O círculo povoando a vida das crianças

Silvia Lisboa¹


As crianças pequenas movimentam-se o tempo todo e também se interessam por esses diferentes movimentos do mundo. Desde uma luz que se acende misteriosamente e se apaga com o apertar de um botão até o viajar de uma bolinha de sabão entre as nuvens, tocando o sol.


No meu grupo de crianças de dois anos, ao iniciarmos uma atividade de desenho com intervenção, observei que as crianças, embora realizassem movimentos circulares em meio às suas variadas gestualidades, também começaram a olhar para as imagens que faziam e falar sobre círculos, bolas e bolinhas…

– Fiz bola grande!
– Não. Tem bola pequena.
– A bola que roda.
– A minha é preta.


1 Professora da escola Projeto Vida. Atua também em Centro de Educação Infantil (CEI) da rede pública da Prefeitura de São Paulo. Formada em Pedagogia e pós-graduada com o trabalho “As relações interpessoais e o desenvolvimento da autonomia moral.” Pós graduada na UNIFRAN em 2012.

Círculos em todo lugar

Diante desta observação e investigação de algumas crianças, criei certas estratégias para melhor explorar e indagar este elemento. Tais estratégias foram mediadas a partir das vivências de mundo do grupo 2 em meio à nossa rotina, como dar comida as patos, brincar no circuito, correr pelos parques. Vale lembrar que as estratégias de escuta e de validação daquilo que as crianças traziam foram sempre olhadas com muita atenção. Eu tentava identificar a relação que elas estabeleciam entre suas investigações e as próprias experiências de vida. Procurava também fazer intervenções que atendessem às indagações do grupo. Eu estava interessada em identificar as experiências pessoais que as crianças lançariam mão para entender as “bolas do mundo”.

Essa atitude é importante porque, caso contrário, tudo pode virar apenas bola e gol, sentido primeiro e rotineiro. Mas a verdade é que podemos ir além quando levamos a serio as falas das crianças. É possível ver que elas ampliam o repertório de palavras e gestos, como também as possibilidades de integração com o grupo, quando tratamos de tema comum.

Desenhos e instalação com vinis

O desenho faz parte da vida do grupo 2. Entre muitos riscos e rabiscos, as crianças revelam-se por meio de sua representação de mundo. Momentos com desenhos de intervenção e propostas para desenvolver a imaginação são priorizados. A escolha e variação entre os materiais também são uma decisão importante, pois é nesse momento que as crianças se envolverão com aquilo que está sendo proposto, desenvolvendo seus traços e se entregando nesse registro. Seus movimentos e sua gestualidade são fortes e saltam aos olhos, chamando a atenção de adultos e de crianças, que muitas vezes se surpreendem ao verem o quanto crianças muito  pequenas conseguem se expressar em uma folha
em branco, um suporte de plástico, um tecido pendurado ou uma “simples” caixa de papelão.

Montamos, em outro espaço da escola, uma instalação com vinis presos a papéis de flip chart. Essa instalação foi montada levando-se um pouco em conta o formato do LP (Long Play), porém colocado em uma posição e espaço diferentes. As canetinhas foram colocadas longe da primeira intervenção, cujo objetivo principal era que as crianças indagassem a relação entre os objetos e, a partir daí, representassem os seus desenhos.

Conversamos em sala que íamos para outro local, mas em nenhum momento alguém disse o que deveríamos fazer lá. É muito importante permitir essa liberdade assistida, permitindo às crianças arriscar e se entregar aos poucos ao ambiente e aos materiais.

A sequência de imagens traduz um pouco disso… chegaram desconfiados, olharam para aquele objeto que já conheciam e alguns arriscaram-se a explorá-lo como sabiam (desenhando). Logo viram que podiam ir para outro lugar e, em pouquíssimo tempo, o grupo seguiu para acompanhar as descobertas dos seus pares.

Desenhar é ver, é trazer ao visível. Uso o desenho como instrumento do pensamento… É por meio do desenho que percebo e elaboro questões de meu interesse, como um pensamento, uma superfície, um corpo, algo que se projeta no espaço. (Flávia Ribeiro)²

Ao irmos dar comida para o pato, pegamos algumas “bolas” e fomos conversar em roda…

Nesse momento, descreveram diferentes tipos de bola, relembraram vivências, compararam as bolas e até lhes atribuíram algumas funções. Essa experiência nos faz racionar o quanto precisamos preservar e considerar o que as crianças nos dizem. Em falas simples, elas nos mostram muito do que conhecem e revelam sua visão de mundo.


