Conversa na cantina e a matemática1

Situações do cotidiano, como conversa na fila da cantina sobre o dinheiro do lanche, transformam-se em situações de aprendizagem sobre cálculos e sistema numérico

Uma aprendizagem significativa é aquela que envolve a criança em sua curiosidade e em sua competência, desafiando-a em suas dúvidas cotidianas, ampliando e desencadeando novos conhecimentos e experiências. São situações que podem partir, muitas vezes, do interesse e da atitude dos próprios alunos, provocando professor a desenvolver atividades específicas. Um exemplo disso foram as conversas vivenciadas em sala de aula sobre o dinheiro do lanche e de todos os dias que  começaram a chamar a atenção de educadores do Centro Educacional Interação, em Santo André (SP).

mate5211Identificamos, nessa situação cotidiana, uma oportunidade para trabalhar conteúdos matemáticos previstos no plano anual dessa turma. Momentos antes do recreio ouvíamos os comentários:

– O que será que dá pra comprar na cantina?
– Será que consigo comprar um pirulito?
– Vai sobrar dinheiro para amanhã?

Começamos a perceber que essas questões mobilizavam uma série de conhecimentos matemáticos dos alunos. Dúvidas do cotidiano, algo que realmente era um “problema” e que eles tinham de resolver de imediato. Começamos a observar como eles resolviam essas questões sem nosso auxílio, e percebemos que muitos recorriam à funcionária da cantina com a questão: “O que dá pra comprar?”. Ao que ela pacientemente respondia: “Um pão de queijo, um pirulito, bala, salgado”, tudo de acordo com o valor que a criança tinha em mãos. Eles ainda paravam um tempo para pensar e faziam o pedido.

Observamos outras situações na fila para compra, como conversa sobre quem tinha mais dinheiro. Constatamos que a quantidade de moedas ou notas era mais importante do que o seu valor propriamente dito. Algumas crianças discutiam: “Eu tenho mais que você, tenho 2 notas (de 2 reais)”, falavam, mostrando para o colega que, na verdade, tinha mais, pois tinha 5 reais, só que em uma nota apenas.

Sequência de atividades
Partindo dessas observações, resolvemos elaborar uma sequência de atividades sobre o sistema monetário. Contar, fazer equivalências, ordenar e realizar registros numéricos seriam alguns conteúdos que a sequência de atividades contemplaria. Esses conteúdos seriam trabalhados a partir da resolução de problemas, da formulação e discussão de hipóteses acerca das situações que envolvem o dinheiro, ouvindo os colegas e a professora. Selecionamos esses conteúdos, pois eram importantes não só para que os alunos avançassem em relação à compreensão do valor do dinheiro, mas também para que estabelecessem relações com o que já estavam aprendendo nas aulas de Matemática. Dessa forma, quando tivéssemos de discutir como escrever um número, faríamos isso envolvendo situações da sequência, assim conseguiríamos avançar em relação à escrita dos números e conferiríamos sentido a essas atividades, já que a sequência estaria repleta de sentido para as crianças.

Nas situações-problema, também envolvendo dinheiro, abordaríamos questões relativas à adição e multiplicação, contemplando este conteúdo. Entre o recebimento do dinheiro para o cofrinho e as outras atividades conseguiríamos trabalhar três vezes por semana a sequência nas aulas de Matemática.

Com a intenção de não perder o momento rico de troca e de indagações que aconteciam nos períodos que antecediam o lanche, fizemos uma proposta de “poupança coletiva” para compra de um lanche especial. Assim, não interferiríamos diretamente na compra da cantina e introduziríamos novas situações-problema.

Para as crianças, a poupança coletiva seria uma forma de unir a turma a fim de juntar dinheiro para um momento de confraternização entre eles, um lanche fora da escola. Para nós, seria uma forma de juntar uma quantia maior de dinheiro para possibilitar discussões com valores mais altos, já que acreditamos que crianças pequenas também podem lidar com números maiores. Como o objetivo era juntar moedas de diferentes valores para formar quantias maiores uma poupança coletiva proporcionaria situações com muito mais moedas, trazidas pela turma. As situações-problema também seriam potencializadas, pois a ideia era que todos estivessem “preocupados” em saber quanto tinham na poupança, o montante que juntariam ao fim de determinado período e como gastariam esse dinheiro.

Envolvimento das famílias
Em uma roda de conversa, fizemos a proposta de encerrar o trimestre com uma ida à feira do nosso bairro. Além de frutas, poderíamos comprar pastel e caldo de cana, que, embora não seja um lanche saudável nem adequado para todo dia, foi uma escolha das crianças contemplada por nós. Este era um acontecimento eventual e faz parte de nossa cultura comer pastel na feira. Para comprar este lanche precisaríamos juntar dinheiro aos poucos, pois conversaríamos sobre o valor das moedas que seriam depositadas no cofrinho e isso nos ajudaria a controlar quanto tínhamos juntado e quanto ainda precisaríamos para a compra. Todos adoraram o fato de ter uma “poupança” na escola e comentaram que poderíamos ter um porquinho para guardar nossas economias.

