Reflexões a partir de uma visita pedagógica
Ana Carolina Carvalho
Desde 2023, o Instituto Avisa Lá, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Itapeva e a Agropecuária São Nicolau, desenvolve um projeto voltado à constituição de comunidades leitoras nas escolas da rede municipal.
Nos dois primeiros anos de atuação (2023 e 2024), as ações foram direcionadas às turmas de crianças de 4 a 6 anos, com o objetivo de acompanhar o período de transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Atualmente, o trabalho se estende às turmas do 2º ao 5º ano, ampliando o alcance da proposta.
Para consolidar comunidades leitoras, sabemos que é essencial envolver toda a rede de profissionais da educação, tanto nas práticas institucionais quanto nas práticas de sala de aula. Por isso, participam dos encontros formativos — presenciais e on-line — professores, coordenadores pedagógicos, diretores e a equipe técnica da Secretaria. Desde o início, os temas abordados incluem: concepção de leitura e de leitor, constituição e reorganização de acervos, critérios de qualidade da literatura, a importância da conversa literária, o papel do professor como mediador de leitura, a função do coordenador pedagógico como formador de professores, o papel do diretor na manutenção de práticas que assegurem o direito à leitura literária e a atuação da Secretaria na garantia de que o trabalho pedagógico aconteça em toda a rede.
As visitas presenciais ao município acontecem quatro vezes ao ano, duas em cada semestre. Além dos encontros formativos, incluem também visitas às escolas participantes, nas quais observamos a organização dos espaços de leitura, a distribuição dos acervos, os indícios das práticas literárias nas salas de aula e as práticas institucionais de leitura. Nessas ocasiões, dialogamos com as equipes gestoras e construímos, de forma coletiva, novos encaminhamentos a partir das necessidades de cada escola.
Em agosto de 2025, visitamos a EM Quilombola Josepha de Paula Lima, localizada em uma comunidade quilombola no bairro Jaó, na área rural de Itapeva. Reconhecida oficialmente como escola quilombola há cerca de um ano, a unidade vem desenvolvendo um projeto educacional específico para a comunidade. Com exceção do 5º ano, todas as turmas são multisseriadas, atendendo crianças desde a Educação Infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental.
Durante a visita, foi possível perceber o compromisso da escola com a valorização da identidade das crianças quilombolas. Esse compromisso se manifesta na
organização dos espaços, no cuidado com o acervo voltado às temáticas étnico-raciais, e nos projetos que reafirmam a identidade cultural da comunidade. Na biblioteca, por exemplo, os livros de autores e autoras negras, bem como aqueles voltados à temática racial, ocupavam lugar de destaque logo na entrada. Próximo a essa estante, um grande mapa apresentava todas as comunidades quilombolas do país. As paredes da instituição exibiam pinturas com motivos étnicos, e os murais traziam referências a personagens negros e negras que se destacaram em diferentes áreas da sociedade.
Em uma das turmas do 5º ano, ao serem perguntadas sobre a relação com a escola, as crianças disseram que ali havia muito respeito e amizade. A atmosfera observada em toda a visita confirmava essa percepção: respeito, atenção e cuidado estavam presentes nas relações cotidianas. Já em uma turma multisseriada, estudantes do 8º e 9º anos relataram a experiência de um projeto de escrita de vivências inspirado na obra de Conceição Evaristo. Neste ano, como parte do projeto, a diretora e a coordenadora planejam a realização de saraus envolvendo toda a comunidade, reforçando a aproximação entre a escola e seu território.
Ao observarmos a experiência dessa escola, torna-se evidente que uma escola quilombola não pode ser pensada apenas como um prédio ou como uma unidade isolada da rede: ela é expressão viva de uma comunidade, de seus saberes, memórias e práticas culturais. A relação orgânica com o território se revela no currículo, nos projetos de leitura, na preservação das tradições e no diálogo permanente com os moradores. Essa articulação fortalece a identidade das crianças e jovens, ao mesmo tempo em que amplia a compreensão, dentro da rede, da importância da diversidade cultural como parte inseparável da qualidade da educação.
O impacto dessa experiência extrapola os limites da própria escola. Reconhecer, apoiar e difundir práticas educativas desenvolvidas em territórios quilombolas contribui para a formulação de políticas públicas mais inclusivas, que considerem as especificidades de cada comunidade. Isso implica compreender que a equidade na educação passa não apenas pelo acesso universal, mas também pela valorização de diferentes modos de existir, aprender e transmitir conhecimento. Assim, ao garantir que as escolas quilombolas tenham recursos, formação docente adequada e autonomia para desenvolver projetos que dialoguem com suas realidades, o poder público fortalece tanto o direito à educação de qualidade quanto o direito à identidade cultural.
Ter uma escola quilombola na rede é, portanto, uma responsabilidade compartilhada. Ela reafirma a importância de assegurar uma educação específica e diferenciada para essas comunidades e, ao mesmo tempo, convida toda a rede a aprender com a riqueza de seus saberes, práticas e formas de resistência. Essa experiência aponta caminhos para que as políticas educacionais no Brasil avancem no reconhecimento da contribuição das comunidades tradicionais, promovendo uma escola pública que seja verdadeiramente plural, democrática e comprometida com a diversidade cultural e racial do país.

