Observar para ver e compreender

FLAVIANA OLIVEIRA DE CARVALHO E LANA MARIA VIEIRA ZUZA¹


SABER COMO AS CRIANÇAS PENSAM E CONSTROEM CONHECIMENTOS É UMA COMPETÊNCIA ESSENCIAL PARA OS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO INFANTIL


Assumindo o papel de formadoras dos gestores (coordenadores pedagógicos e diretores), inserimos em nossa rotina o
acompanhamento presencial nas escolas. Nossos objetivos são muito claros: observar o trabalho que está sendo realizado com foco nas aprendizagens das crianças. É a partir destas observações e registros das impressões em diários de campo que elegemos o que é importante trabalhar com a dupla gestora, bem como apoiá-las no acompanhamento do trabalho do professor.

Além da observação e do registro em diários de campo, também nos utilizamos das reflexões dos profissionais envolvidos – gestores e professores – por meio de seus escritos reflexivos. Desta maneira, congregamos tanto a observação como
a escuta de dúvidas e reflexões daqueles que estão na escola, na construção de pautas atreladas às necessidades formativas da equipe escolar.


1 Flaviana e Lana são técnicas da Secretaria de Educação de Imperatriz (MA).

Reconhecendo a importância da brincadeira de faz de conta na rotina da Educação Infantil, o registro de observação aqui apresentado procurou enfatizar a organização do espaço escolar para a brincadeira, as intervenções do professor e os enredos criados pelas crianças. Assim, muitos elementos foram levantados para serem discutidos com os gestores e professores, de forma a favorecer cada vez mais uma experiência rica para o faz de conta das crianças.

Organizando o ambiente

São 15h e a professora Sara e sua auxiliar Joedna propõem às crianças do 2o período (5 anos) brincadeiras nos cantos de atividades diversificadas². Ela pega as caixas na bancada e vai distribuindo ao longo da sala. Em um conjunto de mesinhas põe dois circuitos feitos em papelão e uma caixa escrita “carrinhos”. Em outro canto, põe uns monitores e teclados de computador em desuso, telefones velhos e de brinquedo, blocos de papel, canetas, lápis e uma máquina de passar cartão de crédito de brinquedo. Noutro conjunto de mesinhas põe diversos blocos de encaixe. Há um canto de médico com vários brinquedos (seringas, aventais, frascos de remédio etc.) e um canto de casinha com móveis e utensílios.

As crianças se distribuem em cantos de sua preferência e começam a brincadeira.

Os enredos

É possível ver um menino que rapidamente monta uma metralhadora com os blocos e que atira em direção às crianças que estão no canto de escritório. De lá, Isaac pega o telefone e disca, enquanto rabisca num bloco de papel:

– Alô, é da polícia?
Wesley ao lado responde:
– É!
– Manda polícia aqui porque tem um bandido no meu escritório.
– Já vou! Tchau!
– Tchau!

Ambos desligam o telefone e logo repetem o chamado, revezando quem é a polícia e quem é o dono do escritório.


2 Os cantos de atividades diversificadas são uma modalidade de organização do tempo e espaço escolar que oferece várias possibilidades de escolha de atividades para as crianças, que, desta forma, exercem sua autonomia. Em geral, as atividades oferecidas são: jogo simbólico, jogos de mesa, canto de leitura, atividades plásticas, jogos de montar etc.

Incluindo o adulto

Na outra extremidade da sala, há um grupo de quatro meninas brincando de casinha. Ana Júlia, enquanto arruma uma cestinha de piquenique, chama as colegas, que embalam bonecas, a irem ao Rio. Elas se abaixam ao lado do fogão e Ana diz:

– Chegamos!
Elas tiram da cestinha os utensílios que levaram e Ana Júlia corre até a observadora:
– Tia, sabia que eu vou embora para o Rio?
Geovanna se aproxima:
– É! Nós vamos para o Rio de Janeiro.
As duas voltam para o lugar onde estavam e seguem com a brincadeira.
Ana Júlia volta a interagir comigo e aponta para um tapete à entrada da casinha:
– Olha o nosso tapete como é lindo!

