Conhecer artistas que ousam e inovam e usar diferentes materiais de maneira inusitada favorecem o trabalho criativo com o auto-retrato
O tema auto-retrato surgiu em meados de outubro de 2006. Estávamos, eu e mais três crianças1, no ateliê: Iago, de 8 anos; Laura, de 6 e Valter, de 7. Antes de prosseguir nessa história, preciso contar um pouco sobre onde tudo isso aconteceu. A escola Ziarte-Viveka, em São Paulo, desenvolve práticas nas oficinas de desenho, pintura e escultura, introduzindo gramáticas visuais e história da arte (brasileira e internacional). A intenção é estimular a sensibilidade e a construção do pensamento visual dos alunos. A instituição recebe de iniciantes a profissionais (professores e estudantes da disciplina e artistas), contemplando, portanto, diversos interesses teórico-práticos.
São comuns, no início, as visões mais estéticas e acadêmicas, pautadas em concepções de dom e de habilidade. O caminho escolhido por nós passa primeiro por atender aos anseios dos que nos procuram, experimentando técnicas e materiais artísticos, realizando o sonho de copiar ou de criar uma tela ou uma escultura. Ao conviver com pessoas cujos interesses são diversos (pré-vestibulandos e iniciantes em desenho), alguns desafios vão sendo propostos, fazendo com que problematizemos e ampliemos os conceitos mais arraigados.
Na Vivekinha, nome carinhoso dado ao espaço dedicado ao público infantil, geralmente entre 4 e 10 anos, estimulamos a curiosidade dos pequenos. Nosso papel é instigar a meninada à pesquisa de técnicas e de diversos materiais, apresentando autores contemporâneos ou de outros períodos, despertando o gosto pela leitura e pelo pensamento visual, com muita brincadeira e descontração. Para isso, estabelecemos uma comunicação com os pais e os familiares sobre todas as etapas que compõem esse nosso trabalho, e o resultado tem sido extremamente positivo, já que as famílias estão mais participativas e bem mais familiarizadas com o sentido que damos à arte.
A imagem de cada um
Foi nesse contexto que encontramos um espelho no ateliê da Vivekinha e aproveitamos para desenhar as coisas e as pessoas refletidas nele. Fizemos retratos dos outros e de nós mesmos. Do jeito que a gente se vê e do jeito que os outros nos vêem. Os primeiros registros foram mais comportados; depois, se soltaram, divertindo-se com os exageros. Espirais viraram cabelos de anjinho do Valter, Laura retratou-se com dentões, Iago aumentou o tamanho do seu nariz e de suas orelhas.
A diversão era tanta que resolvemos zanzar por outras propostas, explorando a imagem inteira ou as partes das quais mais apreciávamos, como os olhos, para Laura; ou os buracos do nariz, “importantíssimos para a gente respirar melhor”, como dizia Iago. As que não gostávamos também apareceram. O machucado no braço do Valter foi uma delas. No intervalo desse processo, ao pesquisar sobre o assunto e autores contemporâneos, deparei-me com Leda Catunda2. Meu objetivo era buscar outros caminhos para a turma explorar e não ficar apenas na pintura e no desenho. Montei, então, uma apresentação com algumas de suas obras, reunindo suportes e materiais diversificados como cobertor, colchão, recortes e costura. É uma delícia ver as crianças lendo trabalhos de arte. Elas vão aonde menos se espera! O Iago entendeu de pronto o trocadilho da obra Onça Pintada nº 1, de Leda. Trata-se da pintura de uma onça, cujo corpo é cheio de pintas (acrílica sobre cobertor, de 1984). Laura imaginou mil bichos e esconderijos em Casca (acrílica sobre tela e tecido, de 1997), que é outra pintura da artista plástica, semelhante ao casco de uma tartaruga. Os pequenos ficavam imaginando que animais estariam escondidos nela.
Ao apreciar Duas bocas (acrílica sobre tela e veludo, de 1994), Valter ficou imaginando o que haveria por detrás daquela obra abstrata. Para o garoto, havia um enorme monstro verde, que falava com ecos, repetindo sempre o que ele mesmo pensava. Nessa obra, há duas bocas e “se ele tem duas bocas, fala duas vezes”, argumentava. Retrato (acrílica sobre tela e veludo, de 2002), de Leda, “é uma bola feita de tecido cheia de pingos”, definiam eles. E notaram que, se alguns tinham boca, olhos e nariz, outros estavam vazios, como buracos, o que gerou muita gargalhada. “Que maluquice”, repetiam. Isso me fez refletir: “Onde será que ela escondeu os cheiros, os sons, as vozes e as imagens de sua vida? O que aparece em branco pode estar cheio de tantas coisas!” A fotografia foi outro recurso igualmente atrativo. Eles adoraram a idéia. De mão em mão, a máquina rodou para que todos tivessem a chance de atuar como fotógrafos e modelos. Laura quis que registrassem a afta que lhe doía. Rimos muito da idéia dela e resolvemos experimentar alguns cliques nessas partes mais esquisitas.
