Ana Carolina Carvalho, formadora do Avisa Lá, indica mais um livro para crianças, mas também todas as idades.
Não deixe de assistir ao vídeo e ler o texto, são verdadeiros presentes de uma leitora sensível que nos instiga a conhecer essa narrativa.
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Em silêncio, com as palavras
Ana Carolina Carvalho
Nós não estamos acostumados a ficar em silêncio. Nossa sociedade é barulhenta e exige que falemos sempre, que tenhamos opiniões sobre tudo, que apareçamos. Há quase uma ideia de que só está vivo quem aparece nas telas, quem faz barulho, quem quer falar, e fala. O silêncio incomoda. Não deveria o barulho excessivo ser um incômodo? Parece que não. Uma criança que pouco fala nos chama a atenção: algo parece estar fora do lugar. Algo não vai bem. O bom é ser ruidoso?
Curiosamente, embora sejamos todos radicalmente diferentes uns dos outros, portanto, com um grau considerável de estranheza frente ao resto do mundo, ser diferente “demais” pode não ser bem aceito. Sentir-se um estranho no ninho é condição do humano. Quem sou eu no mundo? Que é o mundo? São questões que todos temos, em algum lugar de nossa existência. Buscar palavras para reconhecer o território em que vivemos e nos compreender nele pode ser uma das funções da literatura. E é também função da literatura ser esse próprio lugar da estranheza, por trazer aquilo diferente daquilo que estamos acostumados e nos deslocar.
Em um belo ensaio sobre a presença dos livros e da leitura em sua vida, o crítico e ensaísta mexicano Daniel Goldin escreveu[1]: “Quem sabe o horizonte da leitura não seja apenas isso: uma linha tênue e distante onde o sol se põe ou levanta, onde nascem, morrem ou renascem a claridade ou a noite. E somos a noite e o dia. O estranho desamparado e o que acolhe e ampara, e também a casa onde esse encontro acontece. E não somos nada disso e somos alguém em busca de uma voz que nomeie e faça hospitaleiro esse vasto e indiferente território ao qual chamamos mundo”.
Eu fico em silêncio, obra escrita e ilustrada pelo norte-americano David Ouimet, fala de alguém – uma menina – em busca de uma voz, ela é esse estranho desamparado que todos nós podemos ser em algum momento da vida. Acompanhamos a menina em sua jornada: ela não se sente parte do mundo, é diferente de todos à sua volta, está excluída. A sensação se repete em muitas cenas. Ela deseja não estar ali, nos lugares que frequenta. Sim, em parte, é um livro triste, ilustrado em tons escuros, lançando mão de cores que poderiam ser tidas como inadequadas para o público infantil. Contudo, essa suposta inadequação só está ali para revelar outra: a da relação da personagem com o mundo. Ela é silenciosa, o mundo é ruidoso, e nesse descompasso, ela se sente uma nota fora do tom.
Não tenhamos medo de livros tristes escritos para as crianças. Elas também precisam de narrativas que emprestam palavras e imagens para a sua dor, dando-lhe outros contornos. Mas não nos enganemos. O livro também é esperançoso.
Há uma saída para além do silêncio e da retirada do mundo. E a saída está no encontro com as palavras, na literatura cujo terreno é acolhedor. Ali, há línguas que a menina ainda vai falar. Há um mundo habitável para todos nós, lugar generoso com todos os destinos possíveis, todos os idiomas. E então, podemos não só ser ouvidos, mas também falar. Por nós mesmos e pelas vozes de outrem.
[1] Goldin, Daniel. Os dias e os livros: tradução: Carmem Cacciacarro – São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.