Proposta de alfabetização estético-visual em museus

Museus e escolas podem ser excelentes parceiros desde que se saiba como aproveitar melhor as especificidades de cada um

Segundo Mirian Celeste Martins:

A arte é importante na escola, principalmente porque é importante fora dela. Por ser um conhecimento construído pelo homem através dos tempos, a arte é um patrimônio cultural da humanidade e todo ser humano tem direito ao acesso a esse saber1.

Comendo com os olhos, Sem título, de Sofu Teshigahara (desenho Henrique Yuji Ueno)

Comendo com os olhos, Sem título, de Sofu Teshigahara (desenho Henrique Yuji Ueno)

Entender a Arte como conhecimento significa articular a criação/produção, a percepção/análise e o conhecimento da produção artístico-estética da humanidade, compreendendo-a histórica e culturalmente. Foi pensando em garantir experimentações sensíveis e estéticas com o patrimônio artístico e cultural da cidade de São Paulo, do povo brasileiro e de outros povos por meio da mediação educativa que nasceu a proposta “Para comer com os olhos: uma proposta de alfabetização estético-visual a partir de contatos acumulativos mediados em museus”.

O legado da humanidade, construído ao longo de séculos por homens e mulheres em tempos e lugares diversos, é um bem simbólico que nem sempre tem sido respeitado e valorizado. Integrá-lo ao conjunto de saberes na Proposta Curricular de Arte possibilita abordar esses valores.

Nos museus, temos contato com a memória, a criação estética, as elaborações artísticas, a própria Arte, que se estrutura como um sistema simbólico, registrando e expressando experiências estéticas e estésicas3 como manifestações humanas.

Nesse contexto, a arte e a cultura apresentam características singulares. As experimentações estéticas e estésicas2

A mediação pode potencializar a atribuição de sentido à obra, quando feita por um fruidor sensível. Como facilitadora do encontro entre a arte e o fruidor, a mediação precisa ser pensada como uma ação específica, tornando esse encontro mais significativo. Promove um contato que deixa os canais abertos para sentidos, sensações e sentimentos despertados para a imaginação. É “o espaço do silêncio externo, com falas internas nem sempre traduzíveis”.3

Nesse contexto, vale destacar o papel da Arte na escola. “O que em mim sente está pensando”, dizia Fernando Pessoa. Esta citação contém a essência do que a Eduque pensa ser importante para o papel da Arte na escola.

Uma Arte que, a partir do desenvolvimento da capacidade de sentir, propicie o pensar, tendo como início o olhar sensível, uma percepção que, segundo Fayga Ostrower4, está diretamente ligada à sensibilidade de cada um. Logo, se unirmos Fayga e Pessoa, fica fácil compreender que é investindo em um olhar que sente e pensa que poderemos gerar um processo pedagógico em arte capaz de fazer a diferença.

Esse novo caminho para ensinar-aprender Arte, presente no projeto pedagógico da escola, está ancorado em um pensamento curricular que pode se mover em diferentes territórios da Arte e da Cultura.

Acreditamos que para aprender Arte só há uma maneira: tornar-se sensível ao regime de signos que dá existência à própria Arte. Isso implica contato, contágio e ser afetado pelas intensidades da linguagem da Arte, seja quando nos forçamos a pensar signos estéticos no aqui e agora da invenção poética5, seja quando somos tomados pelas ressonâncias em nós das produções artísticas.

Assim, essa pedagogia estética e artística compõe-se de práticas sensíveis, sendo uma delas a visitação mediada a diferentes museus na cidade de São Paulo. Nesse contexto de constante, periódica e intencional exposição à Arte, ampliamos o repertório6 dos alunos, nutrindo-os esteticamente7.

Esses repertórios pessoais e sociais; as heranças culturais; as experiências vividas; a potencialidade do imaginar, do pensar e criar o que ainda não está visível sustentam o devir do aprender a aprender Arte, por dentro de seu próprio sistema, insuflando-nos a deslizar pelo inédito, pelo nunca experimentado, pela invenção.

“Para comer com os olhos…” é uma proposta de nutrição estética que envolve leitura visual, fruição de arte, reflexão, registro e construção de conhecimentos específicos da área, bem como aproximação ao patrimônio estético-cultural da cidade a partir de contatos acumulativos mediados dos alunos com museus de arte de São Paulo.

