Cantando pelo mundo… Brincadeiras de lá e de cá

ROBERTO SCHKOLNCK¹


NA TENTATIVA DE BUSCAR O EQUILÍBRIO ENTRE O CONHECIMENTO ACADÊMICO E OS SABERES POPULARES, NASCEU UM PROJETO COM BRINCADEIRAS CANTADAS DE DIFERENTES REGIÕES DO MUNDO, POSSIBILITANDO APRENDIZAGENS DIVERSIFICADAS E AMPLIAÇÃO CULTURAL


Há tempos as brincadeiras cantadas da cultura popular fazem parte dos conteúdos curriculares da área de música da
Educação Infantil e das séries iniciais no ciclo de alfabetização da escola. Desde tenra idade, brincar com música é uma prática cotidiana, seja por propostas dirigidas ou atividades mais lúdicas. Com o intuito de ampliar a cultura e o repertório musical dos nossos alunos, desenvolvemos o projeto Cantando pelo mundo…brincadeiras de lá e de cá, que nasceu nas salas de aula do grupo Alfa² e cresceu em pesquisas e aprendizados das brincadeiras cantadas de diferentes países e da cultura popular brasileira.

Neste projeto encontramos diversas referências de brincadeiras musicais sugeridas na sondagem sobre cantigas tradicionais, pesquisadas no âmbito das famílias dos alunos; no riquíssimo repertório do Mapa do brincar³ e em especial, do livro Brincadeiras cantadas de lá e de cá.


1 Coordenador da área de música e professor de musicalização nas escolas Magno/Mágico de Óz e Jacarandá (SP). Assessor em Educação musical na rede de ensino privada e pública. Educador Nota 10 em 2011: “Songbook de Adoniran Barbosa – 100 anos”: http://www.fvc.org.br/premio-victor-civita/vencedores/roberto-schkolnick-675987.shtml
2 A denominação Alfa se refere ao ciclo de alfabetização das turmas dos 1os anos do Ensino Fundamental do Colégio Mágico de Óz/Magno de São Paulo (SP). O projeto foi desenvolvido com seis turmas do Alfa, com média de 20 alunos por classe e quatro professores de música que coordenaram o trabalho.
3 Projeto colaborativo desenvolvido pela Folhinha a partir de 2009: http://mapadobrincar.folha.com.br/

Os alunos foram apresentados às brincadeiras de diferentes países e do Brasil, reconhecendo sonoridades específicas e alguns de seus respectivos instrumentos musicais. As professoras pesquisaram juntamente com os alunos a diversidade cultural dos povos, enfocando seus costumes e tradições, as danças típicas, o vestuário, os rituais, a língua falada, a localização geográfica e o modus vivendi do seu habitat.

Música e Movimento

As brincadeiras cantadas da cultura popular se caracterizam por sua forma espontânea de transmissão de saberes e conhecimento. Elas são relativamente simples de serem aprendidas, pois utilizam um linguajar coloquial, sugerem ações corporais (gestos e movimentos) que contribuem para memorização das letras e das melodias musicais.

No campo da música, possibilita que a criança entre em contato com diferentes formas de expressões sonoro-musicais, seja pelo canto, por meio das sonoridades ou dos ritmos intrínsecos a cada manifestação cultural.

Geralmente, o enredo das brincadeiras propõe uma forma de jogo, que além de propiciar o canto e assimilação de ritmos, sugere uma série de expressões corporais a serem realizadas pelos participantes. Um dos aspectos mais interessantes do trabalho com esse tema, para essa faixa etária, é a possibilidade de abordar o conhecimento musical num contexto dinâmico de movimento, transformando a linguagem musical numa experiência orgânica, corporal e também muito divertida.

Fernanda Souza, em seu artigo “O brinquedo popular e o ensino de música na escola”4, conclui que:

Assim como a escola deve proporcionar aos alunos o contato e o entendimento com a música erudita e de outros povos, também deve apresentar aos alunos subsídios para que entendam o universo e os elementos que fazem parte da nossa cultura popular, para que assim não se criem preconceitos referentes à nossa diversidade cultural.

Assim seguiu esse projeto, buscando preencher uma lacuna no aprendizado musical dos alunos.


4 Publicado na Revista da Associação Brasileira de Educação Musical, no 19 (2008): http://www.abemeducacaomusical.com.br/

Escolha do tema

No início do ano de 2014, começamos nossos encontros nas aulas de música trabalhando com atividades de integração grupal por meio da música. Essas atividades se caracterizam por abordar um conteúdo musical mais lúdico, focado na constituição de vínculos entre aluno e professor, mas, sobretudo, no bem-estar coletivo. As brincadeiras cantadas fazem parte do universo musical da criança e são excelentes estratégias para lidar com a integração entre os alunos. Muitos deles já estão familiarizados com os jogos musicais e gostam de socializar seu conhecimento com outros colegas da turma, por exemplo, ensinando a “forma” de jogar ou brincar com determinada canção.

