Conhecer, acompanhar e analisar as hipóteses das crianças sobre a escrita é fundamental para o educador que alfabetiza. Em videira, município do sul do brasil, professores desenvolveram um interessante trabalho de organização de portfolios sobre o processo de aquisição da escrita de seus alunos
A publicação de Psicogênese da Língua Escrita1, em 1979, trouxe mudanças significativas na teoria e na prática da alfabetização. Baseado em pesquisas desenvolvidas por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, o livro divulgou em larga escala os processos pelos quais as crianças constroem conhecimentos sobre a escrita. As autoras, alicerçadas na consistente teoria de Jean Piaget, de quem foram alunas, lançaram um olhar revelador sobre o sujeito que aprende. Graças a essas pesquisas, sabemos que as crianças já possuem hipóteses sobre a escrita antes mesmo de escreverem convencionalmente, e que se utilizam delas quando começam a escrever. O conhecimento que a criança vai construindo a respeito da língua escrita tem início em seu ambiente social, a partir do acesso a diferentes materiais portadores da escrita, das observações e das reflexões sobre o seu uso.
Acompanhar a aquisição da escrita pela criança e observar de maneira informada (isto é, conhecendo a psicogênese da língua escrita) as diferentes fases pelas quais ela passa, desde o momento em que começa a diferenciar as marcas gráficas figurativas das não figurativas (desenho e escrita), passando pelo período em que encadeia letras sem a correspondência silábica, até o período em que a correspondência silábica acontece sem e com valor sonoro para, então, alcançar o período alfabético. Em todas essas fases, a criança pensa ativamente sobre a escrita e já iniciou seu longo processo de alfabetização.
A importância de descobrir o que o aluno já sabe
O olhar do professor para o conhecimento prévio do aluno é premissa de um modo de ensinar baseado no construtivismo, pois considera o que a criança já sabe, que informações ela já tem e que poderão servir de apoio na aquisição de novos conhecimentos e na reconstrução de seu conhecimento.
A aprendizagem, portanto, e o ensino, não são únicos e homogêneos em uma sala de aula. Dessa forma, um aspecto importante dentro dessa concepção de aprendizagem diz respeito à avaliação de percurso, realizada durante o processo de aquisição da escrita. Essa avaliação é um instrumento que pode revelar tanto aquilo que os alunos estão aprendendo, quanto se o trabalho do professor está acontecendo de forma produtiva, e principalmente, que intervenções poderão ser feitas para contribuir com o avanço da aprendizagem.
Os diagnósticos iniciais por meio de atividades específicas (ditado) ou, entrevistas individuais sobre o que a criança escreveu possibilita ao professor ter pistas sobre o que o aluno pensa.
Acompanhando os saberes dos alunos em Videira
Com o intuito de acompanhar as crianças em processo de alfabetização, professores do município de Videira3, em Santa Catarina, organizaram um trabalho com portfolios de seus alunos do pré até o fim da primeira série do Ensino Fundamental, seguindo o seu trajeto na escrita e observando a evolução de suas hipóteses.
Esse trabalho foi realizado a partir do PROFA – Programa de Formação para Professores Alfabetizadores. Nesse município os professores seguem com os mesmos alunos durante todo o processo inicial de alfabetização, o que possibilita o acompanhamento longitudinal de seu percurso.
A organização da produção das crianças em portfolios seguiu a linha do tempo da evolução da escrita de cada uma delas, valorizando cada etapa do processo de alfabetização e enfatizando a construção do conhecimento do aluno em seu percurso, e não apenas seu resultado final. Vale dizer ainda que a importância do trabalho com os portfolios reside na possibilidade de o professor poder avaliar a produção de seus alunos a partir de seus trabalhos mais significativos, para então propor novas atividades.
A seguir, o relato da coordenadora do PROFA, Rosane:
Num primeiro momento, os professores consideraram importante mostrar algumas entrevistas individuais sobre a escrita feitas com as crianças, pois isto possibilitava a análise dos conhecimentos delas no início de 2002 e como evoluíram com o passar dos dias.
Em seguida, expuseram atividades de listas, por ser esse um tipo de texto que, além de bastante trabalhado pelos professores, é muito utilizado socialmente e, por isso, significativo para a criança. E incluíram uma atividade de leitura de textos que se sabe de cor, por considerarem muito importante a criança ter de acionar as estratégias de leitura e pôr em jogo o que sabe para aprender o que não sabe, rompendo com a idéia de que é preciso decodificar tudo para aprender a ler.
Ainda nas atividades de pré-escola, foi realizada, no final do ano, a escrita de um texto que se sabe de cor, feita em duplas, que nos mostra uma escrita alfabética. Essa evolução prova que, se bem trabalhada, a criança vai ressignificando suas idéias, passando, ao final de aproximadamente um ano, de uma escrita pré-silábica a uma escrita alfabética.
Nesta turma, quase todos terminaram o ano com uma escrita alfabética e lendo convencionalmente. Isso nos deixou muito entusiasmados com a proposta e nos provou que os resultados são muito positivos, pois promovem um processo de alfabetização significativo já na pré-escola, quando a criança é colocada desde cedo em um contexto de letramento que exige leitura e escrita.
