Sentido e significado no trabalho com a matemática

DEBORA RANA E CAMILLA SCHIAVO¹


O TRABALHO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL EXIGE UM BOM DIAGNÓSTICO E CLAREZA NA CONCEPÇÃO DESSA ÁREA DE CONHECIMENTO


As crianças, desde a mais tenra idade, são naturalmente curiosas e ávidas pelo conhecimento: indagam, formulam hipóteses, apresentam ideias sobre o mundo. Diante dessas características, como propor um ensino da Matemática, nas classes de Educação Infantil, que considere as especificidades dessa fase do desenvolvimento e permita que as crianças explicitem hipóteses e conhecimentos? O que significa ensinar Matemática nas classes de Educação Infantil? Como dar mais sentido e significado aos conteúdos matemáticos para crianças pequenas? Quais são as práticas que precisam ser ressignificadas?


1 Formadoras do Instituto Avisa Lá. Débora Rana é psicóloga, mestre em educação e currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá, coordenadora pedagógica de Educação Infantil da Escola Projeto Vida. Camilla Schiavo é Mestre em Educação Matemática pela USP, Formadora da Fundação Víctor Civita/Revista Nova Escola e assessora pedagógica da rede pública e privada.

Essas são algumas questões que o programa Formar em Rede Matemática (FER MATEMÁTICA)² tem buscado discutir, com base na análise de práticas, de boas referências teóricas e pesquisas didáticas recentes. Para ilustrar o artigo serão usados trechos de relatórios de vários municípios que participaram do programa.

O trabalho com a Matemática nem sempre é o que mais recebe atenção no currículo da Educação Infantil, mas depois da publicação do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI)³, cada um, a seu modo, passou a incluir propostas para os alunos com base em seus próprios entendimentos.

Acreditando que há uma diversidade muito grande a respeito do que vem a ser uma boa proposta de trabalho nessa área de conhecimento, iniciamos o programa com um diagnóstico de cada município participante4 que tem por objetivo nos ajudar a construir um mapa das práticas existentes a partir das quais vamos organizar os nossos estudos.

O diagnóstico

Esse é um momento importante que evidencia o que é realizado pela rede e possibilita que todo o grupo em formação tenha visível um problema sobre o qual se debruçarão na perspectiva de transformá-lo. É um instrumento que, em sua essência, foca o olhar do observador para a concepção de ensino e de aprendizagem que sustenta o trabalho de Matemática.

♦ As questões que sempre aparecem no diagnóstico inicial sobre as práticas da rede têm sido:
♦ Ensino dos números, um de cada vez.
♦ Tarefas impressas vazias de desafios.
♦ Treino de números oral ou escrito.
♦ Propostas para associar o número à quantidade de elementos (como condição para que as crianças possam adquirir a noção de número).
♦ Trabalho com cores como conteúdo matemático.
♦ Propostas que envolvem percorrer sobre um número grafado no chão da sala.
♦ Colagem sobre os números utilizando bolinhas de papel crepom e/ou pedaços de EVA.
♦ Ideia de que concreto e abstrato são dissociáveis entre si e que é necessária a utilização de materiais concretos para preparar a criança para o conhecimento abstrato.
♦ Não se leva em conta o conhecimento social do número pela criança.
♦ O trabalho da Matemática é voltado para a classificação, seriação, conservação e cores.
♦ O jogo não aparece nas salas de Educação Infantil, considerando que esse tipo de atividade causa muito transtorno.
♦ Concepção arraigada de que as crianças aprendem por memorização, associação e repetição.
♦ Crença de que as crianças aprendem prioritariamente os conteúdos de Matemática por meio de músicas e brincadeiras.
♦ Situações de contagem de forma descontextualizada sem relação com o uso social.

Com base no diagnóstico, a proposta é que o grupo possa se formar, aprofundando-se nas teorias sobre a didática da Matemática e em seus conteúdos específicos: Sistema de numeração (Sucessão numérica oral e escrita numérica) e Números (para memorizar e comparar quantidades, posições e fazer cálculos). Construir novos observáveis sobre as práticas e, a partir disso, responsabilizar-se pela formação dos professores de suas escolas.