Nesse contexto, fizemos uma sondagem, solicitando aos alunos que indicassem quais eram as atividades preferidas no rol das brincadeiras populares, para que pudéssemos realizar com o grupo.

Num início de aula, um dos nossos alunos, descendente de família de origem italiana, sugeriu uma canção que foi ensinada pelos seus pais e que gostaria de apresentar ao grupo. Quando o aluno cantou La bella polenta todos os colegas ficaram muito interessados em aprender a cantar e a fazer os gestos sugeridos na música. A partir daí, iniciou-se o trabalho de pesquisa sobre as brincadeiras cantadas, tanto da cultura popular brasileira, quanto de outras culturas e etnias. Surgiram então muitas indagações:

Será que crianças de outros países brincam com música? Como é a brincadeira? Como é a música? E no Brasil, será que as brincadeiras são as mesmas em todas as regiões? Um índio do Pará brinca de Dança das caveiras?

Seleção do repertório / pesquisa com familiares

Após a escolha do tema, combinamos que pesquisaríamos uma nova brincadeira cantada a ser trabalhada semanalmente nas aulas de música. Em algumas aulas, os alunos teriam como tarefa conversar em casa com seus familiares sobre as brincadeiras cantadas de infância que eles conheciam e poderiam apresentá-las ao grupo.

Nesse momento de pesquisa/sondagem com os familiares obtivemos um repertório diversificado de canções e brincadeiras, já que temos alunos, filhos ou netos de imigrantes, originários de países latino-americanos, europeus, e também de outras regiões do Brasil.

Durante algumas semanas, foram compartilhadas as brincadeiras pesquisadas. O professor também apresentou brincadeiras de outras culturas através de vídeos, internet ou gravações originais.

O critério de seleção das músicas do projeto foi o material de pesquisa dos alunos e outras atividades sugeridas pelo professor, com mais possibilidades de desdobramentos do aprendizado da linguagem musical.


Repertório multicultural

BRINCADEIRAS CANTADAS DE CÁ – BRASIL

CATAFLAU – PARÁ
NHANDAIA – MATO GROSSO
RAP DO ZÉ – SUDESTE
LAVADEIRA – PARÁ
DANÇA DAS CAVEIRAS – RIO GRANDE DO SUL
HIP-HOP – PASSEIO EM MARROCOS – MINAS
GERAIS

BRINCADEIRAS CANTADAS DE LÁ – MUNDO

ARAM SAM SAM – INFLUÊNCIA ORIENTAL
– ÁRABE
BIM BAM – ESTADOS UNIDOS
OUMA NO OYAKO WA – POKORI – JAPÃO
SIMI YADECH – ISRAEL
LA BELLA POLENTA – ITÁLIA
AYELE – GHANA – ÁFRICA
QUE MENTIROSA – ARGENTINA
EMILIANO – COLÔMBIA
EPO TAI TAI Ê – NOVA ZELÂNDIA / AUSTRÁLIA


Contextualização

O trabalho contou com a parceria das professoras polivalentes que tiveram grande importância na realização dos registros gráficos, na produção de textos e na contextualização das referências culturais de cada lugar.

A cada escolha de uma brincadeira cantada, os alunos pesquisavam junto com a professora de classe as características mais significativas do país ou região abordada. A investigação foi bastante diversificada, levando-se em conta as informações que os alunos consideravam mais relevantes, como culinária típica do local, idioma nativo, localização geográfica, festas populares, rituais, atrações turísticas, entre outras.

As características musicais da região, como instrumentos musicais, sonoridades musicais peculiares, ritmos, estrutura do canto, função/ ritual da música/canto/dança, foram aspectos abordados nas aulas específicas de música.

Após as discussões, a apresentação das professoras e os estudos sobre os lugares, os alunos elaboravam algum tipo de registro, por meio de textos ou desenhos. Eles documentavam o conteúdo, pois esse material seria utilizado para construir “portfólio coletivo” final do projeto, com participação das seis turmas envolvidas nesse processo.

Conteúdos musicais

No decorrer do ano, diferentes características da linguagem musical das brincadeiras cantadas foram trabalhadas nas aulas de música.

