Caçar caramujos, procurar joaninhas, descobrir formigueiros são motivações bastante comuns entre crianças que brincam no jardim. Como despertar o desejo e a competência dos professores para que esse interesse contribua na deliciosa aventura de explorar e conhecer a natureza? Uma oficina para os professores pode ser o passo inicial
Ao conversarmos sobre Ciências Naturais com professores da Educação Infantil, constatamos que há muitas queixas relacionadas às suas dificuldades em trabalhar com temas ligados a essa área de conhecimento. Costumam dizer que é difícil, complicado, que exige a memorização de muitos nomes e, portanto, é um conteúdo inadequado ao trabalho com os pequenos.
Os documentos oficiais mais recentes, ao contrário, indicam como uma das prioridades na educação da infância, que os educadores propiciem oportunidades de aproximação entre as crianças e os conhecimentos culturalmente produzidos, o que inclui aqueles vindos da Ciência. Diz o Referencial Curricular para a Educação Infantil: “O conhecimento científico socialmente construído e acumulado historicamente, por sua vez, apresenta um modo particular de produção de conhecimento de indiscutível importância no mundo atual e difere das outras formas de explicação e representação do mundo, como as lendas e mitos ou os conhecimentos cotidianos, ditos de ‘senso comum’1”.
De acordo com os Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil, ao final da Educação Infantil a criança deve ter desenvolvido as seguintes capacidades:
- “explorar o ambiente, para que possa se relacionar com pessoas, estabelecer contato com pequenos animais, com plantas e com objetos diversos, manifestando curiosidade e interesse”;
- “(…) interessar-se pelo mundo social e natural, formulando perguntas, imaginando soluções para compreendê-lo, manifestando opiniões próprias sobre os acontecimentos, buscando informações e confrontando idéias”;
- “estabelecer algumas relações entre o meio ambiente e as formas de vida que ali se estabelecem, valorizando sua importância para a preservação das espécies e para a qualidade da vida humana2”.
Mas como levar os educadores a transporem suas dificuldades e a sentirem vontade de abordar temas de Ciências com as crianças? De que modo propiciar momentos de envolvimento significativo com os conhecimentos científicos para esses educadores? Como despertar o desejo de que os profissionais tornem-se aliados das crianças na deliciosa aventura de explorar a natureza e, principalmente, os conhecimentos relacionados a ela?
Uma oficina para educadores
Com base nestas reflexões, desenvolvo uma oficina voltada especialmente para professores de Educação Infantil. Sua principal finalidade é a de propiciar aos educadores a oportunidade de vivenciar momentos de interação significativa com os saberes sobre a natureza. Assim, o fato de apresentarem pouca intimidade com os conhecimentos a respeito dos seres vivos é aqui um ponto positivo, pois os iguala às crianças e oferece maior liberdade para que digam o que lhes vem à cabeça, sem medo de cometer erros.
Nestas condições, os educadores, tal como as crianças, podem se entregar ao deleite da observação desafiadora, ao prazer de redescobrir o conhecido, de se lançar de corpo inteiro e sentir a alegria de aprender, como diria Rubem Alves, poeticamente: “Quero ensinar as crianças. Elas ainda têm os olhos encantados. Seus olhos são dotados daquela qualidade que, para os gregos, era o início do pensamento: a capacidade de se assombrar diante do banal. Para elas tudo é espantoso: um ovo, uma minhoca, uma concha de caramujo, o vôo das aves, os pulos dos gafanhotos, uma pipa no céu, um pião na terra: coisas que os olhos eruditos não vêem”.
A grande contribuição desta oficina não é ensinar sobre o modo de vida dos caramujos ou sobre como ensinar Ciências a crianças pequenas. Seu principal papel é levar os educadores a ver quanto é importante ter perguntas sobre o que se quer aprender. É claro que seria frustrante não conseguir solucionar nenhuma das dúvidas que surgem, mas não é necessário que todas sejam resolvidas para garantir uma boa situação de aprendizagem.
Não são as respostas que fazem as crianças aprenderem, mas sim suas perguntas. As questões que surgem de sua curiosidade e investigação são as únicas realmente significativas, fruto do desejo, material imprescindível para qualquer processo de aprendizagem.
O encantamento da ciência
Uma dessas oficinas foi desenvolvida com dois grupos de professores de duas escolas de um município da Grande São Paulo. Escolhi para eles os caracóis como objeto principal de estudo. Dividi as atividades em seis etapas:
- Levantamento de conhecimentos prévios e dúvidas sobre caramujos;
- Coleta de animais;
- Observação dos animais;
- Levantamento de novas questões e organização dos conhecimentos;
- Consulta a outras fontes de informação;
- Organização final dos conhecimentos.
