Reflexão sobre o sistema de escrita na alfabetização inicial1

Mirta Castedo²


Tendo como referência a investigação psicogenética sobre a aquisição do sistema de escrita no marco dos desenvolvimentos didáticos construtivistas sobre alfabetização inicial, são analisadas três aulas sucessivas. Nelas, dois grupos de alunos, no momento inicial da escolaridade, escrevem e revisam a produção de legendas para uma imagem, colocando em jogo concepções pré-alfabéticas e alfabéticas iniciais. Descreve-se a ação didática com especial atenção às intervenções da docente em relação à reflexão sobre o sistema de escrita.


1Este texto foi originalmente publicado na revista Textos – Didáctica de la Lengua e de la Literatura, n. 67, oct./nov./dic. 2014, Editora Graó,
Barcelona: Espanha, com o título “Reflexión sobre el sistema de escritura y primera alfabetización”. Disponível em: http://maestromasmaestro.com.ar/wp-content/uploads/2013/11/Castedo-2014-Reflexion-sobre-el-sistema-de-escritura.pdf
2Mirta Castedo é professora titular de Didática do Ensino Primário e Observação e Didática da Leitura e da Escrita, área de estudo Didática
da Leitura e da Escrita da Universidade de La Plata, Argentina. Pesquisadora da área de ensino da leitura e da escrita e alfabetização inicial.

Para aprender a escrever, é necessário tentar interpretar e produzir escrita até compreender as regras que permitem que todos os membros da comunidade se entendam entre si. Trata-se de uma compreensão na ação, cuja explicitação aparece quando não existe acordo entre os participantes ou quando se violam as regras, não havendo produção eficaz. Em uma aula, as situações compartilhadas de interpretação e produção em que se negociam, com a orientação do professor, “o que se diz” (interpretação) e “como se diz” (produção escrita) constituem oportunidades de reflexão que permitem construir conhecimento sobre o sistema de escrita.

Tomamos como referência a investigação psicogenética sobre a aquisição do sistema da língua escrita³ no marco dos desenvolvimentos didáticos construtivistas sobre alfabetização inicial. Nessa perspectiva didática, escreve-se todo o tipo de textos completos desde o início da alfabetização (diferentemente de outras, em que se exercitam, de maneira isolada, habilidades chamadas “básicas” – tais como a codificação fonológica ou o traçado das letras –, para depois produzir a língua escrita propriamente dita). Concebe-se que, para que os alunos avancem em suas conceitualizações, é preciso haver reflexão sobre o sistema de escrita, sobre suas partes e relações entre si e com a oralidade, incluindo a reflexão sobre as unidades menores – letras e palavras. Tal reflexão baseia-se numa decisão apoiada pelo professor que não deixa a oportunidade ao acaso, mas a provoca quando toma a linguagem como objeto, normalmente, depois de colocá-la em cena no contexto da prática4.

Emília Ferreiro5 explica claramente a necessidade de refletir sobre as unidades menores:

Para poder pensar a respeito das relações entre falar e escrever, é preciso realizar uma complexa operação psicológica de objetivação da fala (e, nessa objetivação, a língua escrita em si desempenha papel fundamental). A criança adquire a língua oral em situações de comunicação efetiva, enquanto instrumento de interação social. Sabe para que serve a comunicação linguística. No entanto, ao tratar de compreender a língua escrita, deve objetivar a língua, ou seja, convertê-la em objeto de reflexão: descobrir que tem partes ordenáveis, permutáveis, classificáveis; descobrir que as semelhanças e diferenças no significante não são paralelas às semelhanças e diferenças no significado; descobrir que há múltiplas maneiras de “dizer o mesmo”, tanto ao falar como ao escrever; construir uma “metalinguagem” para falar sobre a linguagem, convertida agora em objeto. As diferenças nos modos de falar permitem de imediato despertar o interesse em pensar sobre a linguagem, porque as diferenças realçam uma problemática que as semelhanças ocultam.