O trabalho acontece ao longo da escolaridade, pensando a alfabetização do olhar e dos sentidos das crianças desde a Educação Infantil até a conclusão da primeira etapa do Ensino Fundamental. Cada uma das visitas é registrada num portfólio individual que acompanhará os estudantes até a finalização do processo, no 5º ano, quando poderão observar seu desenvolvimento estético-cultural, seu conhecimento de Arte e do patrimônio artístico e cultural presente na cidade, ao longo dos anos.

Nesse portfólio artístico, poderão existir muitos adendos, uma vez que os alunos terão a possibilidade de incluir registros de outros contatos com a Arte, com visitas a museus dentro e fora do País, com os familiares e, desse modo, suas experiências extraescolares certamente farão diferença em sua formação ao longo do percurso.

O portfólio, assim, permite que o aluno reflita sobre a sua processualidade pensando Arte, pensando por meio da Arte, uma composição visual no meio da passagem entre o não saber e o saber. É a aprendizagem de aprender a pensar. Escolhemos museus fixos para conhecimento de nossos alunos em cada uma das fases da escolaridade, tendo como critério as regras de visitação para as diferentes idades (crianças muito pequenas, a partir de 3 anos, vão ao Museu de Arte Moderna – MAM), as referências artísticas de seu acervo e a possibilidade de interlocução com os projetos de arte da série, as temáticas e/ou linguagem (Modernismo, no Museu de Arte Contemporânea – MAC; Escultura, no Museu Brasileiro da Escultura – Mube), os percursos artísticos culturais que queremos ampliar (Museu Afro Brasil), a presença de meios tradicionais (Pinacoteca e Museu de Arte de São Paulo – Masp) e meios novos com diferentes materialidades e suportes (Museu da Imagem e do Som – MIS).

“Escolher os museus que fariam parte deste trajeto pensado como alimento estético-cultural foi uma tarefa delicada, de muita observação e negociações. Primeiro foi decidi do que só entrariam os museus de arte para que a proposta não ficasse marcada por um caráter muito histórico. Depois foi a hora de escolher: quais museus entrariam nesta seletiva? Para garantir uma amplitude contextual estético-cultural ao longo da escolaridade, foram selecionados então museus de arte clássica, moderna e contemporânea, além do cuidado com a possibilidade de visitar espaços de diferentes linguagens da arte sem esquecer a questão multicultural, capaz de acordar a percepção aos diferentes cantos de onde vem a arte, especialmente nossa origem, matriz cultural brasileira, cultura afro. Assim foram selecionados: MAM, MAC, Mube, Masp, Pinacoteca, MIS e Museu Afro Brasil, um bom roteiro para começar a brincar”. (Juliana Carnasciali – arte-educadora)

tema5111

Sabemos que olhar e discursar sobre um objeto visto modifica a relação do homem com o meio e o insere de modo diferenciado na sociedade, logo este trabalho é de extrema importância para a formação de um ser humano contemporâneo capaz de criar discursos para se colocar qualitativa e moralmente criativo na sociedade.

Socialização das impressões (Desenho Lucas Teixeira Lourenço)

Socialização das impressões (Desenho Lucas Teixeira Lourenço)

O projeto em ação

Etapas de desenvolvimento do projeto com o 2o ano do Ensino Fundamental:

1ª etapa – Avaliação iniciante: O que é um museu?
Para iniciarmos o trabalho com os alunos, organizamos uma roda de conversa, e a professora fez a pergunta “O que é um museu?” para que as crianças respondessem do ponto de vista delas, sem nenhuma interferência. A ideia era que verbalizassem o que pensavam sobre o assunto. As respostas foram bem diferentes:

“Um Museu é um lugar que a gente pode ver esculturas e pinturas” Larissa Miki Ohtaguro

“O Museu é porção de coisas antigas e muito criativas” Pedro Ferreira Natali

“Um Museu é um lugar que pode ver coisas interessantes” Leonardo Paiva Correia Pinheiro

“Um Museu é um lugar onde tem esculturas” Beatriz Jardim

“Um Museu é um lugar que tem exposições de esculturas e quadros”. Júlia Fuso Duque

2ª etapa – Lição de casa: pesquisa sobre artistas e temas relacionados à visita em questão
Por se tratar de alunos mais velhos, foi proposta uma atividade a ser realizada em casa, em que eles precisavam pesquisar sobre TRIDIMENSIONALIDADE e explicar aos demais colegas como entenderam esse conceito a partir da nutrição estética selecionada pela arte-educadora. O registro das descobertas foi feito no Caderno de Arte.

Dos artistas indicados, cada aluno deveria escolher um para pesquisar de que lugar ele era, como era seu trabalho artístico, expondo oralmente os resultados da pesquisa aos colegas.