A seqüência foi escolhida com a intenção de que houvesse uma maior valorização das idéias espontâneas de cada componente do grupo. Algumas informações e idéias apareceram com muita freqüência entre os professores, como por exemplo:
- Carregam a casa nas costas
- Têm antenas
- São nojentos
- Gostam de umidade
- São moluscos
- Deixam rastro (gosma brilhante)
- São “primos” da lesma
- Se arrastam
- Alguns transmitem doenças e outros são comestíveis
- Alguns têm concha comprida
- São vegetarianos, comem verduras
- Têm hábitos noturnos
- O sal e o Sol fazem mal para eles
- Não gostam de ficar no Sol
- Há muitas espécies
- Têm “pescoção”, são parentes da girafa
Apesar de muitos concordarem com as mesmas idéias, algumas dúvidas freqüentes também ocorreram a muitos dos professores que queriam saber, por exemplo:
– Os caramujos abandonam a casca?
– Morrem se perderem a “casa”?
– Como nascem?
– Botam ovos?
– Como se desenvolvem?
– Quem come caracol? É o sapo? É o passarinho?
– Como escolher uma espécie que não seja nociva para trabalhar com as crianças?
– Quais são as partes do corpo do caramujo? Eles têm olho e boca?
– Tem macho e fêmea?
– Como se reproduzem?
– Fazem cocô?
– Qual sua a importância para o ecossistema?
– O que faz com que grudem no teto? É uma cola?
De modo geral, os saberes espontâneos dos adultos sobre os caramujos são muito semelhantes aos das crianças, pois foram adquiridos por meio de observações cotidianas dos animais. Assim, neste primeiro momento da oficina, as informações que prevaleceram estavam relacionadas às características físicas dos animais ou ao seu comportamento.
Apesar disso, entre as idéias dos adultos havia também informações adquiridas a partir de contatos com os conhecimentos científicos (por exemplo, a classificação como molusco), o que raramente ocorre entre as crianças, pois elas ainda não tiveram uma vivência escolar para aprender os conhecimentos científicos de modo mais formalizado.
Em contrapartida, as crianças freqüentemente incluem elementos de fantasia em suas concepções prévias, já que os caramujos são personagens de diversas histórias infantis e aparecem representados em muitas ilustrações com características imaginárias, tais como chaminé, porta e janela, que fazem alusão à suposta função da concha como a casa dos caramujos.
Como as questões surgiram no grupo de professores a partir do levantamento de seus conhecimentos prévios, ficou evidente a importância dessa etapa de trabalho com as crianças. Esse movimento que parte de idéias e informações que já temos em direção a perguntas para as quais ainda não temos respostas, mas desejamos saber, é similar ao que se passa com as crianças quando se envolvem em seqüências de atividades ou projetos de pesquisa e investigação sobre os conhecimentos da Ciência.
Para responder a todas essas inquietações é preciso fazer um estudo mais a fundo, por meio da observação direta (quando possível) ou buscando diferentes fontes de informação. Assim também ocorreu na oficina dos professores.
O que se aprende com a observação
É interessante observar como o momento de “caçada” foi instigante e provocou diversas reações. Isso ocorreu graças ao caráter desafiador e lúdico que a atividade adquiriu logo no primeiro momento da oficina. Observamos freqüentemente competições para ver quem encontrava primeiro os animais.
Aqueles que encontraram primeiro auxiliavam colegas a executar a tarefa e, ao final, comemoravam “fazendo festa”, exatamente como fazem as crianças. Concluída a “caçada”, chegou o momento de observação. Era hora de “perguntar para os caramujos” se as hipóteses do grupo estavam corretas e tentar resolver as dúvidas.
Freqüentemente, a primeira reação ao contato com o caramujo é de repugnância, pois o animal tem uma consistência gelatinosa e muitas pessoas sentem-se desconfortáveis com sua presença. Entretanto, diante do desafio de descobrir coisas novas e olhar para os caramujos como fontes de informação, o comportamento do grupo foi se transformando à medida que os animais saíam da concha e revelavam seus segredos.
E então, o que ocorreu foi uma coisa sempre linda de se ver: a alegria das descobertas. O entusiasmo foi tomando conta do grupo, ouvimos exclamações, risadas, olhares atentos aos menores detalhes e movimentos, discussões, dúvidas. Mesmo aqueles que ficavam menos à vontade no contato com os animais queriam olhar, saber, investigar.
Desse modo, a observação desempenhou na oficina dois papéis importantes: servir como fonte de informação e despertar novas dúvidas e curiosidades. As primeiras concepções levantadas no momento inicial puderam ser conferidas, algumas das dúvidas foram solucionadas e muitas outras questões surgiram a partir da observação. A presença de um desafio significativo, do envolvimento lúdico e afetivo com esses conhecimentos foi o que garantiu o bom andamento da atividade.
Em vez de encerrar o questionamento e sanar a curiosidade, ao contrário, a observação alimentou o desejo de saber mais. É justamente esse desejo que precisa continuar presente em qualquer trabalho educacional, independente da idade dos educandos.