2Interações: onde está a arte na infância?, de Stela Barbieri. São Paulo: Blucher, 2012. p. 83.

– Essa bola é de comer.
– Ela tá no alto. O Cícero jogou a bola. (referindo-se à árvore e também à “bola”)
– Tem bola de comer e voar.
– Tem bola de soprar e bola de jogar. Faz assim (como se estivesse soprando o objeto da bolinha de sabão)
– A roda da bola é do carro.
– A roda é de girar.

As crianças experimentaram a mexerica, mas permaneceu a ideia de descobrir e fazer novas investigações sobre bolas. Agora identificando alguns tipos e variações, como bola de comer, de jogar e de assoprar.

Vejamos algumas indagações feitas pelas crianças.

– É bolha e bola.
– A bola tem que jogar. Ela tá indo lá no céu.
– A bola foi no chão aqui embaixo.
– A bolinha está passeando.
– É uma roda bamba!
– A bola joga.
– A bolinha é “piquininha”.
– A bolha voa. A bola joga.

É interessante notar que, nesse momento, a definição de bolha e bola foi dada pelas crianças com o intuito de tentar diferenciar os “tipos de bola”.

No mundo das bolas…

Após especificarem algumas variações relativas aos tipos de bolas, especificamente entre bola de sabão e bola de jogar, brincamos no espaço da areia com bolas de futebol dente de leite e bolas de sabão. Com base nessa vivência, separei algumas imagens da artista Yayoi Kusama, que foram impressas, plastificadas e deixadas na sala para observação das crianças. Foram selecionadas imagens que representavam mais claramente as falas do G2, como bolas grandes, coloridas, todas elas retiradas de blogues alimentados com obras da artista³. Algumas obras foram apreciadas também em exposições feitas em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. O texto da biografia da artista apresentada aos alunos foi adequado o mais possível à faixa etária das crianças.

Aos poucos fomos conversando a respeito de uma moça que havia pintado essas obras e que ela gostava muito de “brincar” com bolinhas, como nós.

Surgiram novas observações.
– A moça do cabelo de rosa que pintou.
– Tem bolinha na parede.
– Olha, é bolinha de pula-pula.
– Tem castelo de pula-pula.
– Eu já fui no pula-pula, prô Silvia. Tem muitas bolinhas coloridas lá.
– Tem passarinho na parede.
– O menino tá engraçado. Tá de braço aberto.
– É uma joaninha.
– É o lobo. Tem a garra do lobo.

Essas imagens também foram colocadas em iPads, e, para visualizar isso, o grupo de crianças foi dividido. As crianças manuseavam livremente os iPads e se organizavam para decidir quem mexeria em que momento. O uso dessa tecnologia
surgiu da ideia de se observar as variadas funções atribuídas aos equipamentos e de se perceber o quanto eles nos propiciam descobertas nos momentos em que diferentes tomadas de decisão e de escolha precisam ser tomadas antes de se clicar na imagem mais interessante e, depois disso, poder conversar sobre ela com os amigos. Nesse momento, muitas das descrições que haviam feito se concretizaram e se reafirmaram.


3 Sua biografia teve como fonte de pesquisa: http://jojoscope.com/2014/04/yayoi-kusama-rainha-das-bolinhas/

Registro do estudo

Ao olhar um pouco para as descobertas, investigações e experiências das crianças pude observar uma relação entre o que faz sentido para as crianças Isso reforça a necessidade de se estar mais atenta à fala das crianças e observá-las como protagonistas do próprio aprendizado. Assim, foi possível elaborar situações que tornassem as vivências cada vez mais desafiadoras.

O professor é maestro de um grupo de crianças que, em permanente movimentação, se concentram de acordo com o envolvimento e interesse que as situações em que estão propõem. O papel do educador é trabalhar nas frestas, espaços de acontecimentos. Essas frestas são singulares, e o professor precisa percebê-las – precisa ter atenção. Carregamos nossa história de vida no corpo: ele registra nossas experiências4.


4Interações: onde está a arte na infância?, de Stela Barbieri. São Paulo: Blucher, 2012. p.110.
Posted in Revista Avisa lá #67.