Durante o ano, a professora trabalhou muito com literatura infantil e organizou uma espécie de ficha de controle, na qual os alunos registravam o empréstimo dos seus livros. Dessa forma, sabiam que títulos já tinham lido, os de que mais gostavam, etc. Consideramos esta uma boa atividade, pois permite ao aluno saber que a escrita serve como registro do que é importante ser lembrado, configurando-se numa situação real de escrita.
Em 2003, a professora lançou o projeto “Lendas e personagens do folclore brasileiro”, promovendo uma pesquisa exaustiva sobre o assunto em livros, internet e revistas. Através da leitura do que os alunos haviam produzido, fez-se uma seleção do que era mais interessante, que foi editado sob a forma de um livro de lendas e personagens folclóricos, para ser doado para a Biblioteca da Escola.
Nessa produção, pudemos ver quanto as crianças se apropriaram das características lingüísticas da lenda e do texto descritivo, pois tinham que caracterizar os personagens e reescrever as lendas. Esse projeto foi socializado com outras turmas da escola, e cada criança quis confeccionar o seu próprio livro. Foi muito significativo para elas, pelo fato de terem um produto final concreto a ser apresentado e doado para alguém.
(Rosane Likoski Gubiani, formadora do programa PROFA Manutenção do Município de Videira. Com contribuições da equipe de redação da revista avisa lá)
1 Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, Psicogênese da Língua Escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
A escrita de Sara
A evolução da escrita de Sara, aluna da professora Marisa Rosane Delani, da Escola de Educação Básica Vilson Pedro Kleinübing, durante os anos 2002 e 2003, quando estava no pré e na primeira série do Ensino Fundamental, respectivamente
Escrita pré-silábica
Nesta etapa, Sara já utiliza letras convencionais, tiradas ou não de seu nome e, portanto, já possui muitos conhecimentos. Há ainda uma mistura de números e pseudo letras. Sua escrita sugere que está numa transição em relação à hipótese da quantidade de letras – uma ou três para cada palavra. Quando utiliza três letras, não as repete na mesma palavra: critério de variedade interna. E quando a professora pede que leia, o faz de uma vez só, da esquerda para a direita.
Em 08/04/02, ainda pré-silábica
Sara já não escreve nenhuma palavra utilizando-se de apenas uma letra. A não repetição das letras na mesma palavra se mantém, assim como a forma com que lê: direto, da esquerda para a direita.
Da escrita pré-silábica para a silábica
Um mês e uma semana depois, e olha o que está acontecendo com a Sara! Há uma transição da fase pré-silábica para a silábica. É importante saber que essa passagem não se dá definitivamente de uma hora para a outra, justamente porque a criança está construindo e testando as suas hipóteses, e é por isso que ela pode apresentar escritas tão diferentes no mesmo momento. No caso da Sara, para escrever “bolo” e “pastel”, ela manteve a escrita pré-silábica, mas aumentou o número de letras utilizadas nas duas palavras.
A leitura também se dá de forma direta, da esquerda para a direita. No entanto, ao escrever “coca”, “chocolate” e “cuca maluca”, Sara escreve de forma silábica, pois atribui a cada letra a sílaba da palavra. Há uma fonetização da escrita, que caracteriza essa fase.
Também é interessante notar que há valor sonoro na escrita de Sara, ou seja, ela representa a sílaba pela vogal correspondente ao seu som; a única exceção está na palavra “chocolate”, em que ela utilizou um “e” para a sílaba “co”, o que pode ter sido causado pela recusa em repetir a mesma letra seguidamente.
Sara parece estar passando por muitos conflitos cognitivos. Quando escreve “pastel”, “bolo” e “coca”, coloca letras a mais, que são riscadas no momento da leitura. Ao ler pastel, bolo e brigadeiro o faz silabicamente. Em “morango” Sara acrescenta um “o” pois não acha possível um final com “t”. Em “bis” o conflito acerca da quantidade de letras se explicita na leitura. Para ela, como para todas as crianças nessa etapa, ao escrever uma palavra é necessário ter um mínimo de 3 letras, e ao ler “essa palavra” lhe parece ter apenas uma letra. Então, ao ler, faz o movimento de juntar todas as letras em uma única emissão sonora.
Depois de praticamente um ano participando de várias atividades de leitura e escrita, recebendo ajuda da professora e de colegas mais experientes, Sara avançou muito. Está alfabética, ainda que com erros ortográficos. “Apontador”, “mochila” e “lápis” estão próximas da escrita convencional. A escrita de “giz” ainda lhe traz dúvidas. Analisando o seu percurso, podemos afirmar com toda a certeza que ela trabalhou muito para chegar até aqui, observando a escrita de muitas palavras, escrevendo e se questionando, utilizando e descartando diferentes hipóteses.
Os próximos textos de Sara mostram como ela evoluiu em sua escrita em apenas dois anos. É certo que sua escola promoveu um ambiente letrado, oferecendo diversidade textual, garantindo várias atividades com a língua escrita, que possibilitaram que ela analisasse e refletisse sobre as regularidades do sistema e sobre a linguagem com a qual se escreve. A partir da observação dos exemplos a seguir, uma outra conclusão a que podemos chegar diz respeito à pertinência dos textos propostos para escrita. Não se escreve por escrever, a escrita tem uma função comunicativa.