3Em: Alfabetização: teoria e prática (México: Siglo XXI, 1998) e “Uma reflexão sobre a língua oral e a aprendizagem da língua escrita” (Patio, v. 7, n. 29, p. 8-12, 2004), de Emilia Ferreiro.
4CASTEDO, Mirta; TORRES, Mirta. Um panorama das teorias de alfabetização na América Latina durante as duas últimas décadas (1980-2010). Cadernos Cenpec, v. 1, n. 1, 2011. Disponível em: http://cadernos.cenpec.org.br/cadernos/index.php/cadernos/article/ view/40/43
5Emília Ferreiro em: Uma reflexão sobre a língua oral e a aprendizagem da língua escrita. Patio, vol.7 (29), pp. 8-12.

As aulas que serão analisadas pretendem exemplificar um processo de construção do conhecimento didático que deriva de um movimento em espiral entre a ação didática e a conceitualização da ação. Para isso, os registros foram realizados nas condições reais de trabalho do professor, em que é pouco frequente – diferentemente da investigação psicogenética – contar com informações precisas sobre as condições de produção – mais que um marco geral proposto pela mesma situação de ensino –, sobre o processo de produção de cada uma das crianças e sobre as interpretações dadas pelas crianças à escrita. O esperado é que o professor tome nota da intenção dos alunos ao escreverem de maneira imediata e que tenha uma aproximação construída a partir de sua observação permanente.

Os dados: contexto, obtenção e seleção

Os dados analisados são registros de três aulas (50 minutos cada uma) e três produções sucessivas de dois grupos de alunos no momento inicial da escolarização (6 anos), quando as crianças começam a compreender a base alfabética do sistema de escrita. Cada grupo representa os extremos da turma em relação ao avanço em suas conceitualizações sobre a língua escrita. O registro segue a professora5 ao longo da aula porque o foco, neste caso, não são as interações entre as crianças, mas as possibilidades de intervenção da docente, supondo-se que tais intervenções serão poucas para cada grupo – pela demanda permanente de todos –, mas úteis, sobretudo para o avanço dos pequenos. Desses registros, aqui são apresentados somente fragmentos em que a docente intervém para provocar momentos de reflexão.


5Gloria Seibert, La Matanza, província de Buenos Aires (Argentina).
6A sequência original desenhada por uma equipe de Ciências Naturais da “Dirección Provincial de Educación Primaria de la Provincia de Buenos Aires, Argentina (Laura Laccreu y Serafini, 2008). Sobre essa sequência de Ciências Naturais, a equipe de Práticas da Linguagem de mesma direção (Mirta Castedo, Alejandra Paione, Gabriela Hoz e outros) elaborou um documento com foco nas práticas de leitura e escrita envolvidas em tal sequência e orientando a prática em sala de aula.

As aulas se desenvolvem no contexto de uma sequência didática sobre a diversidade das partes do corpo dos animais6. Essas aulas se organizam em pequenos grupos. A docente distribuiu imagens de espécimes vertebrados para cada dupla; cada imagem tem setas sobre as quais as crianças registram sua escrita. O tema já foi apresentado, as imagens já são conhecidas e as informações foram coletadas em diferentes fontes, de maneira que se trata de uma situação em que as crianças conhecem o conteúdo sobre o qual vão escrever, e a docente pode se aproximar um pouco mais dessas intenções (o que pretendem escrever). Os enunciados são nomes ou construções nominais que designam partes dos animais que serão produzidas em duplas e conservadas pelos próprios autores como parte de seu processo de estudo do tema.

O que nos interessa é o momento no qual as duplas escrevem e revisam a produção de legendas e epígrafes para uma imagem.

Contamos com três produções sucessivas coletadas em duas aulas:

Produção 1: escrita produzida depois da leitura de informações sobre vários animais (não mostrada na figura).

Produção 2: revisão do vocabulário empregado pelas crianças para denominar as partes do corpo.

Produção 3: no dia seguinte, revisão, refletindo sobre o sistema de escrita: quantas letras, quais e em que ordem aparecem. Trabalha-se especificamente a reflexão sobre o sistema de escrita.