Depositaríamos somente moedas no cofrinho da turma para operar com números inteiros. Depois de lidar com a representação numérica dos centavos gravada na moeda poderíamos discutir as equivalências de valores em relação às notas. No fim de quatro semanas faríamos a nossa confraternização. Nosso lanche especial seria pastel, caldo de cana e salada de frutas, tudo comprado com o valor da nossa “poupança”.

Em reunião de pais, combinamos que toda segunda-feira seria enviado um valor qualquer para o aluno depositar no cofrinho; nosso único pré-requisito era que, depois de quatro semanas, todos tivessem depositado o total de 10 reais. Ansiosas, aguardávamos o primeiro dia de depósito. Todos os alunos tinham sua ficha de controle, onde marcavam o valor que tinham, desenhando suas moedas.

 Fotos: Acervo Centro Educacional Interação


Fotos: Acervo Centro Educacional Interação

Primeira etapa: contando moedas e percebendo as diferenças monetárias
Com o dinheiro em mãos, as crianças começaram a preencher suas fichas. Alguns arriscavam um palpite sobre quanto tinham trazido. Observando as moedas, fizemos uma reflexão:

– Todas as moedas são iguais?
Giovanna – Não, elas são diferentes…
Reinaldo – Tem número diferente nelas…
Maria Luiza – Elas também têm tamanhos diferentes…
Arthur – O número é o valor…

Todas as respostas tinham coerência, mas após o comentário de Arthur, a sala começou a olhar mais atentamente para as moedas na mesa e começamos a ouvir:

– Olha, essa vale 5 porque tem o 5.
– Essa vale 10, 25, 50.

Mas um comentário da dupla Arthur e Giovanna novamente mexeu com a turma:

– Essa é de 1 real, dizia Arthur para Giovanna. Ela é que vale mais.

Giovanna contestava:

– Não, ela só tem o 1! A que vale mais é a de 50…

Em razão desses comentários, percebemos que os mesmos alunos começaram a perguntar para o restante da sala se estavam certos. Acabaram validando o comentário de Arthur, pois mesmo sem conhecerem o valor real, sabiam que com moedas de 1 real dava para comprar o salgadinho na cantina, enquanto que com a de 50 centavos só dava para comprar as balinhas.

Registramos nossas descobertas no caderno, desenhamos as moedas e explicamos, com a ajuda deles, quanto valia cada uma delas. Alguns já usavam centavos para se referir às moedas de 10, 25 e 50, e real para a moeda de 1 real. Durante a semana observamos que a primeira aula tinha surtido alguma mudança na hora do lanche, pois as crianças que estavam com moedas já sabiam identificá-las.

Segunda etapa: trocando moedas e comparando valores
Na segunda semana, novamente pegamos as moedas que cada criança havia trazido, só que individualmente tinham de contar o valor antes de depositar no cofre e, claro, anotar na ficha. Com essa atividade pudemos perceber se as crianças já estavam pensando sobre o valor das moedas e se conseguiam “juntar” esses valores.

Começamos também a “trocar” nossas moedas. Combinamos com uma funcionária, do departamento financeiro da escola, que mandaríamos alguns alunos para fazer a troca dos valores. Em sala, juntamos as moedas em grupos e fizemos a conta dos valores. Cada grupo sabia exatamente o valor que tinha, e o desafio agora era “trocar” o dinheiro e conferir se a troca estava certa.

Alguns fatos bem interessantes aconteceram durante essa troca. Num primeiro momento, demos valores exatos das notas existentes e, claro, as crianças esperavam receber uma única nota. Dois grupos receberam o valor de 20 reais e foi o que mais despertou a atenção da turma, pois a troca de valores aconteceu da seguinte forma:

Um grupo recebeu uma nota de 20 reais e o outro grupo recebeu quatro notas de 5 reais. Quando chegaram à sala, percebemos que os alunos tinham uma dúvida: o grupo que havia recebido a nota de 20 reais estava muito feliz e o grupo que havia recebido as quatro notas de 5 reais estava preocupado. Então perguntamos aos grupos se estava tudo certo com a troca. O grupo da nota de 20 reais disse prontamente que sim, já o outro grupo disse que achava que não, porque eles não tinham uma nota de 20 reais. Lançamos o problema para a turma:

– Como podemos saber se está tudo certo com a troca?

Rapidamente alguns alunos disseram que tínhamos de somar. Então eles realizaram a soma (5+5+5+5). Alguns desenharam palitinhos; outros pegaram o “dinheiro de mentira” do livro, juntaram esse dinheiro e disseram:

– Está certo, professora! Olha só: 5+5 dá 10. Então, eu tenho 10 aqui e 10 aqui (Maria Luiza juntava 2 notas de 5 reais em cada mão) e 10+10 dá 20. Então está certo.