3ª etapa – Apresentação do projeto
Nessa etapa, a arte-educadora Juliana Carnasciali apresentou o projeto, explorando o conceito de acervo a partir de fotos de museus, de suas coleções, do museu que visitariam – o MAC – e sua coleção tridimensional na exposição “O Tridimensional no Acervo do MAC: Uma Antologia”. É importante destacar que esse museu foi projetado por um dos mais extraordinários arquitetos brasileiros, Oscar Niemeyer. Portanto, começar o estudo por uma obra de arte como a construção do prédio que atualmente abriga o museu foi um início importante.

Com essa aula, a arte-educadora sistematizou o nome do projeto e a ideia de comer com os olhos, com contribuições interessantes dos alunos.

4ª etapa –
Visita
Logo no início da visita, os alunos foram convidados a observar o prédio do museu, perceber suas linhas, seu formato e registrar em desenhos, pois já conheciam o arquiteto e suas características.

A visita ao interior do museu, num primeiro momento, permitiu conhecer a amplitude das obras tridimensionais disponíveis na exposição, privilegiando um olhar amplo do acervo. Num segundo momento, os alunos deveriam escolher uma obra para estudá-la com mais profundidade, registrando suas principais características, bem como desenhando-a de diferentes pontos de vista. Era o momento de “comer com os olhos”.

As crianças se interessavam muito pelos nomes da obras. E ficavam muito mais intrigadas com aquelas que não tinham nome. Havia uma com a informação: “Sem nome, mas com amor”, que os deixou bastante interessados. Muitas das obras vistas foram reconhecidas, bem como os artistas ali expostos, pois pesquisa inicial do acervo, ocorrida anteriormente, foi repleta de significado e sentido para os estudantes. Eles entravam no museu e já iam dizendo: Olha, Henri Moore. Nossa, é a Carmela Gross…
Juliana Carnasciali

5ª etapa – Registro após a visita: O que comi com os olhos dentro e fora do museu?
Após a visita, os alunos foram convidados a registrar o que havia ficado de mais especial para eles dentro e fora do museu, desenhando e escrevendo.

6ª etapa – Socialização
Com a finalidade de divulgar o estudo, os alunos e a professora montaram murais pela escola, produziram textos para o site e elaboraram uma indicação cultural para a Revista da Eduque.

Nesse momento, o propósito foi a construção do texto com função social, bem como apresentar a todos MAC Nova Sede como patrimônio artístico-cultural da cidade de São Paulo.

2º ano no MAC
Nosso projeto: “Para comer com os olhos…” já começou!

O 2º ano foi visitar o MAC, Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, sede nova, onde apenas um andar foi inaugurado. Com arquitetura fantástica projetada por Oscar Niemeyer, recebe, desde 28 de janeiro, a mostra “O tridimensional no acervo do MAC: Uma Antologia”. Nossa proposta teve início há algumas semanas atrás quando as crianças foram questionadas: “O que é um museu?”.

Depois disso, fizeram uma lição de casa pesquisando o que é “tridimensionalidade” e escolheram um dos 18 artistas da mostra para conhecer um pouco sobre ele. No retorno da lição, socializamos as descobertas, e escutamos frases muito interessantes, como: “Contemporâneo é um tempo antes do futuro”, um indício de que nosso trabalho está indo por caminhos férteis.

No dia 12 de abril aconteceu a visita, na qual as crianças aproveitaram bastante o espaço, as obras e o contato com novos conhecimentos. Algumas saíram dizendo: “Fantástico… eu achei sensacional… muito construtivo!”. Foi uma visita com duração de uma hora, inaugurando a visitação do museu por escolas – e fomos a primeira escola a visitar a nova sede do MAC – que incluiu, em uma primeira passagem, o comer com os olhos, obra a obra, ângulo a ângulo, artista a artista e um comer com as mãos, quando do contado do olhar passamos para o papel: cada criança, em um segundo momento, escolheu uma obra para registrar, para desenhar. Foi tão especial que todos quiseram desenhar mais de uma obra.

7ª etapa – Montagem de mural com percursos, vivências e descobertas
Esse projeto conta com a montagem de um mural coletivo referente às visitas, com informações dos museus e fotos dos estudos. Vale ressaltar que o trabalho com o 2º ano rende outras ações não programadas. Como as crianças são mais autônomas, elas nos surpreendem com atitudes próprias. Nossa aluna Beatriz (2º ano A), por exemplo, tem enviado e-mails para Carmela Gross (artista com objetos expostos no MAC) e aguarda retorno.

