ZILMA DE MORAES RAMOS DE OLIVEIRA¹
VAMOS DAR CONTINUIDADE À REFLEXÃO SOBRE A OBSERVAÇÃO DO BRINCAR, INICIADA NA EDIÇÃO ANTERIOR, AGORA NA PERSPECTIVA DA PROFESSORA ZILMA DE MORAES RAMOS DE OLIVEIRA, PESQUISADORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL E ESPECIALISTA EM INTERAÇÕES DE CRIANÇAS
Por que as crianças brincam de faz de conta?
Esta questão tem sido investigada na Psicologia do Desenvolvimento por considerar que tais brincadeiras estão ligadas ao desenvolvimento da imaginação pela criança. Esta, quando bebê, apoia-se na motricidade e na percepção para agir sobre o meio. Por exemplo, primeiro o bebê olha para um copo plástico vazio e o leva à boca, como se o utilizasse para beber algo. Perto dos dois anos, ele começa a dar mostras de se distanciar da percepção do real e a se utilizar de objetos de modo simbólico, em substituição a objetos reais, usando um toquinho de madeira, por exemplo, como sabonete, criando uma cena de dar banho, ou utilizando o copo vazio como chapéu para uma boneca, o que a leva a assumir personagens com base em imitações de cenas cotidianas por ela ressignificadas.
Usar objetos de um modo simbólico, ou seja, atribuir-lhes a função de ser signo de algo, reproduzir posturas e falas de adultos e dirigi-las a bonecos, por exemplo, representam modos de ação humanos historicamente desenvolvidos que provocam mudanças na forma humana de consciência, gerando a ampliação do próprio simbolismo.
Enfim, brincar de faz de conta cria condições para a transformação marcante da forma de a criança ter consciência do mundo e de si mesma, por exigir formas mais complexas de ação. A brincadeira de faz de conta é um instrumento de expressão que possibilita a criação da novidade, um meio pelo qual a criança é capaz de mais ativamente ser produtora de sua própria atividade.
1 Pedagoga com formação voltada para a área de Desenvolvimento Infantil, trabalhando com a Dra. Maria Clotilde Rossetti Ferreira
no Centro de Investigação sobre o Desenvolvimento e Educação (Cindedi) da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto – Universidade de São Paulo. Nesse Centro, realizou pesquisa sobre interações criança-criança em situação de brincadeiras
em creche e suas orientandas ampliaram essas investigações para incluir a pré-escola.
Qual é a diferença entre jogo simbólico, brincadeiras dirigidas e jogo de regras?
As três modalidades principais do brincar infantil em nossa cultura são processos essenciais no desenvolvimento de sua constituição humana: o imaginário, a memória coletiva, o pensamento estratégico humano.
O jogo simbólico se refere a situações em que a criança adota uma forma peculiar de comportamento fazendo de conta, ou seja, criando cenas com base nas imagens que formula na ação. Como a imagem de uma situação vivida fica marcada na postura corporal do sujeito, tal como propõe Henri Wallon, o jogo de fazer de conta, em que a criança reproduz gestos, posturas, ações e falas de um personagem, constitui
um instrumento fundamental de desenvolvimento da imaginação.
Brincadeiras dirigidas são parte da tradição cultural que se perpetua entre gerações, podendo envolver crianças, adolescentes e adultos em ritos, cantados ou não. Muitas delas continuam presentes ainda hoje: esconde-esconde, cabra-cega, jogo com pião, amarelinha, entre tantas outras, sendo muito apreciadas pelas crianças.
Já o jogo de regras se refere a atividades com orientações claras que limitam o número de parceiros, os objetos que o concretizam (tabuleiro, dados etc.), os papéis de cada jogador, o modo como é definido o resultado.
Embora o jogo simbólico e as brincadeiras dirigidas tenham regras, estas estão ligadas à manutenção de seus enredos e ritos, assim como o jogo de regras pode definir personagens e tarefas ligadas a determinado enredo. Por exemplo, um jogo cuja meta é salvar uma princesa, e cada jogador ocupa o papel de príncipe, de soldado, cada qual com possibilidades definidas de se locomover no tabuleiro, tal como o jogo de xadrez, mais apreciado por adolescentes e adultos.
Qual é a diferença entre representação e imaginação?
Se pensarmos em termos de funções cognitivo-afetivas, podemos considerá-los sinônimos. O verbo representar é usado para identificar uma ação; por exemplo, representar um personagem no faz de conta ou no teatro, ou representar um tema por um desenho. Tais representações pressupõem uma imagem do que está sendo representado, o uso da imaginação como capacidade da criança se guiar por imagens, embora essa imagem possa se delinear ao longo do próprio ato de representar no faz de conta, ao
desenhar, na escuta e reprodução de histórias, nos sonhos.