Depois de descarregarmos os arquivos digitais em um computador e de salvá-los em pastas específicas, observamos que algumas fotos ficaram inteiramente estranhas, enquanto outras nem tanto. Resolvemos editá-las em um programa de computador, chamado Artsoft Photo Studio, com a intenção de deixar a imagem totalmente estranha, para que os monstros aparecessem mesmo. Eles compartilharam comigo esse processo, cortando, nomeando e salvando as produções nas devidas pastas. Essa etapa foi bem demorada, e é bom que se diga que principalmente Laurinha estava em fase de alfabetização. Os títulos das cenas tornaram-se bem representativos: Coisas estranhas, Boca de bicho, Túnel de cabelo, Orelha que não é orelha e Pintura sem ser pintura.
O Sol/cérebro
Na aula seguinte, montamos algumas imagens no programa CorelDRAW® e imprimimos em papel para poder cortar, olhar mais de perto, enfim, mexer mesmo. Perguntei o que ainda poderíamos fazer com elas. Guardar num envelope ou colar em algum lugar? Foi aí que o Iago lembrou-se da obra Cérebro em stand (acrílica, de 1988), de Leda, cujo formato é um Sol. Conversamos mais sobre o assunto.
Zilpa – O que é cérebro? Para que serve e o que faz?
Iago – É o lugar mais importante do corpo.
Valter (reclamando) – Os lugares mais importantes devem ser a boca e a barriga porque sem comer não vivemos.
Laura – Para mim, o lugar mais importante é o coração porque eu adoro ilustrações de coração.
O debate foi longe. Destacavam-se outras partes e o cérebro reinava incondicional em seu trono de dono de todos os comandos, sustentado pelo Iago. Lembrei-me dos vazios do cérebro, comentados e representados em esculturas pelo artista plástico carioca Nelson Félix, da década de 1980. Resolvi, então, em contraposição a essa idéia dos espaços deixados pela Leda, exibir um pequeno trecho de um filme que eu havia gravado quando exibido pela TV. Nesse filme, há uma cabeça humana virada bem de frente, em transparência, que revela a forma do vazio do cérebro. Nelson é autor de um desenho tridimensional sobre esse assunto. As crianças ficaram malucas com a idéia dele, com o mistério ainda não desvendado pela ciência.
Iago – Sem a luz de qualquer um deles não existiríamos!
Óbvio. Nosso trabalho precisaria ter um suporte com a forma do Sol/cérebro. As imagens estariam ali recortadas e ainda teríamos um espaço reservado ao vazio do cérebro. Preparamos o papel paraná, por ser grande e mais resistente. Sofremos um bocado para cortá-lo. Para Laura, as bordas lembravam flor e estrela, lugar “do lado de fora da gente”. Ao centro, é claro, alguns espaços sem nada. Deu fome! Comemoramos o fim do projeto comendo muita bolacha recheadíssima de chocolate, para encher um buraco nada misterioso.
(Zilpa Magalhães, professora de arte da escola Ziarte-Viveka
1Durante o trabalho, algumas crianças entraram na escola, outras saíram, o que significa dizer que elas também compartilharam do projeto. Porém, as três aqui citadas participaram integralmente dos trabalhos
2Artista plástica. Ela usa em suas obras, além de tinta, plástico e tecidos como, algodão estampado, jeans e veludo.
Ficha técnica
Escola Ziarte-Viveka
Endereço: Rua Profa Sebastiana da Silva Minhoto, 375 – Tatuapé. São Paulo – SP. CEP: 03316-030 – Tel.: (11) 2225-1285. E-mail: viveka@viveka.pro.br
Site: www.viveka.pro.br
Para saber mais
Livros
- A paixão de conhecer o mundo, Madalena Freire. Ed. Paz e Terra. Tel.: (11) 3337-8399
- Fazer e pensar arte, Ana Marie Holm. Ed. Mam
Site
- Para saber mais sobre vida e obra de Leda Catunda: sergioeleda.sites.uol.com.br