Revisão e análise de texto bem escrito

THAÍS SINDICE FAZENDA COELHO¹


PARA APERFEIÇOAR A ESCRITA NARRATIVA, ALUNOS REFLETEM SOBRE QUESTÕES DISCURSIVAS


Temos na escola um projeto intitulado Agora é nossa vez… Para ler, imaginar e contar histórias. Seu produto final é um livro que reúne as produções coletivas de todas as turmas de 1º até o 5º ano. Essa coletânea é lançada desde 2009, e a última edição teve destaque na Bienal do Livro de São Paulo, por isso podemos dizer que se trata de um projeto envolvente e que conta com a participação dos alunos.

Os alunos do 3º ano leem o livro Viagem ao centro da Terra, de Júlio Verne, o que desperta neles o interesse por Contos de Aventura e repertoria para a produção coletiva. No entanto, percebemos que era preciso ampliar esse repertório com contos mais breves e bem escritos, que os ajudassem a observar as características e os elementos deste gênero. Além disso, inserimos etapas envolvendo uma reescrita coletiva e reescrita individual.


1 Professora do Colégio Metodista de São Bernardo do Campo (SP), aluna do curso de especialização em Alfabetização no Instituto Superior de Educação Vera Cruz, pós-graduanda em Fundamentos de uma educação para o pensar pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Constatada essa necessidade, fizemos a seleção de algumas histórias do livro Grandes aventuras: 30 histórias reais de coragem e ousadia² e, durante um trimestre, os alunos acompanharam a leitura que fi z em voz alta. Na medida em
que líamos as histórias, construímos dois cartazes que ficaram fixados na parede da sala com descobertas e informações que poderiam nos ajudar no momento de produção: um com os títulos das histórias e outro com as características de um aventureiro.

Depois da leitura, selecionei duas histórias que julguei mais adequadas para uma reescrita, tendo como critérios a forma como estavam escritas. Escolhi as que mais se assemelhavam à estrutura de contos, já que algumas histórias desse livro parecem relatos, as mais curtas e aquelas em que o conflito principal caracterizasse o gênero aventura, de preferência um acontecimento rico em detalhes e expressões.

Por votação dos alunos, ficou decidido que faríamos a reescrita da história do Davy Croquet – Passagem perigosa – e antes de iniciarmos defini com os alunos o contexto da produção: quem seria o leitor, onde circularia, se faríamos o livro. Como primeiro passo para a reescrita, fizemos o planejamento da produção, com os principais episódios da história. Nesse momento, ajudei os alunos a perceberem que havia um episódio importante para a compreensão do leitor e que, no texto original, estava fora da história, aparecia num box lateral e situava o leitor trazendo o contexto. O planejamento foi feito coletivamente na lousa, eu sendo a escriba e os alunos fazendo o registro no caderno.

Em outro dia, antes de iniciarmos a reescrita, retomei os objetivos da atividade e, com o planejamento em mãos, demos início à produção. Assumi o papel de escriba e fiz poucas intervenções, buscando focar apenas nos episódios que precisávamos garantir, deixando os alunos mais à vontade para recontarem da melhor forma que conseguiam. Eles também deram as sugestões de pontuação que marcam o discurso direto.

Ao término da produção, percebi que havia alunos incomodados com algumas partes da história, mas já estavam dispersos e ansiosos para concluí-la. Perguntei então quais problemas eles identificavam de maneira geral e que gostariam de melhorar no momento da revisão. Identificaram a repetição de palavras e o desfecho confuso.

Revisão da primeira versão

Li com calma o texto dos alunos e, com base nos problemas que eles haviam notado, grifei alguns trechos com repetição de palavras. Propus que olhassem para nossa produção e refletissem, tentando perceber quais eram os problemas que eu havia identificado. Expliquei que deveríamos deixar a produção melhor, que esta etapa os ajudaria na produção individual e também na produção da história do livro Agora é a nossa vez…

Durante nossa conversa, alguns alunos mencionaram o problema de repetição de palavras logo de início, enquanto outros dois opinaram que a história estava “normal”, estava boa. A fim de problematizar mais a questão para que todos ficassem realmente incomodados, eu convidei o grupo a decidir se o texto estava bom ou se havia muitas repetições. Assim, alguns alunos foram citando as repetições, convencendo a todos de que era possível melhorar o texto. Na medida em que falavam, eu indicava no computador e, assim, iniciamos a revisão de fato. Combinei que leria parte a parte e quem tivesse uma ideia para melhorar levantaria a mão para que eu parasse e discutíssemos a respeito do que estava sendo proposto. A cada momento surgia um tipo de observação, por exemplo, a necessidade de substituir um pronome por um nome³.


