Contos clássicos para imaginar, brincar e aprender

LUCIANA OLIVEIRA DOS SANTOS¹


IMAGINAÇÃO, VONTADE DE DESENHAR, CONHECIMENTO DA LINGUAGEM ESCRITA DOS CONTOS CLÁSSICOS E ENVOLVIMENTO DAS FAMÍLIAS EM UM ÚNICO PROJETO


Há alguns anos, desenvolvemos o projeto Contos clássicos. O objetivo é realizar um trabalho que aproxime as crianças de 5 anos da linguagem característica desse tipo de texto, garantir a ampliação do repertório das histórias clássicas e também promover contextos interessantes para que os pequenos avancem no desenho e na escrita. Embora o projeto tenha sido feito ao longo dos últimos anos, ele nunca se dá exatamente da mesma maneira, já que o conhecimento da professora vai se modificando, bem como os interesses e conhecimentos dos alunos, o que garante sempre um tom de novidade ao trabalho. Por outro lado, realizar o mesmo projeto ao longo de alguns anos possibilita que afinemos cada vez mais o nosso planejamento. A experiência relatada nesse artigo remete ao trabalho feito em 2016, mas também aos de outros anos, cujas experiências igualmente nos ensinaram tanto.


1 Coordenadora pedagógica da Associação pela Família – Escola Colibri. Este artigo foi elaborado com a colaboração técnica de Ana Carolina Carvalho, formadora do Instituto Avisa Lá.

Para dar conta de todas as aprendizagens almejadas, a professora dessa faixa etária precisou planejar várias ações: escolher versões de qualidade dos contos clássicos para ler cotidianamente, oferecendo às crianças referências de
narrativas e de expressão escrita da língua e ampliando o repertório das histórias lidas no grupo; disponibilizar os livros para as crianças lerem as histórias ainda que não soubessem ler de forma convencional; criar de forma sistemática oportunidades para que os alunos recontassem as histórias conhecidas, organizar espaços de leitura sentando em círculo, melhor posição para terem uma boa visão dos livros e dos gestos e atitudes do leitor, recorrer aos livros e CDs de histórias narradas, cenários com caixas, entre outros objetos, para estimular a imaginação e o reconto feito pelos pequenos.

Foram desenvolvidas atividades importantes de acesso às histórias, como a leitura pelo adulto e o reconto, sendo que a professora tinha clareza da diferença dessas situações. Na leitura, o texto apresentado era lido integralmente, mantendo expressões típicas da linguagem escrita, e até mesmo palavras supostamente desconhecidas pelo grupo. Dessa forma, a professora sabia que garantiria o acesso à linguagem escrita, em toda a sua forma e sonoridade. As palavras lidas não são mais importantes do que as ditas oralmente, de memória. São apenas diferentes e, certamente, insubstituíveis.

Emilia Ferreiro², estudiosa interessada em saber como as crianças pensam a linguagem escrita, afirma que a leitura pode ser entendida como um grande palco, onde é preciso descobrir os atores e os autores. Segundo ela, as crianças veem a leitura como algo mágico, mas o que confere essa magia não são apenas os personagens, temas ou qualquer acessório usado por quem lê. Para ela, parte dessa magia está na descoberta da estabilidade da escrita e da capacidade de representação que um texto pode inspirar.

Ler e contar histórias

São duas situações importantes e que devem ser planejadas com cuidado pela professora de Educação Infantil. Uma não substitui a outra. Quando lemos uma história, colocamos a criança em contato com a linguagem escrita: sua forma, suas expressões, o trabalho de um autor ou de um tradutor. Quando escreve, o autor escolhe com cuidado as palavras de seu texto, compondo um ritmo, uma sonoridade, que contribuem para o entendimento e a emoção do leitor. Por isso, não devemos substituir as palavras por outras que acreditamos ser mais fáceis. Como diz Emilia Ferreiro, a criança deve aprender que a linguagem escrita é fixa: encontramos sempre o mesmo texto quando voltamos a um livro. Quando contamos uma história é o contrário: a linguagem oral é mais flexível, permeável às circunstâncias, aos ouvintes, a quem conta. Isso não quer dizer que vale improvisar! Muito pelo contrário; nas duas situações, o planejamento é fundamental. Na hora de ler uma história, é preciso conhecer muito bem o enredo, os ritmos do texto, as possíveis paradas, pensar na entonação. Na hora de contar, precisamos estar muito apropriados do enredo, escolher se vamos usar objetos que nos ajudem a prender o ouvinte, as palavras com as quais vamos compor a nossa narrativa, expressões e ou termos que anunciarão o início e término da história.