Qual é o papel das professoras e das instituições de Educação Infantil na promoção do jogo simbólico?
Mais do que promoção, eu falaria de mediação, de criar condições para as crianças se envolverem nesse tipo de funcionamento humano cheio de sutilezas e desafios. O que já se sabe a respeito indica que a presença de objetos pode orientar a criação de certo enredo. A presença de um cenário também atua como mediador poderoso, pois, aliado a objetos, sons, indumentárias, apoiam a criança a se lançar na fantasia, retomando de sua memória atos, atitudes e frases originadas de experiências anteriores. Isso
é observado no brincar de comidinha, se a criança se vê diante de panelinhas ou de outros objetos próximos disso. Ou, por exemplo, na dramatização de um laboratório onde se extrai venenos de uma cobra, situação vivenciada pelas crianças na visita a um serpentário com a professora na semana anterior e retomada da memória das crianças.
Por que e como observar as crianças?
Uma observação sensível e interessada por parte do professor pode captar o processo das crianças de não se deixarem levar pelo que veem ou ouvem, mas a recriarem algo com base no que foi visto ou ouvido. No caso do jogo simbólico, observar o processo de se integrar na brincadeira dirigida, evidenciando sua participação, seu nível de entusiasmo, as parcerias que estabelece etc. Ou perceber ainda suas estratégias obedecerem às regras dos jogos de tabuleiro, reagirem quando perdem ou ganham uma partida. Ou seja, por ser um campo predominantemente da iniciativa infantil, a observação dessas situações de jogo oferece valiosos informes sobre a socialização, a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças. Por exemplo, registrar que Martina de 20 meses estende uma colher em direção à boca de Ana de 13 meses e diz: “Come tudo para ficar forte!”, ou que Fábio, pela sétima vez, toma o brinquedo de outra criança dizendo “É meu!” e o coloca no carrinho que puxa, ou que Rodrigo não conta as casas do tabuleiro e coloca seu pião em qualquer lugar, toda vez que joga o dado, são recortes que pedem novas observações e registros para acompanhar o modo como cada criança vivencia as interações que estabelece com os companheiros.
Cada vez mais se reconhece a capacidade que a criança tem de dar sentido às situações (primeiro de um modo sensorial e corporal e, depois, vai incluindo também a fala como meio de significação) e de agir de modo ativo, desde seu nascimento.
O desafio hoje é alimentar o olhar dos professores com elementos para eles criarem um novo paradigma de coordenação de situações de aprendizagem por meio de atividades de observação minuciosa, registro e análise da emergência das interações infantis. Essa linha de trabalho pode ocorrer nas reuniões de formação continuada na creche ou pré-escola, momento em que os professores discutem registros de profissionais mais experientes nessa tarefa e as análises que eles fizeram, assim como trazem seus próprios registros para serem analisados com os colegas.
Como se desenvolve a competência do olhar?
Aprende-se a olhar… olhando, registrando o que foi observado e discutindo os registros com outros colegas. Pode ser algo de início trabalhoso, mas logo o observador se vê fascinado com o que apreende na situação. Na construção desse olhar, é fundamental não atribuir determinada intencionalidade às crianças, quase sempre marcada pelo preconceito do observador, mas descrever o desenrolar de suas ações, na busca de identificar processos, iniciativas, conflitos, acordos.
A especificidade desse olhar dá ao professor um status de especialista em desenvolvimento infantil. Uma vez, apresentando a gravação de interações de crianças de dois anos em brincadeiras para um grupo de médicos obstetras, estes mostraram ter muita dificuldade em perceber detalhes das ações infantis, que nós, professores, notamos com facilidade, e concluímos que, da mesma forma, os professores (e outros
adultos) têm muita dificuldade de analisar a imagem do ultrassom de um feto humano. Dessas especificidades construídas no fazer profissional e de todo o esforço em aprender a analisar as
interações infantis é que resulta um professor-investigador maravilhado com a capacidade infantil de ser e de se modificar.
Quais seus últimos aprendizados sobre a brincadeira decorrente das suas observações e estudos?
Vou apontar três aprendizados que fiz como pesquisadora.
1. No faz de conta, as crianças de um a cinco anos se envolvem em um processo de recombinação de diferentes significados culturais que circulam entre elas e são por elas adotados ou modificados, enquanto as ajudam a fazer diferenciações em seus papéis, atribuindo sentido às ações dos parceiros e às suas próprias ações. Por exemplo, é comum uma criança dizer para outra que segura um boneco no colo: “Eu é que sou a mãe!”, pegando o boneco para si.