7Nessa tradução livre optou-se por preservar em espanhol a fala das crianças para não perder a espontaneidade das hipóteses infantis.

Descrição e primeira análise da ação

Na imagem 1, vemos a primeira produção de Bautista e Erik.

Pelas anotações da docente sabemos o que as crianças queriam escrever, já que foram feitas as observações contínuas de suas produções.

Ao observarmos o conjunto da produção do grupo notamos que: a orientação das escritas constituem uma dificuldade para a interpretação porque as crianças começam a escrever a partir da imagem e continuam por toda a página; há pseudoletras; um par de escritas tem cinco letras e as outras duas (parecem ter um requisito mínimo mais alto) aparentemente produzidas por crianças diferentes da dupla; todas têm diferenças qualitativas; o vocabulário é pouco específico. As crianças dispõem de muitos cartazes sobre o tema na sala de aula; certamente a parte CABE em CABEZA cabeça) provém da cópia de algum cartaz7.


7Nessa tradução livre optou-se por preservar em espanhol a fala das crianças para não perder a espontaneidade das hipóteses infantis.

No dia seguinte, a docente indagou por que escreveram CUCARACHA (barata); as crianças disseram QUE COMEN cucaracha (que comem barata). Depois de retomarem a consigna, que era escrever partes do corpo, decidiram mudar CUCARACHA por LENGUA (língua):

1. BAUTISTA: La – A (diz e escreve).
2. DOCENTE (ditando): Lengua… lengua…. (sem alargar ou segmentar em sílabas).
3. ERIK: La – L – (sonoriza).
4. DOCENTE: La – L –(sonoriza Erk) La – L – Mostre-me qual é o L.
5. ERIK mostra um cartaz que começa com L.
6. DOCENTE: Muito bem, essa é 0 – L. (Retira-se, ao ser solicitada por outro grupo).
7. BAUTISTA escreve L .
8. ERIK: La – E. (Fica escrito – ALE).
9. BAUTISTA: (indicando com o dedo): luenga, – lengua.

Nota-se que, para além da intervenção da docente, as crianças se concentram nos núcleos vocálicos – E (8) e A (1) – sem nenhuma preocupação com a ordem. A docente faz uma intervenção geral que consiste em remeter-se às fontes de informação (4). Para crianças com níveis distintos de aproximação à escrita essa intervenção pode adquirir diferentes propósitos. Neste caso, podemos pensar que ajuda a manter um repertório cada vez mais amplo de marcas e que talvez contribua para a associação de uma letra a um nome.

Quando a professora volta, lê para eles um fragmento de um texto que havia selecionado: As serpentes constritoras não trituram suas vítimas como se acredita; elas enrolam o corpo ao redor da vítima…). A professora pergunta onde está escrito corpo e os alunos indicam onde escreveram – ESPALDA – (costas). Vocês escreveram – ESPALDA. Como se escreve corpo? Ela se retira novamente ao ser requisitada por outro grupo.

10. BAUTISTA: CUER – CUE, com E.
11. Seguem segmentando oralmente e anotando as letras até que fique escrito OELAO

Novamente aparecem os núcleos vocálicos (E-O), ainda que acompanhados de outras letras não pertinentes.

As demais palavras não foram revisadas com a intervenção da docente, já que ela estava passando por todos os grupos. Podemos dizer que as crianças percebem que há partes na escrita sobre as quais elas podem pensar e às quais se aproximam após várias tentativas e bastante esforço. Aparentemente não levaram isso em conta na primeira produção na mesma aula. No entanto, a retomada da escrita em outro momento e o clima geral que vai se instalando em relação ao “pensar mais” sobre como escrever, parecem favorecer a manifestação, ainda que incipiente, do comportamento analítico das crianças, embora elas não coloquem isso em ação espontaneamente.