2 Richard Platt. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2013.

Em vários momentos os alunos notavam que era possível retirar algumas palavras sem substituí-las por outras ou substituí-las por pontuações, e eu procurava problematizar voltando o olhar deles para o sentido e a compreensão do leitor, afinal, ao produzir um texto, temos de nos colocar o tempo todo no lugar do leitor.

Antes

Ele precisava ir para a casa do cunhado pegar um barril de pólvora. Só que para isso ele precisava atravessar um rio que estava quase transbordando e muito gelado se ele entrasse no rio ele iria morrer congelado. A mulher de Davy insistiu para que ele não fosse: – Se você for e não voltar, nós vamos morrer de fome do mesmo jeito. As mulheres não podiam caçar e Davy ia levar todas as armas de caça, mas ele ignorou ela e foi atravessar o rio até a casa do cunhado.

Professora: O M. está tentando tirar “o rio” para não repetir muito… o perigo era o quê? Qual era o perigo?

Alunos: Era a correnteza… Era o mar!

P: Sim, parecia um mar…
L: Ali no ele podia por um e.
P: Sim… mas temos de evitar o e também, não temos?! Os alunos estavam bem envolvidos e discutiam bastante entre si sobre quais palavras usar e refletiam sobre o significado que a palavra poderia teria nesse contexto. Então expus e esclareci ao grupo qual era a sugestão de um dos alunos:
P: Era um risco… Mateus está sugerindo que aqui, em vez de iria (como era um risco) devemos colocar poderia. Vamos ver como fica… mas aqui em e muito gelado se entrasse poderia morrer congelado não está esquisito? Parece que está faltando algo.
M: e se entrasse…
J: Só gelado?
R. e outras: Vírgula! Coloca uma vírgula no gelado.
L: Prô, pode tirar esse ele… vai ficar A mulher de Davy insistiu para que não fosse. Enquanto eu digitava, os alunos sugeriram a troca de a mulher por sua mulher, mas na sequência os alunos começaram uma grande discussão em torno de as mulheres não podiam caçar. Essa informação não estava na história original, e muitos estavam incomodados com isso, ficaram inclusive bastante exaltados e começaram a discutir direitos das mulheres! Então fiz uma colocação para que voltassem ao assunto e à revisão:
P: A questão é a seguinte: as mulheres podem caçar se quiserem, mas estamos falando de uma época de 1800 em que se passa essa história, e que realmente as mulheres não tinham a função de sair para caçar. Diferente de hoje em dia. O que temos que pensar é assim: essa informação é importante para nossa história ou não… se ela se encaixa na história ou não.
M:Meu… 1800! Estamos em 2015. Mudou coisa pra caramba!
P: Então querem completar essa informação no texto, que era nessa época?
G: É… coloca nessa época…, porque senão ia ficar estranho.

Depois

Ele precisava ir para a casa do cunhado pegar um barril de pólvora. Só que para isso teria que atravessar um rio que estava quase transbordando e muito gelado, se entrasse poderia morrer congelado.
Sua mulher insistiu para que Davy não fosse: – Se você for e não voltar, nós vamos morrer de fome do mesmo jeito. Nessa época as mulheres não podiam caçar, mas Davy ignorou sua esposa e foi atravessar o rio até a casa do cunhado dele.


3 Construímos um protocolo registrando todas essas passagens e os diálogos na íntegra, porém aqui reproduzimos apenas alguns momentos para ilustrar esse relato.

Em outras situações, instiguei os alunos a encontrarem sinônimos para evitar as repetições.

Antes

Davy precisava de um barco para atravessar o rio, mas não tinha e tinha que atravessar o rio e enfrentar as correntezas e o frio. Ele observou uma árvore numa ilhota e cortou o galho maior e colocou no meio do tronco e se pendurou no galho para não cair no rio e foi atravessando até ele sentir uma tora e se equilibrou nela com os pés.