Concordo que sim e ela corre para junto das colegas. Pega a boneca em cima da mesa e a embala. Há duas bonecas brancas e duas bonecas negras. As meninas distribuem as bonecas entre si e Eduarda diz:

– Essa é tua neném. Essa é minha. Essa é tua e essa é tua.

Raykelle está sentada no colchonete e Ana Júlia pede que se levante porque é hora de dormir com a sua neném. Ângela levanta sem questionar, enquanto Ana Júlia e Geovanna se deitam com as bonecas.

– Vamos dormir que amanhã tem reunião na escola da nossa filha.

Raykelle pergunta onde vai deitar já que no colchonete não há espaço para ela. Ana Júlia aponta para o tapete na entrada da casinha:

– Olha ali, ó! A caminha nova que eu comprei para a sua neném! Pega lá!

Raykelle pega o tapete que agora é cama e deita a sua boneca, acalentando-a. Rapidamente se levantam:
– Amanheceu! Vamos para a escola!

As quatro meninas vão até onde há duas cadeirinhas e sentam as bonecas. Logo Ana Júlia constata:
– Ah… precisa de mais cadeirinhas para ser uma escola…

Desistem da ideia da escola e voltam para o colchonete.

Um instante depois Ana Júlia diz que vai levar sua neném à “doutora”. Encaminha-se para o canto de médico, embalando sua boneca. Entrega sua filha à colega que está fantasiada de médica e diz:
– Doutora, minha filha tá doente. Cuida dela!

Sai do canto e fala mais uma vez com a observadora:
– Tia, sabia que a minha neném está muito doente? Eu levei ela pra doutora.
– É mesmo? Puxa… que pena! O que ela sente?
– Tá com febre muito alta. Já fiz de tudo e a febre dessa menina não passa!

Ana Júlia volta para o canto de médico e diz para Kaline:
– Doutora, já deu remédio para a minha filha?
– Sim, agora vou aplicar uma injeção. – Enquanto suga com a seringa dentro de um frasco de remédio.
– Não! Não fura minha neném… Ela toma remédio desse aqui ó. – Pega a seringa e põe na boca.

A colega concorda e põe a seringa na boca da boneca.

Ana Júlia pega sua boneca e volta para a casinha.

Imitação e representação

As crianças transitam livremente entre os cantos e vez ou outra algum conflito surge. A professora observa e intervém quando julga necessário. Um menino se queixa que quer brincar de escritório, mas a professora convence-o a aguardar os colegas que estão ocupando os computadores terminarem de brincar. Oferece a possibilidade de brincar com os carrinhos que não tem ninguém. O menino concorda e a auxiliar senta com ele para brincar.

Já se passaram 20 minutos e as crianças começam a trocar de cantos. Agora, as meninas que embalavam as bonecas são as médicas e as que desempenhavam esse papel, agora estão na casinha preparando mamadeiras no fogão para seus bebês. Agora há um menino brincando e é o papai. Deita com a boneca sobre si e faz carinho no rosto, eleva a boneca e abaixa próximo a seu rosto, beija e afaga.

Nas cenas narradas percebemos que as crianças representam o real em suas brincadeiras.
♦ Quem ensinou a Ana que se deve acalentar um bebê?
♦ Quem ensinou ao menino que se deve afagar e beijar o bebê?
♦ Quem disse que quando se está em perigo de ser assaltado, deve-se ligar para a polícia?

A brincadeira de faz de conta para a criança é o meio pelo qual ela tem a possibilidade de se apropriar daquilo que ainda não pode viver na realidade. Vigotski chama essa necessidade infantil de “tendência não-realizável imediatamente”.