A produção resultante dessa aula, cujo propósito central é revisar o vocabulário empregado e não o sistema de escrita, é a seguinte:

Nota-se que a quantidade de marcas está mais controlada e em todas as palavras há vogais pertinentes. Como vemos, apesar de o foco estar na revisão do vocabulário, percebe-se uma mínima reflexão sobre o sistema, isto porque, ao escrever coletivamente, é quase inevitável – e desejável – que isso ocorra. As crianças demonstram seus esforços para compreender a escrita por meio da própria escritura: ao colocarem cada marca sobre o papel é necessário pensar que marca colocar e até onde (quantas) para cada (parte do) enunciado, para além da correção da marca em si do ponto de vista convencional. Assim, falamos também da reflexão sobre o sistema de escrita.

Enquanto isso, Sofia e Daniel, a dupla mais avançada, produzem o texto que se observa na imagem 3.

A produção silábico-alfabética é legível. A professora solicita que releiam o que escreveram. Daniel relê e imediatamente muda GOLA por COLA (rabo). Nesse nível de conceitualização, o simples convite para reler o que escreveram chama a atenção das crianças para a ausência de marcas ou a não pertinência de outras.

A professora, apontando em direção à revisão do vocabulário, propõe que busquem nos livros a parte correspondente ao que escreveram PLO (pelo) para verificarem se realmente se chama assim ou se tem outro nome (mais especificamente, são bigotes (bigodes). Para isso, a professora leu uma passagem selecionada previamente. Sofia corrige e muda PLO para BIGOTES sem verbalização alguma. Em seguida, Sofia relê PATA. A professora lê uma passagem em que destaca a diferença entre “patas delanteras” (patas dianteiras) e “traseras”: (traseiras) son dos patas delanteras… (são duas patas dianteiras). Sofia interrompe com um gesto e acrescenta PATA RASRAS (patas traseras) (patas traseiras). Ela apaga o que estava escrito fazendo um novo traço sobre a escrita de anterior PATA e acrescenta PATASDELAMTERAS (patas delanteras).

A imagem 4 é a produção resultante.

Na aula seguinte, volta-se à produção anterior, mas agora a intenção da professora é que e atenham sobre quantas letras colocar, quais e em que ordem. É nesse momento que a reflexão sobre o sistema torna-se mais evidente. Com a primeira dupla, se atém sobre a escrita de ALE (lengua) (língua):

12. DOCENTE: O que colocaram aí?
13. BAUTISTA: lengua (observando fixamente).
14. DOCENTE: Com o que termina lengua?
15. ERIK: Lengua, LENGUUUAAA, len-guaa, gua… com a termina…
16. DOCENTE: Vamos ver, observem como colocaram (assinalando) termina com a?
17. BAUTISTA, com a concordância de Erik, risca o A inicial e acrescenta ao final. Ficou LEA.

Perguntar com qual letra a palavra começa ou termina (14) ajuda a pensar que essa é uma parte diferente da demais. Erik se esforça para distinguir essa parte (15) e imediatamente a docente recupera o que foi produzido (16) e, em seguida, diz que a parte isolada na oralidade não aparece na mesma posição na escrita. A mudança de posição da letra A com a qual as crianças parecem concordar (17) não necessariamente supõe que podem colocar as partes correspondentes da emissão oral com as partes da cadeia gráfica de maneira sistemática; no entanto, para essas crianças, começa a ser evidente que elas precisam estar atentas a isso no momento da escrita.

Em outro instante, sobre a OELAO (cuerpo) (corpo):

18. DOCENTE: O que colocaram aí?
19. ALUNOS: Cuerpo.
20. DOCENTE: Bom, olhem, aqui coloco Cuervos (corvos), cuero (couro), cuesta (colina)… (escreve com maiúscula de imprensa) Cuerpo tem alguma semelhança com cuervo, cuero, cuesta?
21. ALUNO: CU…cu …cu…
22. ALUNO: a – u, a – u.
23. TODOS: A – u, a – u.
24. DOCENTE: se a – u – está em cuerpo. Vocês a colocaram?
25. ALUNO (observa): Não…
26. DOCENTE: Vou ajudá-los. Aqui estão todas as de cuerpo (entrega letras móveis com todas as letras de CUERPO.) Tentem colocá-las na ordem correta para a palavra cuerpo e depois revejam o que escreveram.

