errados” – tal como aqueles que definem as questões da prova devem supor que a própria leitura do texto é, de algum modo, “correta”.11

Exatamente por esse motivo, as escolhas recaíram sobre perguntas mais abertas e discussões que não traziam o caráter de certo ou errado. Naquele momento, interessavam as razões nas quais se pautavam para elaborar suas respostas – se haviam sido, de fato, pensadas com atenção, ou se as crianças estavam encarando apenas como um exercício.

Pude observar que as crianças demonstraram uma aproximação maior de análises literárias que não estavam evidentes na obra. A amizade entre o menino e o vampiro é constantemente mencionada pelas crianças, embora o narrador deixe evidente que Anton desconfie da bondade de Rüdiger. Durante a discussão, elas relacionaram diversas situações que eram, de fato, demonstração de amizade – mas que, para crianças pequenas, não seriam tão obviamente mencionadas.

Acredito que, numa próxima oportunidade, a discussão também poderá ser levada para a análise de outros personagens – os pais de Anton, por exemplo, e as atitudes do menino em relação a eles; pois, mesmo pequenos, poderiam formular hipóteses sobre suas atitudes – a descrença do pai, a desobediência recorrente do menino, a insistência da mãe em conhecer os amigos do filho… São os temas presentes no cotidiano das crianças que tornam a interpretação mais passível de acontecer, mesmo para crianças de seis anos.


11 Crítica, teoria e literatura infantil, de Peter Hunt. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 135-6.

Em contrapartida, cremos que uma análise mais aprofundada do narrador, que, apesar de onisciente, conta a história do ponto de vista do personagem Anton, não seria tão possível, justamente por se tratar de crianças de seis anos.

As discussões mais profundas levaram a turma, também, a embarcar na história de uma maneira que não havia sido presenciada nas rodas anteriores desse ano. As crianças traziam capas de vampiro, dentes e morcegos de plástico para a roda, na tentativa de fazer parte do que estava sendo contado. Brincadeiras no parque sobre a trama eram frequentes. Além disso, após o término da leitura na roda, mais de dez meninos e meninas começaram a perseguir a coleção, pedindo aos pais que comprassem ou retirassem na biblioteca outros livros da saga do pequeno vampiro. A roda, assim, transcendeu o espaço escolar, fazendo parte também do âmbito familiar, à medida que pediam aos pais e avós que lessem a história com eles. Nas rodas de início do dia, muitos trocavam impressões acerca de suas leituras livres, do quanto os personagens se modificavam conforme a saga avançava… Sentiam-se, de fato, integrantes de uma comunidade leitora. Não era um objetivo inicial, mas fomentar essa incursão no universo literário – ainda que inicialmente por meio de uma coleção fantástica – é plantar uma sementinha para que se tornem leitores de literatura por prazer.

Demos prosseguimento à leitura e, no último dia, procurei focar a atenção da turma para o papel que o narrador teve durante a história – algo possível para esses alunos, que já tiveram contato com narradores em primeira pessoa (no livro-álbum O diário do lobo) e com narradores que conversam com os personagens e leitores (no livro A estranha Madame Mizu). Transcrevo, a seguir, um trecho dessa conversa.

Professora – E quem contou essa história?
Poucas crianças – Você!
Criança 1 – Não! Não foi a Clau que (sic) escreveu o livro, foi aquela alemã, a Angela…
Criança 2 – É, foi ela quem contou a história.
Professora – Será que ela conheceu, de fato, o Anton e a família dele?
Criança 3 – Ela inventou o Anton, o Rüdiger, a Ana… Eles saíram da cabeça dela.
Criança 4 – Da imaginação dela.
Criança 2 – Então eu acho que não foi ela quem contou a história.
Professora – Por que não?
Criança 2 – Porque ela inventou a história, ela escreveu. A gente já conversou sobre quem escreve quem conta a história, que é diferente.
Criança 5 – É! Na (história da) Madame Mizu, quem escreveu foi o autor, mas tinha uma outra (sic) pessoa, que o autor inventou, pra contar a história…
Criança 2 – Como era o nome, mesmo, Clau?
Professora – Narrador.
Muitas crianças – Eu lembro!!!
Professora – E esse narrador do Pequeno Vampiro é igual ao da Madame Mizu?
Muitas crianças – Não…
Professora – Por que não? Os dois são narradores… Tem diferença entre eles?
Criança 6 – Eu não me lembro do narrador do
Pequeno Vampiro falar com o Anton ou com o Rüdiger.
Criança 1 – Ele só contou a história, o que aconteceu.
Criança 7 – É como se alguém tivesse assistido um filme (sic) e contado depois.
Professora – Como assim?
Criança 7 – A pessoa que contou a história já sabia de tudo que ia acontecer.
Criança 8 – É, não precisava perguntar nada pra ninguém.
Criança 2 – Então esse narrador é fácil de confundir com autor, porque a gente sabe que foi o autor quem escreveu e inventou, por isso sabia tudo… Esse narrador sabe tudo o que o autor sabe!