2 Psicolinguista argentina que realizou diversos estudos sobre a concepção da criança a respeito da aprendizagem da leitura e escrita, é responsável pelos fundamentos da Psicogênese da Língua escrita.

Incentivando a imaginação

A professora leu muitas histórias para o grupo, e a escolhida para a reescrita pelos alunos foi Branca de Neve e os sete anões, não à toa uma história bastante conhecida por todos. Dessa maneira, apropriados do enredo, poderiam focar os desafios na elaboração da narrativa. Mas não foi apenas na reescrita do conto que a escrita apareceu. Durante a leitura feita em capítulos, as crianças ficaram tão interessadas e envolvidas na narrativa que manifestaram a vontade de avisar Branca de Neve sobre os perigos que aguardavam por ela. Foi uma ótima deixa para criar mais um contexto significativo para as crianças escreverem.

Aproveitando o envolvimento das crianças, a professora incentivou a imaginação e perguntou ao grupo o que pode ser feito para ajudar Branca de Neve. A nossa escola fica no meio de um bosque com muita vegetação, o que favorece cenários para brincar e imaginar. As crianças, pensando que a personagem poderia muito bem passear no bosque, sugeriram a escrita de bilhetes para serem colocados nos troncos das árvores de uma trilha que disseram ser encantada. Ao perceber o movimento do grupo na trama do faz de conta, a professora deu corda à imaginação infantil. No dia seguinte, quando voltaram à trilha, encontraram uma carta da Branca de Neve agradecendo os avisos. Para retribuir o gesto de preocupação, ela deixou também maçãs do amor como forma de gratidão. No momento em que as maçãs e a carta foram encontradas, as crianças sentiram medo de encontrar a bruxa má e de as maçãs estarem envenenadas, mas, por outro lado, sentiram-se encantadas e extremamente curiosas sobre a real existência da Branca de Neve. A professora ouviu, acolheu as falas das crianças e foi “puxando fios” da memória e das falas das crianças para que construíssem novos cenários para o mesmo conto.

Da leitura à escrita coletiva

Considerando um conhecimento adquirido pelo grupo – de que as histórias possuem diferentes versões –, a professora sugeriu que o grupo escrevesse a sua, uma versão dos alunos do grupo 5 da escola. Para ter certeza de que o enredo já estava dominado pelas crianças, a professora sugeriu que elas recontassem partes da história, recuperando detalhes da narrativa. Nesse momento, a professora atuava como escriba e reescrevia o que as crianças ditavam, colaborando na sistematização e compilando as falas dos alunos. Como intérprete das crianças, a professora mais uma vez exerce seu papel de mediação entre a cultura escrita e os protagonistas do processo. Acolhendo-os nesse período peculiar da vida, cheio de curiosidades, permitiu ao grupo escolher o produto final do projeto: a produção de um livro com a reescrita coletiva, e que teria como destino final a biblioteca da escola. Dia a dia teciam o livro retomando partes da história, relendo os trechos escritos para que os alunos expressassem suas opiniões e sugestões. O desenvolvimento da escrita coletiva envolvendo todo o grupo na produção do livro permitiu que as crianças participassem não só com o texto, mas também com as ilustrações, desenhando personagens e cenários da história.

