Passeios para observar a natureza são recursos importantes para que as representações infantis tenham força e expressão e não sejam mais estereotipadas
No Ateliê Parangolé1, propostas inusitadas fazem parte do cotidiano das crianças. Elas já foram convidadas, por exemplo, a interagir com palitos de dente que queriam ser outra coisa, a construir um pote para guardar o tempo e a fazer desenhos para enganar o olho. Todas as propostas têm o intuito de transformar as atividades cotidianas do espaço em experiências nas quais o processo, quase sempre, conta mais do que o resultado. Algumas vezes, é a minha preocupação com as produções infantis que me faz pensar nas propostas. Ao ver árvores desenhadas pelos alunos, me incomodei com o excesso de estereótipos. Elas eram todas muito semelhantes, representadas com dois riscos como tronco e uma copa redonda.
Muitas tinham as malfadadas maçãzinhas, que desde minha infância estou acostumada a ver em desenhos feitos por meninos e meninas e também por adultos. Resolvi, então, que seria uma boa ideia propor às crianças2 que “engolissem árvores” com os olhos para que depois, alimentadas, produzissem desenhos mais autonomamente. Propus, ainda, que elas escutassem os segredos das árvores, pois tinham muito para contar.
Saímos em grupo pela fazenda onde fica o Parangolé, com olhos bem abertos, atentos e curiosos. Para escutar os segredos das árvores, foi preciso abraçá-las, tocar seu tronco e sentir as diferentes texturas de suas cascas. Algumas crianças não conseguiram escutar segredo algum. Expliquei que, às vezes, elas sentem vergonha. Era preciso paciência, cuidado e atenção. Funcionou!
Giovana me disse que ouviu um segredo: Aquela árvore forte e grande morria de medo de ser machucada. Pauliana contou: Essa senhora de copa frondosa aqui estava de namorico com um coqueiro lá debaixo. Gabriel também participou: Essa árvore magrelinha estava com muita sede. As mãos passearam pelos troncos, alisaram as raízes, experimentaram as rugosidades. Apuramos o olfato e percebemos os perfumes. Olhos curiosos descobriram pequenos buracos, insetos, detalhes. As crianças, realmente, “engoliram árvores” naquele dia.
Ao voltarmos ao ateliê, uma surpresa. A natureza observada deveria sair das gavetas de nossos cérebros, em que foi guardada e ir morar no papel. A técnica também era uma novidade: nanquim com palitos de dentes, que substituíram muito bem os usuais bicos de pena. A delicadeza do material contribuiu para a sutileza dos traços. O passeio alimentou a imaginação e nenhuma delas titubeou para fazer uma árvore que era só dela e não seguia nenhum padrão estereotipado. A atividade foi prazerosa e recompensadora. As crianças se mostraram muito satisfeitas tanto com o processo, quanto com o resultado. Eu, encantada com a diferença gritante entre os desenhos estereotipados anteriores e os atuais, ainda fui presenteada com uma frase da Nathalia, que me disse depois de duas aulas inteiras dedicadas à sua maravilhosa árvore: Ana, eu encontrei o meu lugar no mundo. E esse lugar é o desenho.
(Ana Teixeira, artista plástica)
1O Ateliê Parangolé foi criado em 2001 dentro da Escola Antonio Cintra Gordinho, em uma fazenda localizada na periferia da cidade de Jundiaí – SP. Oferece atividades artísticas para crianças de 7 a 14 anos, com foco em arte contemporânea e seus desdobramentos e construções.
2O trabalho Engolindo Árvores com os Olhos foi feito em 2009, com alunos de 1ª a 4ª séries.
Ficha técnica
Ana Teixeira
E-mail: contato@anateixeira.com – Site: www.anateixeira.com
Ateliê Parangolé – Endereço: Rodovia D.Gabriel Paulino Bueno Couto, Km 66,5. Jundiaí – SP.CEP: 13212-240 – Tel.: (11) 3284-2306 com Ana Teixeira
Ana Teixeira é artista plástica, mestre em Poéticas Visuais pela Universidade de São Paulo e tem participado de diversas exposições, individuais e coletivas, dentro e fora do Brasil. Coordena o Ateliê Parangolé, onde trabalha com crianças e adolescentes e, por esse trabalho, foi premiada na edição 2009-2010 do Rumos Educação Cultura e Arte, do Instituto Itaú Cultural.
Para saber mais
Livros
- Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa. Ed. José Olympio. Tel.: (21) 2290-0999.
- O Conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago. Companhia das Letras. Tel: (11) 3707-3500.