Documentação, exposição e experiência

DENISE NALINI E MARIANA AMERICANO¹


EXPOSIÇÃO MARCA PERCURSO DE FORMAÇÃO DOS PROFESSORES TENDO COMO TEMA ARTE CONTEMPORÂNEA E DESENVOLVIMENTO INFANTIL. REVELA TAMBÉM A EXPERIÊNCIA VIVIDA PELAS CRIANÇAS QUE PUDERAM EXPERIMENTAR E SE EXPRESSAR


Quando a porta do CEI² abriu, fomos recebidas por uma cortina feita de folhas de revista enroladas no formato de tubos, um convite para tocar e passar por eles, uma marca que nos mostrava que não entraríamos numa exposição convencional.

O convite se ampliou pedindo a presença dos nossos sentidos ao passarmos dentro do “túnel das sensações” . Um túnel de tecido transparente, de várias cores, verde-limão, amarelo, laranja e rosa³ que nos propiciava pisar em diferentes materiais de várias texturas, manusear e sentir cheiros, além de poder ver através da transparência, conhecendo aquele espaço de uma maneira especial. Uma entrada que inspirava e nos dava vontade de seguir adiante.

Trabalhos expostos nas árvores e no gramado compunham o ambiente, onde criação e natureza misturavam-se harmoniosamente. Recorte e colagem, construção, desenhos, cada técnica tinha o seu espaço mesclado aos elementos naturais. Marcas de uma preocupação com a documentação do processo de criação das crianças e com a ocupação do espaço.


1 Formadoras do Instituto Avisa Lá – São Paulo (SP).
2 Centro de Educação Infantil (CEI) – Núcleo III do Jardim Shangri-lá, em São Paulo (SP).
3 Este túnel fazia referência à obra “Estação Arcoverde” do metrô do Rio de Janeiro (RJ), cuja programação cromática é de Amélia Toledo.

O vento também se mostrava presente ao movimentar os móbiles e tecidos que estavam ao alcance de todos para serem observados e tocados. Móbiles feitos pelas crianças e tecidos com marcas de que foram muito usados em suas brincadeiras.

Até mesmo a casinha de madeira, que é parte integrante do jardim, neste dia serviu de suporte para exposições de trabalhos e ganhou nova função. As crianças, ao subirem nos degraus da escada para chegar ao escorregador, descobriam que a cada passo uma luz se acendia como mágica. Era só pisar no degrau para observar as luzes se acenderem.

O evento foi aberto para toda a comunidade. Durante dois dias mais de 100 educadores, vindos de diferentes creches e unidades educativas da região, tiveram a oportunidade de pensar sobre como aproximar a criança da arte contemporânea. Por meio de palestras expositivas, relatos de experiências dos profissionais do CEI Shangri-lá, debates e oficinas, os participantes puderam refletir e ampliar seus conhecimentos colocando a “mão na massa”. Assim como as crianças, experimentaram diferentes materiais e linguagens artísticas.


4 A equipe participou de diferentes programas de formação do Instituto Avisa Lá: Capacitar (2001), Extensão (2003), Tutoria, Cursos a distância e presenciais.
Antes do encontro, um caminho

Este encontro foi fruto de um longo trabalho de mais de seis meses de atuação com ricas reflexões sobre Arte Contemporânea e o desenvolvimento da criança de 0 a 3 anos. Mais do que um evento pontual, o grupo de profissionais passou seis meses a refletir e agir tendo como tema a Arte Contemporânea e a criança de 0 a 3 anos.

O que é Arte? E Arte Contemporânea? Como são os artistas que fazem a Arte Contemporânea? Qual relação as obras desses artistas podem estabelecer com as crianças pequenas? Por que trabalhar Arte Contemporânea com crianças tão pequenas? Foram essas questões que motivaram as educadoras a pesquisar, a conhecer e a visitar diferentes museus e exposições e, sobretudo, a observar as crianças.

Vindas de um processo de formação continuada desde 20014, essa equipe havia incorporado as questões do cotidiano como tema para reflexão didática. No entanto, buscando sempre aprofundar conhecimentos e práticas em 2012, tiveram como preocupação central compreender como dois grandes temas poderiam convergir. De um lado, a certeza de que a Arte é um dos principais alimentos para um desenvolvimento e uma aprendizagem significativa; de outro, a certeza de que só a Arte não basta. É preciso conhecer as crianças e saber o que elas sabem e o que as mobiliza. Quais são as características do desenvolvimento desta faixa etária? O que faz sentido para as crianças? Como elas aprendem? O que precisam aprender?