2 Programa de formação a distância do Instituto Avisa Lá, desde 2010, do qual já participaram 12 municípios. Um de seus objetivos é instaurar novas reflexões, compartilhar experiências, ampliar o repertório e impactar o trabalho das redes nesta área do conhecimento. O programa se responsabiliza pela formação da equipe técnica da Secretaria da Educação, com foco nos coordenadores pedagógicos da rede, responsáveis por realizar a formação dos professores em suas respectivas escolas, de modo que os conteúdos tratados cheguem na “ponta”, ou seja, nas salas de aula, e incidam sobre as aprendizagens das crianças.
3 Brasil. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a educação infantil / Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998.
4 Na edição de 2014, participaram os municípios América Dourada (BA) e Colinas do Tocantins (TO) que, como todos os municípios, começaram a partir de um diagnóstico inicial das práticas ali realizadas como orientador da formação.

Trecho do relatório do primeiro encontro de Colinas do Tocantins

Após realizar o diagnóstico com os professores, o grupo de Coordenadores Pedagógicos e a equipe de formadoras locais se reuniram para construir um panorama da rede por meio de duas perguntas: Quais são as práticas de ensino da Matemática em sua instituição? De que maneira elas contribuem para a aprendizagem?

Cada unidade socializou o resultado do diagnóstico que realizou com as professoras tornando observáveis as práticas correntes de ensino da Matemática na visão dos professores. Dessa forma, todos os participantes tiveram a visão do que a rede produz em Matemática. Após essa primeira parte de análise dos dados do diagnóstico, propusemos a leitura compartilhada e socialização coletiva do texto “Presença da Matemática na Educação Infantil: ideias e práticas correntes”5 e propusemos uma socialização coletiva.

Durante a leitura e sistematização das ideias do texto, percebemos inquietações por parte de todas. Estariam os RCNEIs criticando as práticas atuais na Educação Infantil?

O município de América Dourada (BA) também realizou a mesma discussão com base no diagnóstico das práticas da rede e propôs uma reflexão sobre as práticas que contribuem e que não contribuem com a aprendizagem da Matemática.

Trecho do relatório de América Dourada

Depois da leitura do texto e discussão em duplas, percebi que alguns não tinham muita clareza sobre certos tipos de atividades. Questionei se sabiam o que significavam as situações didáticas. Em seguida, abrimos uma nova discussão, retomando o que havia sido registrado no primeiro momento. Nesse instante, relataram que haveriam percebido que algumas atividades não aconteciam na escola, conforme registraram no diagnóstico, por exemplo, o registro de quantidades de acordo com as hipóteses das crianças. Após essa discussão, construímos o seguinte quadro:

A leitura do texto foi fundamental para que percebessem algumas práticas equivocadas que ainda existem nas salas de aula. Foi possível identificar outro nível de reflexão sobre o que se faz e com qual finalidade. Durante a discussão, solicitei que analisassem a tabulação das respostas do anexo 2 do diagnóstico, baseados nos conhecimentos construídos durante o encontro, para que observassem o que foi respondido anteriormente. Durante a análise, logo perceberam que haviam marcado algumas questões de forma equivocada, e muitas delas por unanimidade.

O início da formação

Essa primeira etapa do programa ganha força na medida em que as práticas vigentes no município, colocadas em evidência, são discutidas à luz de novas possibilidades e contextualizadas dentro das respectivas concepções de ensino, de aprendizagem e de crianças. É com essas reflexões que o grupo passa a acreditar nas novas propostas.

Num projeto de formação, a etapa de diagnóstico é muito importante, não se desenvolve uma formação sem que o grupo envolvido tenha muito clara a necessidade formativa, é imprescindível que o grupo reconheça que é preciso reunir um esforço de estudo para avançarem no trabalho com determinado conteúdo. Sem isso, o estudo fica sem sentido e não reverbera nas práticas. No nosso caso, analisar a própria prática, perguntar-se sobre o que se faz e atribuir sentido ao que faz é condição para que o grupo possa olhar para outras concepções e, assim, reconhecer as diferenças entre o trabalho realizado e o proposto. Embora seja uma etapa preliminar, o diagnóstico já é uma etapa formativa, pois traz o desafio para toda a equipe reconhecer o que faz e localizar em qual concepção está apoiada.

Os encontros de formação são organizados tendo como apoio os conteúdos previstos no programa e o resultado do diagnóstico, considerando a especificidade e as singularidades do sujeito da formação.