Depois de uma conversa sobre essa descoberta, a turma concordou com o raciocínio feito. O grupo inicial da troca também concordou aliviado, concluindo que o mesmo valor pode ser composto de diferentes maneiras.

Terceira etapa: ampliando a pesquisa
Continuamos com esse procedimento durante a terceira e a quarta semana. Como estávamos trocando nossas moedas por notas, começamos então a calcular quanto tínhamos, o que foi mais tranquilo pois essa é uma adição de números redondos (10, 20, 50). Esse contato com as notas acabou estimulando outras pesquisas, como a dos animais ali representados e, simultaneamente, com relação ao projeto de Matemática, outros conteúdos puderam ser trabalhados.

Descobrimos que os animais impressos nas notas são bem significativos da fauna brasileira e que alguns estão em extinção. Propusemos aos alunos fazer a releitura dos animais com desenho, e, na Mostra Cultural que a nossa escola realiza todos os anos, montaríamos uma galeria dos desenhos de observação dos animais das notas brasileiras. Assim, nossa sequência não terminaria somente com a ida à feira.

É importante destacar também que a elaboração da lista de frutas a serem compradas no dia de nossa ida à feira contribuiu significativamente para o aprimoramento da escrita.

Quarta etapa: momento de utilizar o dinheiro
Após tanto poupar, tanto juntar, trocar e contar, será que tínhamos o valor para nosso lanche especial? Começamos a fazer outra pesquisa. Se iríamos à feira e compraríamos pastel para todos, quanto deveríamos ter? Primeiro descobrimos o valor do pastel – 3 reais –, e então lançamos o problema para a turma:

– Se cada pastel custa 3 reais, e temos 18 alunos, de quanto dinheiro vamos precisar?

Em dupla, eles resolveram o desafio desenhando, contando, pois, embora seja um problema multiplicativo, as crianças, nessa faixa etária, fazem contagem ou realizam adições sucessivas. E, assim, chegaram ao resultado: 54 reais. Vimos que ainda sobraria dinheiro para comprar refrigerante e frutas.

Nossos alunos sabiam que tinham o valor para a compra, mas precisávamos organizá-la, escolher o sabor do pastel e decidir sobre quais frutas comprar. Para obtermos essas informações, fizemos uma pesquisa no grupo e registramos as respostas em um gráfico. Tabuladas as informações, vimos que os sabores preferidos eram carne e queijo. Assim, pudemos saber a quantidade exata para comprar.

 Fotos: Acervo Centro Educacional Interação


Fotos: Acervo Centro Educacional Interação

Chegado o tão esperado dia, os alunos estavam organizados em dupla para realizar a compra. De posse do valor, eles deveriam conferir se era suficiente, se sobraria troco. Foi um momento de muito aprendizado. As crianças puderam colocar em prática tudo o que havia sido pensado e discutido em sala.

Para finalizarmos as atividades, além do lanche na feira, elaboramos uma saborosa salada de frutas e todos ficaram com gostinho de quero mais! Foi um mês intenso de reflexões, de descobertas e aprendizados que só aconteceram por termos clareza dos conteúdos matemáticos que as crianças dessa faixa etária precisam se apropriar, e pudemos, para isso, aproveitar uma situação cotidiana observada por nós.

A partir da realização dessa sequência didática muitas situações enriqueceram nossa rotina diária, pois, além das aprendizagens acerca do valor das notas, das moedas e das inúmeras situações-problema geradas em sala de aula, esses aprendizados possibilitaram às crianças mais autonomia e conhecimento na hora de lidar com o dinheiro nas inúmeras situações em que ele está presente, dentro da escola e fora dela.

(Regina Câmara, assessora; Bianca de Paula, coordenadora; Ana Carolina Gomes e Simone Pepinelli Salgado, professoras do Centro Educacional Interação, em Santo André–SP)

1Trabalho com duração de quatro semanas desenvolvido com crianças de 6 anos, do 1º ano do Centro Educacional Interação, Santo André – SP.

Ficha Técnica

  • Centro Educacional Interação
    Endereço: Rua Maranguape, 78 – Parque João Ramalho – CEP: 09290-610 – Santo André – SP
    Tel.: (11) 4472-8329
    Site: www.escolainteracao.com.br
    Professoras: Ana Carolina Gomes e Simone Pepinelli Salgado
    Coordenadora pedagógica: Bianca de Paula
    E-mail: biancainteracao@gmail.com
    Assessora pedagógica: Regina Celia dos Santos Câmara

Para saber mais

Livros

  • Didática da Matemática, de Cecília Parra e Irma Saiz (orgs.). Porto Alegre: Artmed, 1996.
  • Matemática na escola: aqui e agora, de Delia Lerner. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993
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