2. A vivência das brincadeiras pelas crianças aos dois e três anos, partindo de suas emoções, posturas, dos objetos que as apoiam a atribuir um sentido à situação, faz com que haja no faz de conta sucessivas e rápidas tomadas de papel em uma colagem de fragmentos de situações que é tecida na trama das relações interpessoais que aí se estabelece. Diante disso, alguns professores apontam que as crianças são instáveis ao brincar, sempre mudando o tema do faz de conta, e não percebem esse processo como positivo e ligado à contínua negociação de sentido envolvida em suas interações.
3. Tanto as experiências passadas das crianças como suas percepções atuais são carregadas de sentidos que integram partes de suas histórias e o contexto de suas atividades no grupo em um mesmo espaço subjetivo. Com isso, as novas respostas dadas pelas crianças às situações vividas ao brincar abrem novas configurações subjetivas.
Mais uma razão para favorecer o jogo simbólico
Uma observação minuciosa pode revelar os diferentes significados referidos pelas crianças em uma brincadeira assim como referências culturais envolvidas.
Episódio do cinto
Cinco crianças entre 38 e 45 meses de idade estão na sala (…) Cada uma delas brinca sozinha com
alguns objetos, ocasionalmente trocando alguns comentários. Wellington, em pé, tenta colocar um cinto ao redor de sua cintura. (…) Fernando, segurando o chapéu (de vaqueiro nordestino) com uma mão e a ponta da correia do mesmo que havia se soltado com a outra, ergue o chapéu e o põe na cabeça, enquanto Wellington sincronicamente faz o mesmo gesto, segurando o cinto pelas pontas com as mãos, erguendo-o e passando o para trás de sua cabeça. Depois Wellington ergue e abaixa rapidamente o cinto, usando-o como gesto para bater em algo, junta-lhe as pontas, sorrindo e, mantendo-o erguido enquanto caminha até o colchonete em que Maristela e Daniel brincam com alguns objetos, diz: “Todo mundo vai apanhar! Vai apanhar, o filho!” Ele bate com o cinto três vezes no colchonete. Daniel grita e Maristela olha para Wellington, colocando o braço direito parcialmente sobre o rosto com uma expressão de medo e afastando o tronco enquanto grita, em tom dramático: “Papai! Papai!”. A seguir ela se volta para os brinquedos que estão no chão e recomeça a manipulá-los, com rosto sereno. Enquanto isso, Daniel, com uma expressão perturbada, afasta-se um pouco do colchonete, abraçando sua cabeça com ambas as mãos, como que se protegendo, e olha Wellington, que se abaixa e rola no colchonete, indo sentar junto a este, no lado oposto ao de Daniel e Maristela. Wellington bate com o cinto duas vezes no colchonete, sempre erguendo bem alto a mão que o segura, olhando alternadamente para Daniel e Maristela. Esta olha para Wellington e exclama: “Pa-pai! Papai!”, com voz chorosa e novamente dramática. Wellington pergunta-lhe: “Quem foi que te bateu? Ele?”, apontando, com a mão que segura o cinto, para Daniel, que tem uma expressão assustada, ao mesmo tempo em que Maristela também aponta para Daniel com a garrafa plástica vazia de shampoo com a qual brincava. Wellington bate com o cinto duas vezes no colchonete diante de Daniel e depois se afasta, indo com ar sereno manipular alguns brinquedos com outra garota na sala.
No episódio apresentado, representações historicamente construídas e relacionadas com a relação pai-
-filho sobressaem dos muitos significados circulando nas interações das crianças. (…)
A ação parece abrir novas possibilidades para a construção de significados no jogo de faz-de-conta elaborado a seguir. Nele, Wellington toma alguns aspectos como sinais emergentes que disparam certos papéis relacionados com o enredo implícito sendo coletivamente construído. Ele abaixa seu braço, ergue o cinto novamente com uma mão, preparando melhor o gesto de bater em algo ou alguém, abaixa o braço, pega o cinto unindo suas extremidades enquanto sorri de modo maroto, e passa a desempenhar o papel do pai autoritário, introduzindo a palavra “filho” em cena. A partir de tais elementos, Maristela rapidamente assume o papel complementar de filho/filha. Sua amedrontada expressão dramática “Pa-pai!” funciona como uma pista para a continuação do jogo simbólico, enquanto Daniel, ao lado dela, parece estar realmente perturbado pelas ações de Wellington. Seus gestos de autoproteção e sua expressão de medo são suficientes para estimular os parceiros a lhe atribuir o papel de agressor.
Trecho do livro Jogo de papéis – um olhar para as brincadeiras infantis, de Zilma de Moraes Ramos de
Oliveira. São Paulo: Cortez, 2013, p. 110.