Escrita coletiva – texto ditado ao professor

Quando propomos uma atividade como essa às crianças, precisamos ter clareza de que elas serão as autoras, ou seja, ditarão o texto produzido oralmente ao professor, que assume o papel de escriba do grupo. Evidentemente, sendo um escritor experiente, o professor deverá fazer perguntas ao grupo que ajudem a elaboração do texto, poderá propor revisões ao longo da escrita, fazendo releituras frequentes e perguntando se está bom, se há algo que pode ser alterado, alguma palavra que pode ser substituída por outra etc. Mas nunca escrever pelas crianças! Ou seja, não vale escrever o que as crianças não disseram literalmente, colocando expressões típicas da linguagem escrita em ideias que as crianças apenas lançaram. Por exemplo: se as crianças dizem: aí, a Branca de Neve comeu e morreu; não vale escrever na lousa: Então, a Branca de Neve mordeu a maçã envenenada e morreu. É preciso sempre problematizar com o grupo, para que as crianças cheguem a um resultado que tenha jeito de texto escrito.

Por exemplo: Aí… essa expressão aparece nos textos escritos? Será que não encontramos outra melhor? O que Branca de Neve comeu? Será que está claro para o leitor? Ela comeu a maçã toda? E por que morreu? Qualquer maçã pode matar? Assim por diante.

Uma comunidade de leitores

Tal experiência dá às crianças a oportunidade não apenas de aprender, mas também de transmitir os conhecimentos construídos por elas para a sua comunidade. Mergulhadas no universo literário, com o repertório de histórias bastante ampliado, as crianças foram revelando suas experiências leitoras, conversando sobre as suas preferências e fizeram uma indicação da história preferida e de outras histórias que leram ao longo do ano para diferentes grupos da escola, para os irmãos e para funcionários. Exercitando o comportamento de escritoras escreviam indicações individuais e uma coletiva que foram apresentadas com o formato de cartão-postal e/ou marcadores de página na Mostra Cultural da escola. Muitas de nossas leituras acontecem porque alguém nos indicou, ou fez isto profissionalmente, já que escreve em colunas de literatura etc. ou faz parte de nossas relações pessoais. São leitores que trocam opiniões e impressões sobre os livros, fazem indicações. Aprender que leitores experientes desenvolvem essas ações ajuda na formação leitora das crianças. Com isso em mente, incentivamos também essas ações entre as crianças.

Cenário poético dos contos

As crianças que ainda não leem convencionalmente por conta própria podem conhecer por meio de um leitor mais experiente a beleza das histórias. Ao ler para as crianças, a professora convida-as a mergulhar no mundo da magia literária.

Para contar de modo vivo como foi esse momento especial do projeto, apresentamos a seguir o relato da professora Ana Maria, do G5B:

Com o projeto Contos clássicos, mergulhamos nos contos de fadas dos Irmãos Grimm e Andersen e outros mais que, na sua essência, falam sobre magia. As crianças se encantam quando entram nesse mundo e podem virar príncipes, princesas, reis, rainhas, bruxas e até monstros que moram em castelos encantados.

Ao ler e ouvir as histórias planejadas da semana, nos deparamos com o conto O homem que amava caixas, de Stephen Michael King. A história nos tocou fazendo refletir: Como uma simples caixa pode se transformar em brinquedos tão bonitos e especiais? Um pai que constrói brinquedos e brinca com seu filho? Um amor lindo para com o outro nos motivou e também pensamos por que não construirmos castelos com nossos pais utilizando caixas de tamanhos diferentes? Será muito bom brincar com eles e aproveitar ao máximo a espontaneidade, o engajamento infantil. Tudo começou assim: cada criança levou para casa uma caixa encapada com papel Kraft: a tarefa era cada família, junto com seu filho, construiria uma parte de um castelo. Poderiam explorar a criatividade e fazer da melhor forma possível qualquer castelo de qualquer príncipe ou princesa. Podiam até se inspirar no castelo do conto O homem que amava caixas.

Nos bilhetes das agendas havia pais perguntando se podiam acrescentar mais caixas na construção, não queriam fazer só uma parte, queriam fazer um castelo inteiro.

E assim que começaram as produções em casa, as crianças chegavam à escola contando o passo a passo, as etapas que estavam prontas e as que faltavam terminar, falavam também dos materiais que alguns pais compraram para ajudar na decoração.

Convite Literário: 17/10/2016

Senhores pais,

Leia com atenção e carinho o conto O homem que amava caixas. Queremos compartilhar com vocês como o amor do pai para o filho foi demonstrado num simples e encantado momento de brincar.