O que se aprende com os textos
Apesar de constituir um momento muito rico, a observação direta dos animais não é suficiente para resolver todas as questões. É necessário utilizar todos os recursos disponíveis para garantir o acesso à novas informações e que o desejo da descoberta seja mantido. Por isso, para atender a essa necessidade, o próximo passo da oficina consistiu em consultar os livros para descobrir aquilo que se desejava saber.
Os professores reuniram-se novamente em pequenos grupos e consultaram livros e textos na tentativa de solucionar dúvidas e entrar em contato com novos saberes sobre os animais em questão. Vale ressaltar que é importante disponibilizar a maior diversidade possível de livros. Assim, procurei selecionar tanto textos com caráter informativo – paradidáticos, artigos de revistas e jornais ou livros especializados – quanto livros de literatura como histórias infantis, poesias, ilustrações etc.
Essa diversidade possibilitou discutirmos os vários modos de abordar um mesmo tema e os recursos de que cada área de conhecimento se utiliza. É uma forma também de enfatizar a importância de que haja uma contextualização das diferentes interpretações do mundo sem que ocorra uma hierarquização do conhecimento.
Nenhum saber é mais importante ou mais correto do que outro, desde que cada um esteja inserido em seu próprio contexto. Ainda assim, muitas das questões continuaram sem respostas, ou porque os livros disponíveis não contêm todas as informações, ou porque essas informações não são realmente conhecidas por ninguém, ou até porque ignoramos a forma mais adequada de procurá-las.
Ainda assim é importante assegurar um tempo para a reorganização das idéias: a produção de um texto coletivo que informe as descobertas realizadas pelo grupo é uma das formas de organizar as novas informações e expressar o conhecimento que se tem.
Pensamento de criança
É imprescindível para os professores saberem como as crianças pensam e constroem conhecimento na área. Para construir conhecimentos é necessário que elas tenham possibilidades de imitar o mundo à sua volta e de adequá-lo à sua realidade interna. São os mecanismos que Piaget3 denomina respectivamente de acomodação e assimilação e que estão presentes intensamente em todas as ações das crianças.
Assim, é imprescindível que tenham sempre muitas possibilidades de organizar o pensamento e viver intensamente esse processo de apropriação de novos conhecimentos. Para isso, a utilização de variedade de recursos – como modelagens, desenhos, jogos, brincadeiras de faz-de-conta, imitações, histórias infantis, desenhos animados, documentários –, que envolvam os temas investigados, possibilita que as crianças expressem suas idéias e possam externar o seu pensamento por meio de diferentes linguagens.
Ao entrar em contato com o modo com que as Ciências Naturais explicam os fenômenos da natureza, ao pesquisar e pensar sobre os caramujos, as crianças adquirem novos elementos para articular os pensamentos e, nesse sentido, os saberes e as informações.
Como estamos falando de crianças pequenas, a investigação tem sempre um caráter lúdico. Elas vão construindo seus conhecimentos e estabelecendo relações lúdico-afetivas com o mundo à sua volta. O professor que vivenciou a oportunidade de investigar, que refletiu sobre o modo como as crianças pensam e relacionouos à sua própria prática tem melhores condições de realizar planejamentos mais adequados ao pensamento da criança, ampliando assim as oportunidades de aprendizagem na área.
(Por Celi Rodrigues Chaves Dominguez, Professora de Biologia, mestre em Educação)
1 Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil. Brasil, p. 167.
2idem, p. 175.
3Jean Piaget (1896-1980). Psicólogo e filósofo suíço.
Caracóis ou caramujos?
Os caracóis e caramujos fazem parte do grupo dos moluscos. Possuem corpo mole e protegido por uma concha; podem ser encontrados no mar, na água doce e em ambientes terrestres úmidos. Caracol é a designação mais apropriada às formas terrestres que possuem concha leve e caramujo, às formas aquáticas com conchas mais pesadas.
Fontes:
- Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Antonio Houaiss. Ed. Objetiva. Tel.: (21) 2556-7824. www.objetiva.com.br
- Site:www.trabalhoescolar.hpg2.ig.com.br/moluscos.htm
Atenção
Caramujos de rios poluídos podem ser transmissores da esquistossomose. Sem procedimentos especiais de laboratório, fica impossível dizer se o molusco está ou não com vermes. Portanto todo cuidado ao manipular caracóis, caramujos e lesmas. É importante esclarecer as crianças e usar luvas descartáveis sempre.
Mais informações:
- www.ipec.fiocruz.br/caramujo
- www.icb.ufmg.br
Ficha Técnica
Celi Rodriguez Chavez Dominguez – E-mail: celidom@terra.com.br
Para Saber Mais
- Livro: O Naturalista Amador – Um Guia Prático ao Mundo da Natureza, Gerald Durrel e Lee Durrel. Ed. Martins Fontes. Tel.: (11) 3241-3677