Que a arte deve estar presente nos currículos escolares é dado, e ninguém discorda. O “como”, no entanto, está sujeito a diferentes interpretações.Vemos hoje, no Brasil, pelo menos duas tendências de ensino da arte que se apresentam quase sempre como opostas: ou bem os educadores levam à sala apenas atividades propostas por eles, ou bem apostam nas surpresas da criação espontânea das próprias crianças. Nesta matéria, você vai conhecer uma experiência que pode ajudar a equilibrar as duas práticas. A introdução da oficina de percurso possibilita uma autoria infantil mais elaborada e autônoma
Quando pensamos quais conteúdos as crianças podem aprender nos primeiros anos da educação infantil, logo lembramos da área de artes visuais. Pintar, desenhar, colar, recortar, montar, modelar, ou a combinação de todos esses fazeres, são alguns dos primeiros procedimentos que os pequenos experimentarão na escola.
Ao realizar essas ações, eles se deparam com o que são capazes de produzir, surpreendendo-se e maravilhando-se com o processo e com o resultado de seus trabalhos, da mesma forma que se encantam com os jogos e as brincadeiras, pois essas atividades possuem aspectos comuns que os seduz: o acaso, o imprevisto, a surpresa. Enquanto crescem, vão sendo capazes de refletir sobre suas experiências de produção e somam ao aspecto da surpresa, do acaso e do imprevisto, a intencionalidade e o planejamento, conquistando autonomia de criação, um dos elementos fundamentais no desenvolvimento do percurso criador.
Apesar de os educadores compreenderem como é importante para a formação integral do aluno ele ser capaz de se comunicar e se expressar de maneira pessoal através da linguagem visual,muitos ainda se perguntam sobre quais ações didáticas podem ser encaminhadas para atingir este objetivo. O que normalmente encontramos no panorama do ensino das artes visuais nas escolas brasileiras são ações didáticas opostas: atividades em que as questões artísticas são internas – com problemas e soluções que as próprias crianças descobrem e criam – ou atividades em que as questões artísticas partem de propostas externas, sempre com problemas colocados pelo professor. Podemos dizer que, ultimamente, há mesmo um predomínio deste segundo tipo de ação didática.
Usos e abusos das propostas feitas pelo professor
Muitas escolas não consideram a construção do percurso criador pessoal como um dos objetivos centrais para a área de artes visuais. Por isso abrem mão do investimento nas questões trazidas pelas crianças e encaminham apenas as propostas externas.
Algumas escolas priorizam o ensino de conteúdos da história da arte, como, por exemplo, a vida do artista e seu processo criador, ou mesmo a produção artística em épocas e culturas diferentes. São bastante recorrentes as “releituras” 1 de obras de artistas, propostas de interferência gráfica em que as crianças precisam continuar pedaços de obras de arte, enquanto estudam sobre os artistas, ou então a produção de tintas naturais e seu uso, enquanto estudam a história das tintas.
Outras privilegiam o ensino de técnicas e procedimentos, encaminhando propostas sem contexto e totalmente isoladas, carentes de qualquer seqüência ou relação, como, por exemplo, pintar fazendo pintinhas com cotonete, pintar e dobrar a folha ao meio, desenhar com giz de cera cobrindo com nanquin preto para riscar por cima, montar uma imagem colando pedacinhos de papel, como se fosse um mosaico etc.
Sabemos que a criança aprende melhor os conteúdos das artes visuais quando tem questões, ou seja, problemas a resolver. No entanto, para desenvolver seu percurso criador, não basta que ela resolva apenas questões artísticas práticas nas atividades de produção. É preciso também que se aproprie de conhecimentos proporcionados pelas reflexões que surgem a partir da observação e apreciação de imagens que já produziu e sobre aquelas feitas por outras crianças, artistas e povos de diferentes culturas.
No entanto, todo o cuidado é pouco nessas práticas Uma boa questão vinculada a propostas externas é a que possibilita respostas diferentes. Por exemplo: na 2a série da escola Verde que Te Quero Verde, a professora propôs a apreciação de algumas pinturas de Lasar Segall, para que os alunos comparassem suas cores e temas. Após chegarem à conclusão de que todas eram muito tristes por causa dos temas e das cores empregadas, a professora encaminhou uma proposta de produção: pediu às crianças que fizessem uma pintura triste, usando tinta acrílica e canetinha quando necessário. Para resolver essa questão tinham que pensar nas cores, nas suas combinações e no tema que iriam representar.