Para trilhar esse percurso de busca de respostas desencadeamos um movimento de partilhar sensibilidades, aprofundar indagações e promover a aproximação de crianças com alguns artistas e algumas obras de Arte Contemporânea. Nesse processo reflexivo, primeiro procuramos entusiasmar os professores com as buscas das crianças e, a seguir, com as questões dos artistas, aprofundando o processo constitutivo das obras, destacando o que poderia servir de alimento para o trabalho.

Fundamental também foi a vivência dos educadores, que puderam ser tocados pelas obras e pelas instalações visitadas e apresentadas na formação.

Acreditamos que somente quando algo faz sentido para o professor é possível inspirar a criação de uma poética com as crianças.

Dessa forma, nosso primeiro grande desafio foi o de “conter” os educadores que se encantaram com o que conheceram e queriam “reproduzir” as obras dos artistas estudados. A nossa intervenção foi no sentido de ajudar a pesquisar mais sobre a relação de cada artista com o seu trabalho e buscar o ponto de encontro com as crianças. Assim, cada um dos grupos precisou escolher um foco para o trabalho que dialogasse com as crianças. O que este artista fala? O que ele propõe e como isto se relaciona com as necessidades de aprendizagem destas crianças?


5 Ver artigo das mesmas autoras publicado na edição anterior da revista Avisa lá, “A criança e a arte: busca e encontro”.
Na formação, professor vira “artista”

Para pensar essa exposição é preciso voltar no tempo, pela oportunidade de construção de um percurso em que as crianças e os professores se transformam em produtores de cultura, investimento que só uma formação continuada possibilita. A intervenção da formação buscou aprofundar o olhar de cada professor para seu grupo, a construção de pautas de observação, o que caracteriza o fazer e o pensar das crianças dessa faixa etária. Além disso, a elaboração e o acompanhamento dos projetos dos professores, bem como a vivência de diferentes experiências estéticas, possibilitaram uma reconceitualização do papel do professor em arte.

Convidamos os professores a trazer objetos que as crianças mais gostassem e a apresentar suas observações de como elas brincavam e se apropriavam  deles. Nesse momento, os objetivos da formação era possibilitar ao educador maior conhecimento com as crianças de sua turma e quais se riam, portanto, as suas necessidades de aprendizagem. Somente a partir desse olhar as releituras das propostas dos artistas pelo professor poderiam ganhar sentido para as crianças.

Esse foi o movimento na revisão das propostas do trabalho de Antony Gormley com as crianças de 3 anos. Com a sensibilidade aflorada e o estudo das professoras a ideia da experiência do corpo no espaço ganhou sentido. A equipe do minigrupo I se aprofundou nesta questão e trabalhou diversas formas de representação do corpo humano.
Começando pelo contorno desse corpo, trabalhando a totalidade e também cada uma das partes, como na atividade de representá-las através de atadura gessada.

Da mesma forma, as professoras do Berçário II foram desafiadas a buscar um encontro entre o trabalho da Amélia Toledo e as crianças. Essa senhora doce e preocupada com a natureza levou as professoras a redescobrir o parque, a horta, os cheiros característicos do entorno da creche. Essa artista, de certa forma, convidou as crianças a ouvirem
os sons do lugar, a perceberem a mistura dos líquidos. E fez com que os professores pudessem olhar como brinquedos, restos de uma árvore recaída e o poço da creche poderiam encantar de forma inusitada as crianças. É esse tipo de pensamento e ação que a arte pode constituir, um pensamento divergente, complexo, sutil. Era como se Amélia tivesse estado entre nós, de tão profundo que foi o nosso mergulho em seu trabalho.

Na exposição, ao montarem as salas e os cenários para as oficinas, as professoras revelaram suas leituras dos artistas e de suas obras.

Da Amélia Toledo estavam as toras de madeiras e uma pequena árvore que serviu de suporte para os retratos das brincadeiras vividas e conhecidas das crianças. O poço construído com caixas de leite e empapelamento estava onde era o antigo poço da creche. Fotos do processo nos mostravam as experiências realizadas. Líquidos e argilas. Uma cortina de conchinhas e uma espécie de escorregador de madeira que nos remetiam às obras “Cachoeira” e “Sete ondas”, respectivamente.

Já a turma do Berçário I (B1) se envolveu com o trabalho de Olafur Eliasson5, escolhendo como recorte de seu trabalho as experiências com os reflexos e a luminosidade. Na sala do B1 estavam caleidoscópios feitos com pequenos espelhos redondos, pufe de bolinhas para deitar e olhar num espelho pendurado no teto tal como na exposição “Seu corpo na obra”, realizada na Pinacoteca de São Paulo em 2011. Além do espelho grande havia outros pendurados numa estrutura de ferro e também
um globo espelhado. Em outro ambiente cortinas de papel-celofane compunham o espaço, sugerindo uma gostosa brincadeira de se esconder e achar, tão apreciada nessa idade.