Optei por não aprofundar essa discussão, considerando que se tratava de uma turma de crianças bem pequenas – e que, apesar de serem capazes de chegar a conclusões tão elaboradas para a idade, não conseguiriam compreender todas as implicações de um narrador onisciente. Assim, deixei-os com suas conclusões provisórias, para que aprofundem seus pontos de vista no decorrer dos próximos anos de escolaridade.

Peça-chave: escolher um conto de qualidade

As discussões transcritas aqui podem dar a dimensão do quanto uma parte significativa das crianças da turma foi capaz de chegar a conclusões sofisticadas, quando se considera que têm apenas seis ou sete anos.

Penso que, para além das escolhas didáticas referidas, parte dessas aprendizagens se deve à obra que a proposta envolveu. O Pequeno Vampiro é um exemplo de qualidade na literatura destinada especificamente às crianças, pois atende a algumas características essenciais para ser considerado como um bom conto: é tenso, denso e intenso.12

Encontramos, nele, guardadas as devidas proporções peculiares a uma obra voltada ao público infantil, esses três aspectos. É tenso no sentido de deixar o leitor num estado de expectativa, de suspensão, temor, maravilhamento, curiosidade… Afinal, Rüdiger é mesmo um vampiro fora dos padrões convencionais? Anton está seguro voando com seu novo amigo, visitando-o em sua cripta? E os pais do menino, descobrirão a verdade sobre as ausências noturnas do filho e a origem da capa preta que encontraram em seu quarto?

Também a obra é intensa, por haver muitas coisas acontecendo em pouco espaço narrativo – muito sentimento, muita ação, muitas ideias… As emoções do menino se misturam às do leitor, que fica na expectativa de descobrir como Anton se desvencilhará das dificuldades que vão aparecendo no decorrer da narrativa. Além disso, é densa justamente por esse encontro entre tensão e intensidade.

Dentre as várias possibilidades presentes no corpus literário de literatura infantil um pouco mais extensa – ou seja, que pudesse ser lida em capítulos –, essa obra atende às características primordiais de um conto. A temática também é bastante pertinente para o trabalho com crianças pequenas – o encontro entre um menino crível, pertencente ao mundo real, e um ser fantástico, cujas características principais são avessas ao lugar-comum.

Numa idade em que lidam constantemente com seus medos, questionando a existência e o papel do faz de conta no mundo em que vivem, a escolha de uma trama sobre um vampiro que também é criança, quer fazer amigos, fica doente e faz birra é praticamente certeira – e isso, de alguma forma, pode ajudar os alunos a se envolverem mais com a proposta, tanto da escuta propriamente dita como das discussões e atividades decorrentes desse momento literário.

Outro ponto presente no conto, segundo Ricardo Piglia (1987, p.37), é a presença de duas histórias sendo contadas simultaneamente. Aqui, podemos ver a história explícita (o encontro e as aventuras de Anton e seu amigo Rüdiger) e a implícita (a difícil relação entre o menino e seus pais, o quanto se sente sozinho e incompreendido…). Apesar do foco de discussão da proposta relatada ter ficado restrito à história explícita, existe a possibilidade de ampliá-lo ao implícito numa nova situação de aprendizagem.

A voz do contador, seja oral ou seja escrita, sempre pode interferir no seu discurso. Há todo  um repertório no modo de contar e nos detalhes do modo como se conta — entonação de voz, gestos, olhares, ou mesmo algumas palavras e sugestões —, que é passível de ser elaborado pelo contador, neste trabalho de conquistar e manter a atenção do seu auditório.13


12 Ideias de Julio Cortázar referidas por Noemi Jaffe em aula da disciplina Estudos Literários, na Especialização em Alfabetização, do Centro de Formação da Escola da Vila, em São Paulo (SP).

A forma como Angela Sommer-Bodenburg vai tecendo a narrativa, descrevendo ambientes e emoções a partir do ponto de vista do personagem-menino, também contribui para que as crianças se envolvam e realmente consigam sentir a tensão e a intensidade presentes nessa obra, ambientada quase exclusivamente em cenários úmidos, sombrios ou noturnos. Para crianças pequenas, que vivem em uma sociedade extremamente visual, descrições detalhadas são cruciais no sentido de auxiliar a construção mental dos ambientes, partes tão importantes dessa narrativa especificamente.

Escolher uma obra com elementos tão perceptíveis, além de contar com uma narrativa bem escrita e com a possibilidade de as crianças continuarem seguindo os personagens que se tornaram muito queridos em outras 14 obras da saga, certamente traz contribuições benéficas para a formação do leitor iniciante de literatura. Para além de todos esses pontos positivos, as possibilidades de discussão são bastante amplas, não apenas para crianças de 1o ano, mas até para crianças mais velhas (até meados do 4o ano), tendo-se sempre o cuidado de aprofundar mais os focos de análise, comentários e interpretações quanto mais sofisticadas forem também as possibilidades do grupo com o qual será realizada a proposta.


13 A teoria do conto, de Nadia Batella Gotlib. http://terapiadapalavra.com/2008/08/07/a-teoria-do-conto-nadia-battella-gotlib/
Posted in Revista Avisa lá #54.