Deixar livre ou dirigir o trabalho de artes? Um falso dilema
Encaminhar unicamente atividades a partir de propostas externas pode gerar um percurso criador dependente. Ao contrário, propor apenas atividades que possibilitem a elaboração de questões internas muitas vezes resulta num percurso criador de menor qualidade, com um repertório mais limitado.
A resolução de problemas trazidos pelo professor, bem como de questões que as próprias crianças levantam, são atividades igualmente importantes e fundamentais para desenvolver o percurso criador do aluno e devem acontecer equilibradamente dentro da rotina escolar. Não se pode esquecer que os conteúdos da história da arte, de técnicas e procedimentos, têm maior significado para os alunos quando possibilitam a ampliação do seu repertório de questões artísticas internas, surgidas de seu próprio fazer, e também quando mobilizam seus conhecimentos prévios, construídos nos momentos de livre escolha, como vemos a seguir:
Arte na rotina da escola Verde
Acreditamos que a conquista da autonomia de criação se dá com o trabalho conjunto desses dois tipos de ações didáticas. Na Escola Verde que te Quero Verde as crianças, desde a educação infantil, aprendem artes visuais com esta proposta e, enquanto crescem, vão progressivamente conseguindo relacionar os conhecimentos adquiridos a partir dos dois tipos de encaminhamento. Dessa forma, permitimos que o aluno se alimente simultaneamente dos desafios que o educador lhe encaminha e dos que ele próprio se propõe a resolver.
Transitando entre essas duas possibilidades, a criança relaciona o que experimentou em ambas, conseguindo, muitas vezes, resolver questões externas com soluções encontradas a partir das questões internas e vice-versa. Isso torna o aprendizado da arte mais sólido, já que é possível lançar mão de um mesmo conhecimento em contextos diferentes.
Portanto, o planejamento e a prática das aulas de artes visuais na rotina escolar devem contemplar tanto as atividades que encaminham as questões externas, contidas nas propostas, quanto as que encaminham as internas, que estão presentes nas oficinas de percurso.
Entendendo a Oficina
A oficina de percurso é uma atividade que permite sempre a livre escolha do aluno sobre o trabalho que irá fazer. Isso quer dizer que ele poderá definir quais materiais irá usar, quanto tempo precisará para terminar seu trabalho e se o fará sozinho ou não. O nome oficina de percurso foi escolhido porque representa muito bem o que propõe essa atividade: permitir que o aluno administre seu percurso criador, percebendo no decorrer da escolaridade que uma produção surge a partir das experiências de produção anteriores.
Nessas oficinas ocorre uma diversidade e simultaneidade de questões bastante enriquecedoras. É interessante perceber como as questões trazidas pelas crianças vão se transformando à medida que ampliam seu conhecimento artístico. No início da escolaridade elas se preocupam mais com a exploração e combinação de materiais. Mais tarde, pensam nas modalidades – se questionam sobre se produzirão pintura, desenho, colagem etc.– e no tema que irão desenvolver.
Ao observarmos, por exemplo, um momento de oficina de percurso da 1a série dessa escola, é comum ver as crianças propondo-se a produzir trabalhos abstratos nas modalidades que conhecem, combinando ou não os materiais disponíveis no ateliê. Isso acontece porque nessa série as crianças aprendem sobre arte abstrata e figurativa por meio de propostas que o professor leva: atividades de apreciação e produção.
Os problemas que as crianças se colocam vão ficando mais complexos à medida que persistem trabalhando. No Grupo 2 (3 a 4 anos), por exemplo, encontramos uma criança que se propôs a fazer dois trabalhos bem diferentes numa mesma oficina. Em um ela colou palitos em todo o suporte, experimentando as possibilidades da fita crepe e da cola ao mesmo tempo. No outro, explorou e combinou materiais em diferentes modalidades.
Na 2a série, um grupo de meninas tinha uma questão: fazer uma base ecológica. Para resolvê-la elas usaram duas aulas de artes. Na primeira,foram em busca dos materiais que acharam mais adequados para realizar a sua idéia: usaram sucata de isopor para a base, argila para o tronco das árvores e papel celofane para as copas, pedindo ajuda da professora para fixar as copas. O trabalho teve de secar de uma aula para outra. Na segunda aula, quando se depararam com o resultado final, não ficaram satisfeitas e partiram para mais um desafio: melhorar o trabalho. Depois de muito “ti, ti, ti” chegaram a uma solução: trocar os materiais do suporte e da copa (que nada tinham de ecológicos) por papel machê.