Aqui a docente escolhe começar pela reflexão sobre o valor sonoro convencional inicial. Entrega informações indiretamente – fornece palavras escritas que começam da mesma maneira – e da forma mais assimilável possível para essas crianças que estão apenas começando a estabelecer alguma relação entre emissão oral e notação gráfica – as palavras propostas começam exatamente com a mesma sílaba (20). O que tomam das sílabas escolhidas fica a critério das crianças, que naturalmente se inclinam sobre o núcleo vocálico (23), e a docente valida e imediatamente os convida a comparar as recentes descobertas com o que haviam escrito. (24) A ajuda que lhes propõe é um recurso muito utilizado nas aulas e que, nos últimos anos, foi testada experimentalmente em crianças com nível de língua escrita quase alfabéticos (Zamudio,2008). Ao entregar todas as letras da palavra não é necessário pensar quantas e quais formam, apenas decidir a ordem. Apesar de essas crianças não manifestarem ainda tal nível de escrita, a intervenção é produtiva. A ordem também é um problema para quem ainda não a vincula sistematicamente a escrita com a oralidade. A produção das crianças é mais próxima à convencional, mas, nem por isso, correta. (A produção resultante é UEPO para cuerpo).

É importante advertir que em C riscam a escrita anterior – como na primeira revisão –, enquanto que em B mudam as extremidades os e em A, ainda que tenhamos o registro sobre o modo de produção das modificações, conseguem uma escrita quase alfabética por recomposição interna das partes. Esse último trabalho de reflexão, que desenvolvem sem a assistência da docente, nos faz pensar que não se trata de uma cadeia gráfica, cujo único requisito é a presença dos núcleos vocálicos (que poderiam ter sido acrescentados nas extremidades).

Sofia e Daniel também fazem o seu trabalho. Mas a intervenção da docente é bem distinta. A respeito da escrita de PATARASRAS (patas traseras), ajuda a refletir sobre a composição da sílaba complexa.

27. DOCENTE: Onde colocaram traseras?
28. Os alunos mostram.
29. DOCENTE: Olhem, aqui escrevo. (Verbaliza o que vai escrevendo em duas colunas, lentamente, sem segmentação nem prolongamento.) TRÁFICO, RAMA, TRABAJO (trabalho), RAMIRO, TRAJE, RANA Rã. Como é traseras, como é traje ou como é rana? (Sinalizando de baixo para cima a silaba inicial de ambas as colunas).
30. Sofia acrescenta um T diante de RASRAS sem verbalizar).
31. DOCENTE: Enquanto eu ajudo as outras crianças, Sofia explica ao Daniel por que acrescentou esse T. (Distancia-se.)
32. Não há registro desse intercâmbio, mas na escrita de TRÁFICO, RAMA, TRABAJO, RAMIRO, TRAJE, RANA há marcas de lápis de ambas as crianças sinalizando partes diferentes.

A ajuda da docente, como no exemplo [20] acima, consiste em fornecer informação indireta. O que muda é que a docente interpreta de maneira diferente o problema que as crianças enfrentam: Elas já escrevem alfabeticamente, mas não têm controle suficiente sobre as sílabas não diretas, algo próprio do início dessa conceituação, daí a informação que fornece ser muito precisa e sinaliza para comparar a diferença na escrita entre um início RA e TRA (29). Sofia manifesta uma resposta correta na ação, mas não sabemos o que pensa (30). Daniel olha o que faz sua companheira. Requisitada por outro grupo, a docente se afasta, mas pede a Sofia que explique ao Daniel. O vestígio que temos de que ambas as crianças refletiram juntas são as marcas na escrita da docente já que, com ambos os lápis, circundaram e sublinharam partes dessas palavras.

Sobre PATASDELANTERAS, a intervenção indica a separação entre as palavras. A docente faz três intervenções sucessivas para ajudar a dupla a separar partes da escrita que ainda produzem de maneira contínua.