Do que as nossas crianças brincam? Esta foi a pergunta inicial das crianças do Minigrupo II, que ousadamente saíram a campo para pesquisar, nas casas e no CEI, as brincadeiras preferidas de sua turma. Elas fotografaram e colecionaram vários jogos simbólicos aos quais acrescentamos elementos não estruturados como: caixas de papelão, pedaços de madeira, tecidos, tudo o que pudesse ajudar a alimentar a imaginação das crianças e trouxesse novas possibilidades de brincar.

A creche como comunidade de aprendizagem para todos

De acordo com as gestoras6, alguns elementos foram fundamentais para que esse trabalho pudesse acontecer. O primeiro se refere à própria parceria entre elas que, juntas, buscaram uma formação de qualidade, reflexiva e comprometida com a qualidade da educação. Outro ponto enfatizado é a necessidade de autonomia dessa equipe para priorizar as questões pedagógicas. Dessa forma, podem oferecer à comunidade e às crianças materiais de qualidade e profissionais bem formados que compreendem o seu papel na educação das crianças pequenas. Relatam também o quanto o investimento na formação continuada levou-as à construção de uma estrutura formativa que, mesmo diante de problemas, continuou sendo um porto seguro para os professores poderem discutir e aprofundar seus saberes.

Para concluir, não é apenas uma formação pontual que garantiu esse encontro. É preciso destacar a presença constante de Nair e Benê, as gestoras, que acolheram, propuseram momentos de estudo, buscaram diferentes formas de viabilizar e, sobretudo, partilharam com as famílias e com a comunidade essa exposição.

Maridos, cunhados, amigos… cada um ganhou uma responsabilidade: ajudar na instalação elétrica da casinha, serrar a grande tora de madeira; pais e filhos que, nesse processo, podem aprender que a creche é um espaço de convivência para as famílias, e que educação e cultura se fazem nessa parceria e nesse compromisso de todos. Como diz o ditado africano: é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. É essa aldeia que construímos no cotidiano e ainda temos como resultado espaços maravilhosos que enriquecem a brincadeira e o aprendizado das crianças.

É esse espírito que garantiu à equipe de 22 profissionais motivação para preparar cada um dos detalhes dessa exposição: o desejo de saber e de saber fazer.


6 Nair Bortoleti e Benedita Machado Mello são, respectivamente, diretora e coordenadora pedagógica do CEI Jardim Shangri-lá.

Onde está a arte, no espaço

As paredes das escolas falam?

Uma boa ideia para proporcionar uma experiência estética no ambiente escolar é expor a própria produção das crianças, o que contribui muito para a formação de todos na escola.

Cada vez que compartilhamos a produção de um grupo de crianças, isso precisa ser exposto com rigor estético, considerando as necessidades dos trabalhos a serem mostrados – usar um painel limpo, pendurar os trabalhos com harmonia, distribuídos para que não fiquem entulhados. A exposição deve mostrar o cuidado do professor com a produção e seus alunos. A valorização do processo de criação deve acompanhar a exposição. (…)

A exposição é um ambiente de trocas que apresenta outra forma de comunicação para a comunidade expressiva de sua escola. Espaço que também pertence às crianças, pois é a produção delas que está ali. Povoar um ambiente de elementos significativos, que dizem respeito às crianças, faz toda a diferença – em vez de usar adereços que interferem
no trabalho das meninas e meninos, efeitos midiáticos superficiais, que não tem relação com a produção cultural daquela comunidade (…). Povoar constantemente a escola com a produção das crianças é mostrar a vida da escola. Desta forma, professores compartilham com a comunidade escolar o que está acontecendo com seu grupo. É interessante ter um evento de vez em quando, com a participação dos pais, um ritual – como as mostras culturais. A escola também necessita de rituais de encontro, celebração do trabalho.

Uma exposição pode ser um bom momento de encontro entre as pessoas, onde vemos e conversamos sobre os trabalhos e o aprendizado das crianças. Uma exposição pode ser uma celebração. Entretanto isso não exclui a necessidade expor o trabalho das crianças sempre.

Stela Barbieri em: Interações: onde está a arte na infância?
Coleção Interações (pags.56 a 58). São Paulo: Blusher, 2012.
Posted in Revista Avisa lá #54.