Neste novo desafio, experimentaram misturar o papel machê com tinta, aprendendo assim mais sobre os materiais. Oficinas como esta – tanto quanto os projetos ou seqüências didáticas encaminhados através das propostas – exigem um planejamento complexo que deve seguir orientações didáticas específicas, que por sua vez dão parâmetros para organizar tempo, espaço e materiais e garantem boas intervenções do professor. Para quem quiser se aventurar neste tipo de ação didática, damos, a seguir, algumas das orientações construídas na escola Verde ao longo dos anos.
Orientações didáticas para as oficinas
Antes de iniciar a oficina o professor deve apresentar esta atividade para os alunos e conversar sobre as regras para usar e cuidar dos materiais.
À medida que as crianças vão crescendo, as regras devem ser construídas por todos, educador e alunos. Durante a oficina cabe ao professor estimular a pesquisa e a investigação das várias linguagens e materiais, sempre respeitando as escolhas dos alunos e a diferença entre as produções, favorecendo a troca de informações entre os colegas sobre as experiências artísticas.
Para garantir o percurso convém que a professora guarde os trabalhos não terminados para que as crianças continuem a fazê-los na próxima oficina. Os materiais não podem faltar. A documentação de produções bidimensionais pode ser feita em pastas, que a própria professora monta com papel craft, grampeador e fita crepe. Já as produções tridimensionais exigem mais espaço, o que normalmente falta nas escolas. Portanto, ao finalizar e apreciar esses trabalhos, as crianças podem levá-los para casa.
Oferta e organização de materiais
Para iniciar pela primeira vez uma oficina de percurso com as crianças, a professora pode oferecer como escolha apenas os materiais secos e os suportes. Nas oficinas seguintes acrescentará materiais próprios para a colagem, por exemplo. Depois, é interessante introduzir os materiais aquosos e, por fim, as sucatas e os materiais para modelar.Oferecer os materiais nesta ordem normalmente deixa os alunos mais seguros para fazer escolhas, já que vão ampliando gradualmente as possibilidades de utilização dos materiais. Isso não quer dizer que, necessariamente, uma oficina deva acontecer sempre assim.
A introdução deste ou daquele material para crianças de diferentes faixas etárias depende das condições materiais e dos recursos humanos disponíveis, número de alunos por turma etc. Esta análise de condições depende da avaliação do educador.
1A autora coloca a palavra releitura entre aspas por acreditar que crianças de 2a série não fazem releitura propriamente. Para saber mais, leia o artigo Cópia ou releitura como não levar gato por lebre, na revista Pátio, número 14, de Valéria Pimentel e Marisa Szpigel.
(Valéria Pimentel, Coordenadora de artes da Escola Verde que Te Quero Verde – São Vicente, SP)
Sugestões de materiais
Numa oficina, os materiais ficam à disposição das crianças para que possam fazer suas escolhas. A lista abaixo traz boas sugestões para quem quer montar ou reorganizar o espaço de ateliê, seja numa sala reservada só para isso, seja num canto da sala de aula.
Materiais secos: giz de cera, canetinhas, lápis, giz de lousa, carvão para churrasco. Caso seja possível, tente conseguir giz pastel oleoso e carvão para desenho.
Papéis variados (chamamos os papéis de suportes): estes devem ser oferecidos aos alunos sempre cortados em formas e tamanhos diferentes: papel sulfite, jornal, revista, cartolina, papel espelho, laminado, seda, celofane, color set, camurça, crepom, craft e outros como, por exemplo, saco de papel. É possível aumentar o tamanho dos suportes colando um papel no outro.
Materiais para colar, juntar e recortar: cola branca, cola de farinha (caseira), fita crepe, durex, tesouras, fios, barbante, grampeador, furador, estilete – para a professora usar – e objetos variados para serem colados (palitos, tecidos, tampinhas, areia, papéis já picados, papelão, macarrão, lã, algodão, sementes, folhas, gravetos etc.)
Materiais aquosos: tinta de pó xadrez – juntar o pó xadrez, que se compra em casa de construção, com água e cola branca –, tinta de terra – igual ao pó xadrez – , pintura a dedo, tinta com papel crepom – colocar o papel crepom na água ou no álcool, o efeito é parecido com a anilina –, guache, plasticor e tinta de anilina.