Discutir uma concepção de trabalho não é uma tarefa simples e só se torna possível quando podemos criar espaços de reflexão e tematização da prática, como fizeram os municípios participantes do programa.


5 Trecho do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI).

Trecho do relatório de América Dourada

No segundo momento, dividimos os participantes em trios para estudarem o texto “Desenho Curricular de Buenos Aires para a Educação Inicial para crianças de 4 e 5 anos”, e elencarem os conteúdos e as práticas.

Durante a socialização, ficou perceptível como as práticas presentes no município, tanto no Ensino Fundamental I como na Educação Infantil, estavam distantes do que propõe o documento, principalmente no que diz respeito ao uso de jogos e problemas formulados a partir de situações cotidianas.

Os dados coletados no diagnóstico inicial, além de nortearem o projeto de formação, são compartilhados com os coordenadores pedagógicos de modo que os problemas identificados se convertam em conteúdos formativos e sejam assumidos por todos como um trabalho coletivo, colaborativo e que proporcione a ressignificação das práticas nas salas de aula.

A seguir, destacamos discussões importantes desse projeto e que revelam a relação existente entre o diagnóstico e o processo formativo.

Trecho do relatório de Colinas do Tocantins

Neste encontro, abordaremos a comparação de quantidades por meio da análise de alguns jogos e o papel destes recursos no ensino da Matemática. Seguimos com a apresentação dos objetivos a ser alcançados neste encontro de formação:

♦ Discutir como a prática de jogos pode se transformar em um recurso potente para favorecer a aprendizagem das crianças em Matemática.
♦ Analisar quais estratégias as crianças usam para comparar quantidades.

Trecho do relatório de Colinas do Tocantins

Prosseguindo, compartilhamos as questões apontadas pela consultora no 3º encontro de formação. Quando ressaltamos no registro que muitas professoras não acreditam na capacidade da criança, são impacientes e não permitem que elas pensem e construam suas hipóteses, ou a consultora comenta que: “A ideia é buscar caminhos junto com os professores, a partir das discussões do programa, para sair de um ensino mais transmissivo e assumir uma postura mais problematizadora”. Nessa hora, Divina, formadora local, indaga às CPs e diretoras o que pensam sobre problematizar? Uma das CPs responde que problematizar é pensar situações em que as crianças pensem para encontrar resposta, indagar. As CPs e diretoras destacaram que as discussões estão acontecendo; as mudanças estão aparecendo, timidamente, mas é o começo de uma longa caminhada de formação e transformação de muitas práticas. As crianças têm tido a oportunidade de refletir mais, pois lhes são oferecidas atividades significativas de Matemática.

Compartilhar resultados

O programa é encerrado com um Seminário online, no qual os municípios compartilham os impactos do trabalho na rede, as mudanças, as novas práticas implementadas e definem focos de investimento para a continuidade das discussões.

Na edição 2014, Colinas do Tocantins e América Dourada relataram como principais contribuições a ressignifi cação dos planos de ensino e dos indicadores de aprendizagem para a avaliação das crianças, a valorização das estratégias que as crianças utilizam para contar e operar, uma melhor compreensão sobre as hipóteses que as crianças apresentam a respeito dos números e do sistema de numeração, mais clareza sobre classificação e seriação como habilidades mentais e não conteúdos matemáticos, o papel dos jogos na aprendizagem da Matemática e a importância de planejá-los, como também a valorização das intervenções do professor.

No que diz respeito à sala de aula também houve mudanças significativas, revelando maior preocupação dos professores em planejar as atividades de forma contextualizada, a presença de cantinhos da Matemática com calendários, tabelas numéricas, coleções, jogos, cartazes dos aniversariantes do dia, em algumas escolas, a redução de atividades xerocopiadas, a ampliação do trabalho com números de diferentes magnitudes e a clareza sobre oportunizar mais e melhores situações para que as crianças pensem e ampliem seus conhecimentos sobre o universo numérico.

Os resultados do FER MATEMÁTICA têm sido expressivos, assegurando às crianças melhores oportunidades, permitindo experiências singulares, bem como a construção de novos sentidos, significados sobre o que pode ser considerado, de fato, aprender Matemática, rompendo com a visão limitada ou equivocada de que isso não faz parte das aprendizagens da Educação Infantil.

Posted in Revista Avisa lá #63.