L: Nossa… pelo amor de Deus! Tinha e tinha!
P: Qual palavra podemos colocar aqui… qual é sinônimo de tinha?
V: Deixa esse primeiro tinha e tira outro.
L: Põe uma vírgula.
Outros: Tira essa parte atravessar o rio.
M: e precisava.
P: Mas vai ficar precisava de novo… alguém lembra de alguma palavra para colocar no lugar de precisava, para não repetir?
A: Teria!
S: Tem que colocar Davy no lugar de ele observou.
P: Mas o que vai acontecer se eu colocar outro Davy aqui?
L: 1, 2, 3, 4, 5… muito Davy!
P: Muitas vezes, nós podemos usar palavras que falam da pessoa sem dizer o nome dela. Por exemplo, na Chapeuzinho nós usamos a menina… para o lobo podemos usar feroz…nesse caso do Davy o que ele é? O que podemos falar sobre ele?
M: Aventureiro!
V: Corajoso!
P: Agora, Vitória, é aquela parte dos es que você estava incomodada… Como podemos melhorar? Esse é o nosso foco de hoje… melhorar essas palavras repetidas!
G: Coloca assim: observou uma árvore numa ilhota cortou o galho maior colocou no meio do tronco e pendurou-se.
P: Certo… tiro esse e cortou… mas o que coloco aqui? Uma vírgula? Ponto?
G: Vírgula!

Depois

Davy precisava de um barco para chegar do outro lado da margem, mas não tinha, teria que enfrentar as correntezas e o frio.

O corajoso aventureiro observou uma árvore numa ilhota, cortou o galho maior, colocou-o no meio do tronco para se pendurar e não cair no rio e foi atravessando até sentir uma tora e equilibrou-se nela com os pés. Davy caiu na água, mas já estava perto da margem. Nadou, e nadou até terra firme, finalmente chegou na casa do cunhado e conseguiu o barril de pólvora.

Análise de um texto bem escrito

Ainda que o texto coletivo estivesse melhor quando comparado à primeira versão, havia um problema importante a ser resolvido: o texto não continha elementos nem linguagem adequada ao gênero aventura. Para que os alunos pudessem perceber tais características, propus a análise do texto original, retomando nossos objetivos e contexto de produção.

Analisamos também os cartazes que elaboramos para relembrar algumas coisas que fomos descobrindo, e assim amplia-los.

P: Digam quais características uma história tem de ter para ser considerada aventura.
As crianças foram falando e a professora anotando na lousa: Emoção, ação, perigo, suspense, tensão, desafio.
P: Muito bem! Legal! Concordo com vocês! Então hoje nós vamos nos debruçar sobre o texto original da Passagem perigosa, e, em dupla, vocês vão buscar por expressões ou palavras que dão essa sensação de emoção, perigo, ação… ou suspense, tensão… Pode ser que vocês encontrem uma passagem que dê essa impressão quando lê, ou uma palavra apenas. Discutam com seu colega e vão grifando. Depois vamos compartilhar o que vocês encontraram, tá?
Leonardo e Gabriel conversavam entre si:
L: Abateu oito ursos. Hum… abateu é tipo matou ou morreu… Você acha que abateu a gente tem que grifar como ação, ou não?
G: É, eu acho que é uma boa.
L: No começo do inverno abateu oito ursos.
G: E muitos animais, grifa também.
Milena e Rafaela estavam lendo juntas em voz alta sem grifar nada. Professora se aproxima e acompanha a leitura.
P: Rafa, lê de novo essa parte…
R: Afundando os pés na neve, praticamente se arrastou até o rio…
P: O que vocês imaginam quando leem essa parte? Que sensação que dá?
R: (fazendo careta) Ah… frio.
M: Uma sensação de perigo.
P: De frio… de perigo! Dá a sensação, então, que está difícil dele passar… por quê? Que parte, que palavras ele usou que deu essa sensação em vocês? Elas leem de novo em voz alta.
R: Ah, se arrastando e no frio! Acho que seria… parece que a gente se gelasse!
P: Então vamos grifar essa parte que vocês tiveram essa sensação de frio. Na nossa história nós nem contamos desse caminho dele até o rio… nós dissemos logo que ele chegou no rio. Vocês acham que contar essa parte desse jeito que o autor fez faz diferença?
M: Ah faz… porque dá mais sensação de frio e difícil…

Depois disso, em dupla, buscaram expressões ou palavras que dessem a impressão de emoção e aventura.

Foram muitas as descobertas que completaram o cartaz que poderia nos ajudar no momento da revisão final e da produção individual.