No final do conto deixamos uma tarefa para que possam fazer com o filho(a). Temos a certeza de ser uma vivência de sabedoria e amor. Divirtam- se com a tarefa!

Vamos ao conto!

Era uma vez um homem
O homem que tinha um filho,
o filho amava o homem
e o homem amava caixas.

Caixas grandes
caixas redondas
caixas pequenas
caixas altas
todos os tipos de caixas!

O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava;
então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho.
Ele era perito em fazer castelos
e seus aviões sempre voavam…
a não ser, claro, que chovesse.

As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam,
e, nessas caixas, eles brincavam…
e brincavam…
e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho.
Os velhos apontavam para ele.
As velhas olhavam zangadas para ele.
Seus vizinhos riam dele pelas costas.

Mas nada disso preocupava o homem,
porque ele sabia que tinham encontrado uma maneira especial de compartilharem…
o amor de um pelo outro.
[livro de Stephen Michael King, da Brinquebook]

Fim!

E a tarefa é que construam com o filho( a) uma parte do castelo de O homem que amava caixas. Vamos deixar o castelo na Mostra Cultural, que será no mês de novembro de 2016 em nossa escola. Estaremos enviando a caixa para que use a criatividade (desenho, pintura, colagem). Deixe fluir a imaginação. Assim que terminar, envie a caixa de volta para a escola.

Agradecemos a parceria!
Professoras G5B

E aos poucos os castelos foram chegando à escola, e todos paravam na sala para os apreciarem. As crianças iam relatando para as visitas (funcionários, professores e alunos de outras turmas) as vivências e de como foi feito cada detalhe, cada procedimento utilizado. Podiam ver o encantamento de cada criança, o comprometimento delas e das famílias. Podemos ressaltar que a Mostra Cultural não aconteceu em um único dia; ela aconteceu desde o momento das construções dos castelos até a chegada deles na escola. E assim as crianças foram se encantando mais e mais. Ao chegarem à escola, pegavam giz e iam desenhar castelos na lousa todos ao mesmo tempo. Desenhavam em folhas de papel castelos, e vimos que só nos restava apoiá-los cada vez mais, oferecendo materiais e suportes para que expressassem todo esse querer desenhar e se tornassem protagonistas dessa construção.

O aluno Ryan levou de empréstimo para casa o livro Filhotes de bolso, também do autor Stephen Michael King, e, no outro dia, veio comentando que no livro tinha um trecho da história de O homem que amava caixas. Fui conferir e era mesmo. Fiquei encantada por ele ter percebido o que antes nem eu havia observado.

Ao assistir a um filme em que apareciam castelos, eles gritavam: ”Olha o castelo, pro!”. E assim foi a nossa aventura com os castelos grandes, pequenos, médios, altos, baixos. Castelos cortados, abertos, fechados, desenhados, pintados, colados; enfim, todos lindos e cheios de criatividade. Na Mostra Cultural, montamos uma cidade de castelos com a contribuição de crianças e famílias.

Lembrando que algumas famílias vieram à escola pessoalmente entregar os castelos, outros pais mandavam pelas próprias crianças que vinham de ônibus, sendo que as maiores ajudavam as menores, até chegarem à sala e, no fim, era só alegria.

Além dos castelos, empenharam-se na construção de textos coletivos de indicação literária, relatando suas impressões das histórias lidas e ditando o texto para a professora. Também escreveram muitos bilhetes para os personagens, pedindo a eles que tomassem cuidado com os vilões.

E, ainda, depois de ouvirem as muitas versões dos contos, escolhemos o da Branca de Neve para a nossa reescrita. Foi uma escrita longa, porém cheia de aventuras e tantos saberes.

Fim de história

Concluo que foi de grande valia acompanhar a professora e seu processo de formação sendo acionado no desenvolvimento do projeto com os alunos – atores dos cenários e enredos. Os fios tecidos pelos tecelões foram alinhavados nas narrativas, indicações e nos cenários poéticos dos castelos, culminando na exposição das produções de cunho literário em 26 de novembro de 2016.

Posted in Revista Avisa lá #69.