Instrumentos para usar com os materiais aquosos: pincéis e broxinhas de tamanhos variados, rolinhos de pintura de parede, esponja, escova de dente, paninhos para limpeza e potes para água (além do próprio dedo, naturalmente).
Sucata (lixo limpo):garrafas plásticas, tampinhas, latas, embalagens (pequenas e grandes) de plástico, papel, papelão, isopor, tocos de madeira etc.
Material para modelar: argila ou papel machê (papel picado misturado
com água e cola branca ou de farinha).
Organização do espaço físico
Considerar e planejar o lugar onde vai ocorrer uma atividade é fundamental para que ela funcione bem. A oficina pode acontecer num ateliê ou na própria sala de aula.
Por tratar-se de uma atividade que não é centralizada no professor, a organização dos materiais deve assegurar ao aluno independência e autogerenciamento do próprio trabalho. Os materiais precisam estar separados por tipos: materiais aquosos e tintas juntos, papéis e papelão no mesmo espaço, cola, tesouras, fita crepe e durex organizados de maneira que fiquem próximos e assim por diante. O mesmo deve ser feito com as sucatas. Dependendo da idade, os alunos podem ajudar na organização. É interessante que os materiais permaneçam sempre no mesmo lugar, para assegurar a locomoção dos alunos no espaço e o planejamento do que irão fazer.
Organização do tempo
A criança poderá fazer vários trabalhos numa mesma oficina ou, se preciso, usar várias oficinas para fazer um mesmo trabalho. O tempo de duração da oficina varia conforme a idade das crianças e seu envolvimento. Uma oficina para crianças de 2 anos costuma durar 20 minutos, para os 6 anos, até 1 hora.
Na educação infantil é interessante propor de uma a duas oficinas por semana; já no ensino fundamental, no mínimo duas por mês, intercalando com momentos para desenvolver propostas trazidas pelo professor. Essa organização deve ser flexível e se adaptar a cada realidade. Importante reservar um tempo no final da oficina para que os alunos arrumem e limpem todos os materiais e o espaço onde trabalharam.
Apreciação das produções da oficina
A sala de aula ou ateliê deve ter um espaço reservado para expor imagens produzidas por adultos ou crianças. Imagens artísticas – livros de arte, catálogos de exposição, revistas – também devem ficar à disposição das crianças, pois observar bons modelos amplia a possibilidade de criação de novas imagens.As crianças costumam apenas olhá-las ou usá-las como inspiração para fazer seus trabalhos, observando-as para reproduzi-las ou transformá-las.
Cabe ao professor promover a apreciação dos trabalhos das crianças, organizando o espaço para que todas vejam o que foi produzido. É importante fazer apreciação dos trabalhos das crianças, mesmo que ainda não estejam terminados, inclusive para discutir como terminá-los.
Não é necessário repetir o procedimento em todas as oficinas, evitando que a atividade se torne burocrática e perca o significado. A apreciação pode ser feita no começo ou final da oficina, sempre indicando o processo dos alunos: como realizou o trabalho, que materiais usou, o que pretende fazer na próxima etapa. O professor também pode propor aos alunos que relacionem seus próprios trabalhos com os de outros produtores, artistas ou não.
Intervenções do professor
O papel do professor é de extrema importância em todos os momentos da oficina. Ele não pára de avaliar, para saber intervir quando necessário, orientando seus alunos sobre como agir, dando ideias e ajuda.
Como esta é uma atividade em que cada criança escolhe o que fazer, a professora precisa aqui, mais do que nunca, desenvolver um olhar atento para o grupo e ao mesmo tempo para o que cada criança está realizando: que materiais escolhe e combina, como faz, por que e para quê faz, em quanto tempo faz e com quem faz. Desenvolvendo o olhar sobre a produção dos alunos , a professora saberá como intervir. Um exemplo: a professora observa que um aluno nunca desenvolve trabalhos sozinho, então deve propor, em algum momento, que ele experimente fazê-lo.
Vale lembrar que, como as intervenções didáticas acontecem para favorecer avanços no processo de criação dos alunos, é preciso olhar e intervir durante o processo e não apenas nos resultados finais.
Ficha técnica:
Valéria Pimentel, além de orientar o trabalho com artes na escola Verde, também desenvolve oficinas e propostas no ateliê – valeriapimentel@uol.com.br
Escola Verde que Te Quero Verde, Rua Pero Correia, 533, Itararé, São Vicente, SP, 11320-140,Tel.: (13) 3468-9370. www.verde.com.br