Na idade pré-escolar, surgem necessidades específicas, impulsos específicos que são muito importantes para o desenvolvimento da criança e que conduzem diretamente à brincadeira. Isso ocorre porque, na criança dessa idade, emerge uma série de tendências irrealizáveis, de desejos não-realizáveis imediatamente (VIGOTSKI, 2008, p.25).


3 Em Jogos de papéis: um olhar para as brincadeiras infantis. São Paulo: Cortez, 2011. p. 97.

O teórico ainda destaca a importância da brincadeira para o desenvolvimento psíquico da criança, pois com ela aprende a ter consciência de suas próprias ações e do significado dos objetos, além de representar um caminho para o desenvolvimento do pensamento abstrato. Segundo ele, embora a brincadeira com situação imaginária se diferencie do jogo de regras, tem suas próprias regras. Citando a pesquisa de Piaget, complementa: “A criança fala a si mesma: tenho que me comportar assim e assim nessa brincadeira. Isso é totalmente diferente de quando lhe dizem que pode fazer isso e não pode fazer aquilo” (idem, p. 29). É nesse sentido que a criança representa os muitos papéis sociais e cria enredos e neles atua.

Os enredos se fundem e complementam, num constante jogo de faz de conta. Interessante notar como as crianças transitam de um canto para o outro e conseguem articular os diversos contextos ali retratados.

De acordo com Zilma Ramos de Oliveira³:
As crianças reproduzem as posturas, expressões e verbalizações que ocorrem no ambiente, mediadas pelos parceiros, que atuam como suporte para suas ações, e por brinquedos cujas características culturalmente atribuídas lhes possibilitam a recriação de experiências passadas na situação.

Em cada enredo, os parceiros e objetos servem de apoio para as brincadeiras. As crianças interagem com fidedignidade ao papel que representam. Se é um bandido, as expressões faciais, a voz e o movimentos correspondem a tal. Quando se é um policial, uma mãe ou médica, as crianças empregam todos os recursos para que de fato se pareçam com policiais, mães ou médicas.

Na cena do tapete, em que ora é um tapete, ora é uma caminha de bebê, é possível percebermos que “os objetos são significados pelos gestos infantis que, de modo cuidadoso, servem de suporte para a criança trazer para o presente algumas cenas cotidianas”4.

E depois do registro?

O primeiro ganho que tivemos ao realizar esse registro foi o reconhecimento de que as crianças sabem muitas coisas que sequer imaginávamos. Como estão atentas ao cotidiano, àquilo que as circunda e estão inteiras no contexto de faz de
conta, lançando mão de tudo o que sabem sobre determinadas situações. Este é um saber que acreditamos ser importante compartilhar com os gestores e professores, não só porque é importante que todos acreditem nas capacidades das crianças, mas também porque, ao conhecer como brincar, poderão incluir preferências e modos do brincar infantil nos planejamentos dos cantos.

Por falar nisso, também observamos que os cenários e objetivos funcionam não só como estímulo e convite para a brincadeira, mas tornam-se elementos fundamentais para o incremento de enredos. Isto só reforça a nossa ideia inicial da importância do planejamento para o brincar, considerando que as crianças precisam de objetos que convoquem diferentes usos e apropriações. Também é fundamental que as crianças tenham tempo para brincar. Afinal, foi só depois dos primeiros vinte minutos da atividade de cantos diversificados que aconteceu a primeira troca de brincadeiras e cantos.

Outro aspecto importante a ser ressaltado é a autonomia das crianças. No entanto, esta autonomia é possível pela própria organização do espaço, com cuidado para que todos os cantos sejam atraentes e bem planejados. O papel do professor acabou sendo apenas o de organizador da atividade. As crianças não precisaram de mais nada. Até porque a intervenção indireta do professor já tinha sido feita na organização de um espaço apropriado ao brincar.


4 Idem, p.103.
Posted in Revista Avisa lá #64.