1. Quantas coisas escrevo quando digo PATAS DELANTERAS, indica ao distinguir que ao escrever há partes.
2. Sinalizando o texto, diz: PATAS DELANTERAS, PATAS TRASERAS, PATAS COLORIDAS, PATAS SUAVECITAS, e, com isso, sugere mudar o modificador do núcleo nominal para advertir que se trata de duas partes relacionadas, não necessariamente contínuas.
3. “Posso escrever PATAS sem escrever DELANTERAS? Posso escrever PATAS sem escrever TRASERAS? Posso escrever DELANTERAS sem escrever PATAS?”, indicando assim a possibilidade de escritura independente das partes.

Nas duas primeiras intervenções, as crianças ficaram em silêncio. Somente na terceira intervenção elas se apropriaram do problema e encontraram uma resposta que, neste caso, é correta. Por último, a docente convidou os pequenos a revisarem a epígrafe e a reutilizarem a descoberta nessa parte da produção.

A imagem 6 ilustra o resultado da escrita.
Ambas as crianças avançaram na análise das sílabas complexas e na separação entre palavras que, nesse momento, indicam marcas não pertinentes, tais como produzir tracejado no lugar dos espaços e introduzir espaços suporia uma reescrita completa.

Algumas conclusões sobre a análise da ação

♦ A intervenção na aula se caracteriza por uma complexidade particular: não é possível intervir sobre tudo nem com todos. Por isso, a intervenção tem de ser planejada: foram selecionados os problemas mais relevantes para cada produção e considerados cuidadosamente todos os modos de proceder, levando em conta também que as intervenções oportunas são diferentes para as crianças com conceitualizações distintas.

♦ Quando as crianças escrevem por elas mesmas têm a oportunidade de exercitar suas conceitualizações sobre a escrita e de se deparar com novos problemas que os ajudam a avançar como escritores. Não obstante, a intervenção da professora para provocar reflexões sobre o sistema parece crucial para a maioria das crianças, sobretudo para os menos avançados, que parecem não produzir em suas primeiras tentativas o máximo de suas possibilidades conceituais.

♦ As situações em que as crianças escrevem por si mesmas estão organizadas em relação a outras situações didáticas que permitem ter mais claro e disponível o conteúdo e a forma do discurso para poder concentrar-se nas marcas produzidas para cada enunciado. Nesse sentido, a intervenção da docente, que sempre supõe uma releitura e revisão do que é produzido, é feita em duas etapas: na primeira, esclarece o conteúdo por meio do ajuste do vocabulário; na segunda, quando o enunciado produzido é conhecido, concentra-se no sistema da escrita. Esse modo de intervenção em duas etapas demonstrou ser mais produtivo se comparado ao trabalho feito em uma única vez sobre o sistema e a linguagem que se escreve. Conceber que a reflexão sobre as unidades menores da escrita – palavras e letras – e sua relação com a oralidade podem resultar de reflexão progressiva do aluno, com vistas ao engajamento nas situações propostas pela docente com intervenções específicas para propiciá-la, é um princípio básico do ensino a partir da perspectiva construtivista no sentido estrito que assume a teoria psicogenética de aquisição da escrita como disciplina de referência. A postura não só se pauta pelas razões psicológicas, mas também pela concepção mesma da escrita, quando não a considera um reflexo da oralidade.

Nas palavras de Ferreiro8:

O que estamos propondo, para o aprendiz que é falante de uma língua com uma representação alfabética da mesma, é um processo dialético em múltiplos níveis onde para começar, o objeto língua não está dado. Esse objeto deve ser construído num processo de objetivação, processo no qual a escrita fornece um ponto de apoio para a reflexão. Tão pouco as unidades de análise estão dadas, elas se redefinem continuamente, até corresponder (aproximadamente) com as que definem o sistema de representação.


8Emília Ferreiro em: Relaciones de (in)dependencia entre oralidad y escritura. Vol.21. Madrid. Gedison, 2002.
Posted in Revista Avisa lá #66.