Expressões e palavras

♦ Implorou
♦ Afundou os pés
♦ Se arrastou
♦ Torrente agitada
♦ Respirou fundo
♦ Impacto
♦ Ansioso
♦ Difícil travessia
♦ Frio terrível
♦ Se descuidou
♦ Forquilha
♦ No entanto
♦ Minutos que pareciam intermináveis
♦ Com cuidado
♦ Submerso
♦ Fatalmente morreria
♦ Apalpou
♦ Miraculosamente
♦ Manter o equilíbrio
♦ Respiração suspensa
♦ Cerrando os dentes

Os alunos tinham o cartaz com as expressões fixado na lousa e foram dando sugestões no texto coletivo, que estava disponível no telão. Fui acrescentando as sugestões e intermediando as reflexões, com o foco nos elementos característicos do gênero aventura e, novamente, colocando-os no lugar do leitor, nas sensações que gostaríamos de provocar. Foram muitas as expressões e elementos característicos do gênero aventura que os alunos inseriram na produção coletiva.

Produção individual

Após esse trabalho intenso de produção e revisão coletiva, os alunos produziram suas próprias reescritas individualmente durante dois dias. Tinham em mãos o caderno com o planejamento que havia sido feito coletivamente, bem como os cartazes expostos no mural da sala.

Num primeiro momento estavam em cadeiras organizadas individualmente e, no segundo dia, em dupla, de modo que puderam discutir e relembrar a história em parceria. Fiz isso porque notei que os alunos queriam discutir e conversar sobre a história. Diante do texto concluído, busquei alternativas para ajudar os alunos a escreverem melhor. Primeiramente sugeri que trocassem suas produções com outros colegas e que fixassem bilhetes com sugestões de revisão. Foi um momento muito rico e interessante, pois os alunos fizeram anotações com autonomia e, de fato, escreveram sugestões e dicas pertinentes. Por outro lado, também leram os recados com atenção e reflexão.

Depois, procurei fazer uma análise dos problemas que havia e fiz observações e sugestões em post it e devolvi as produções dos alunos com todas as sugestões. Os alunos, então, passaram a história a limpo, concluindo o processo de revisão do texto.

Reflexões

O meu objetivo com esse trabalho era levar os alunos a refletirem sobre questões discursivas do texto e ajudá-los a escrever melhor, a serem mais competentes nessa habilidade, e que eles pudessem desenvolver um olhar mais crítico com relação às suas próprias produções. Busquei fazer com que encarassem o texto “mal escrito” como um objeto sobre o qual poderiam pensar, e queria que os alunos percebessem que revisar é parte do saber escrever.


Dos livros de aventura para o mar de verdade

O célebre navegador brasileiro Amyr Klink diz em seu livro Linha-d’água: entre estaleiros e homens do mar, que: “Descobri o mar, o oceano e o dom de navegar no sótão, em livros.” Entre os muitos livros de aventura que leu cita o Le Grand Hiver, de Sally Ponce; Endurance – A lendária expedição de Schackleton à Antártida; de Caroline Alexander, Shackleton James e Margery Fisher; A pior viagem do mundo, de Apsley Cherry-Garrard; The South Pole, de Roald Amundsen, e muitos mais. Ler sobre essas magníficas e corajosas viagens em direção ao gelo e perigos do pólo sul, além de sua intimidade com suas canoinhas, dispararam em Amyr o desejo de partir ele mesmo em busca de um sonho.


Planejei momentos de produção e reflexão coletiva, pois acredito que os procedimentos que os alunos utilizam dependem, em grande parte, da experiência que eles têm em situações de análise coletiva, sob orientação, é claro, do professor. Preocupei-me, no entanto, em mediar as discussões e reflexões, sem dar respostas prontas nem focar simplesmente em erros ortográficos. Queria que, de fato, os próprios alunos, como produtores do texto, fizessem os ajustes que estivessem ao alcance deles, e que a revisão do texto fosse feita por eles.

Com a primeira produção coletiva em mãos, eu procurei identificar e analisar quais eram os problemas que o texto apresentava e planejei as atividades que vieram em seguida com base nessa reflexão. Entendo que essa organização foi fundamental para os acertos posteriores. Eu pude antecipar algumas intervenções, pois sabia qual era o foco das revisões e das análises; eu tinha traçado alguns objetivos bem pontuais que, para mim, estavam claros. Basicamente eram: evitar as repetições e inserir elementos que caracterizassem o gênero aventura. Também tinha em mente que era preciso orientar a reflexão dos alunos para as múltiplas possibilidades que certamente apareceriam, e que os alunos eram perfeitamente capazes de dar maior coesão ao texto.

Minha intenção agora é trabalhar questões de pontuação, sabendo que esse procedimento é parte da atividade de textualização, mas isso é outra história!

Posted in Revista Avisa lá #63.