Nessa perspectiva, as proposições pedagógicas trazem à tona um professor-pesquisador que se reinventa, com uma atitude investigativa diante dos diferentes saberes com que irá se deparar. Um professor-criador dos próprios percursos de aprendizagem, autor do seu pensar/fazer pedagógico com a escolha de caminhos que possam abrigar e expressar a coautoria com os alunos.

O ensinar-aprender decola pelas asas da invenção, por um tipo de ação que parte de uma ideia, mas que, ao investigá-la, cria, antes, o modo de investigação, investigando também o investigante, na quilo que ele sabe e no modo como sabe.

Ao formar crianças, os educadores também são formados. Ao visitarem museus e suas percepções sobre vários conceitos, os professores percebem que a processualidade é o mapa da experiência estética vivenciada por eles e pelos alunos, traçada por caminhos (movimentos) que buscam na Arte, como território da invenção, encontros sensíveis e criadores que possam afastar visões estereotipadas ou visões reduzidas do mundo, diminuindo o distanciamento entre Arte e vida.

(Patrícia Cintra, diretora pedagógica da Eduque Nova Escola, em São Paulo–SP)

1A língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte, de Mirian Celeste Martins, Gisa Picosque e M. Terezinha Telles Guerra. São Paulo: FTD, 1998 (Coleção Didática do Ensino). Tel.: 0800 772 2300. Site: www.ftd.com.br

2Estesia: percepção do mundo exterior através dos sentidos; faculdade que possibilita a experiência do prazer (ou do seu contrário). A obra de arte é um bloco de sensações, como dizem Gilles Deleuze e Félix Guattan em sua obra O que é filosofi a? (Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992). Para estes autores, o elo que unifica as artes é sua capacidade de captar forças invisíveis que existem dobradas dentro da sensação. Ao mostrá-las, a arte se faz fluxo de impressões, percepções, sensações.

3A língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte, de Mirian Celeste Martins, Gisa Picosque e M. Terezinha Telles Guerra. São Paulo: FTD, 1998 (Coleção Didática do Ensino). Tel.: 0800 772 2300. Site: www.ftd.com.br

4Universos da Arte, de Fayga Ostrower. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1983. (Fora de catálogo).

5Poética porque vem de poiesis, do grego: ação de fazer algo; aquilo que desperta o sentido do belo, que encanta e enleva.

6Numa simplificação conceitual, repertório (…) é o arquivo dinâmico de experiências reais ou simbólicas de uma pessoa ou grupo social. (…) tem recorrência no conceito de memória, de imaginação e, em última instância, no de conhecimento. Mas é importante ter sempre presente o aspecto dinâmico desses conceitos. Assim como repertório, a memória, a imaginação e o conhecimento não são arquivos mortos, passivos. (Samir C. Meserani. O vizinho da sala ao lado. In: São Paulo, SE/Cenp, 1986: 17-8).

7Nutrição estética: “A arte alimenta a própria arte”, disse Pablo Picasso, que aos 13 anos viu pela primeira vez uma obra de Velazquéz. Nutrir esteticamente o olhar é alimentá-lo com muitas e diferentes imagens, provocando uma percepção mais ampla da linguagem visual; olhar diferentes modos de resolver as questões estéticas, entrando em contato com conceitos e a história da produção nessa linguagem, com a preocupação de ampliar as referências. MARTINS, Mirian Celeste; PICOSQUE, Gisa; GUERRA, M. Terezinha Telles. A língua do mundo: poetizar, fruir e conhecer arte. São Paulo: FTD, 1998 (Coleção Didática do Ensino). p. 136 e 140.

Ficha Técnica

  • Eduque Nova Escola
    Endereço: Avenida Bosque da Saúde, 1404 – Bosque da Saúde. CEP: 04142-082 – São Paulo – SP
    Tel.: (11) 5581-0123
    Site: www.novaescola-eduque.com.br
    Direção pedagógica: Patrícia Cintra
    E-mail: patricia.cintra@novaescola-eduque.com.br

Para saber mais

Livros

  • Filosofia da criação: reflexões sobre o sentido do sensível, de Marly Meira. Porto Alegre: Mediação: 2003. Tel.: (51) 3330-8105. Site: www.editoramediacao.com.br
  • Encontros estéticos: coletânea de textos, de Jorge Anthonio e Silva (org). Caixa Econômica Cultural. 2005. Tel.: (11) 3321-4400. Site: www.caixacultural.com.br
Posted in Revista Avisa lá #51 and tagged , , , , , , , .