Cada canção/brincadeira possibilitou abordar múltiplas facetas do aprendizado da linguagem, tais como:

♦ O eixo da “Escuta e apreciação musical” – Escutar e qualificar o que é ouvido: identificar sons dos instrumentos, sonoridade da língua cantada, etc.

♦ O eixo da “Percepção e prática musical” – Produzir música: cantar, tocar, acompanhar a canção com instrumentos de percussão, etc.

♦ O eixo da “Cultura musical” – Contextualização e conceitos da linguagem musical: compreender que a música é um canto de trabalho, ou um acalanto, ou um Rap com características da sonoridade urbana, influenciando a sua prosódia e o seu ritmo etc.

As crianças foram apresentadas primeiramente ao enredo da canção – do que se trata o tema da música e em que contexto é realizada. Após essa breve apresentação, os alunos aprendiam a cantar a letra e a melodia da música.

Foi muito interessante observar as reações dos alunos ao lidarem com a “estranheza” da sonoridade de línguas desconhecidas. Na canção hebraica Simi Yadech, por exemplo, os alunos tentavam cantar com a pronúncia correta, esforçando-se para emitir o som da letra “R” de maneira gutural5.

Outro exemplo surpreendente foi na canção O E LE LE (um canto de trabalho africano), que tem estrutura musical de “canto responsorial” – canto no estilo “pergunta e resposta”, sendo que um membro da comunidade é o solista da canção, entoando melodias e rimas improvisadas, cabendo ao grupo repetir em coro o mesmo canto, com a mesma melodia que o solista a pronunciou. Os alunos foram muito criativos ao inventarem nuances melódicas para cada frase musical apresentada na canção. Ora cantavam de maneira bem aguda, ora com dinâmica bem suave (baixa), outras vezes com andamentos variados – lento e rápido – entre inúmeras possibilidades de expressão.


5 Som emitido com projeção de ar pela garganta, sem correspondência sonora similar na nossa língua.

As crianças identificaram que as brincadeiras cantadas são tocadas com diferentes estilos e gêneros musicais. Na canção colombiana, Emilano, um ritmo latino, estilo salsa e rumba é executado. Nhandaia é uma ciranda, dança folclórica do Mato-Grosso. Em Aram Sam Sam, que é uma brincadeira encontrada em diversos países com pequenas variações de letra, observa-se seu toque acentuado e ritmo oriental (Árabe) na estrutura da canção.

A possibilidade de conhecer novas sonoridades e instrumentos musicais também constituiu uma importante experiência de ampliação da cultura musical e de percepção sonora. Os alunos ficaram muito interessados em pesquisar instrumentos “exóticos” como o “Didgeridoo” australiano (uma espécie de flauta gigante com sonoridade inusitada, bastante grave); o “Zunidor” indígena; comparar instrumentos populares do Japão e do Brasil, como o “Koto” japonês e os nossos tambores utilizados no samba.

Gravação do CD

A prática do canto das músicas e brincadeiras foi trabalhada com maior ênfase, pois o foco desse processo foi dado a partir das melodias. Como proposta de registro do aprendizado musical, optamos em realizar a gravação das músicas aprendidas em aulas, organizadas num CD produzido pelos alunos.

Com auxílio da equipe de professores de música, organizamos as bases musicais, observando as sonoridades do gênero musical, os tons e as formas de cada canção, adequando-as às possibilidades de execução do canto dos alunos6.

Utilizamos o espaço da sala de aula e de um pequeno estúdio de música para ensaios presente numa das unidades do Colégio Magno, para realizar a gravação do CD. Para fazer a captação do áudio das crianças, foram utilizados quatro microfones dinâmicos, conectados a uma interface de computador, com softwares multipistas simples de gravação e edição (Audacity – gratuito! – e Protools).


6 Por exemplo, adequação da música à extensão vocal das crianças; escolha de ritmos e instrumentos característicos da brincadeira cantada etc.

Produção diversificada

O processo de conhecimento das brincadeiras musicais foi documentado pelos alunos. A cada atividade foi solicitado que as crianças elaborassem algum tipo de registro do material ou do conteúdo aprendido. As professoras polivalentes também fizeram algumas intervenções no sentido de ampliar as estratégias de produção dos registros como, por exemplo, utilização de técnica de colagem, desenhos temáticos com utilização de materiais diversificados, escrita e produção de textos colaborativos.

Desde o início do projeto, os alunos sabiam que um portfólio coletivo sobre as brincadeiras cantadas seria produzido por eles ao final do processo. A consigna é que esse material deveria ser representativo das experiências de cada grupo em relação às brincadeiras cantadas.

Ao final do segundo semestre, todo o material coletado durante o ano foi organizado numa compilação que denominamos Livro-CD. Cada grupo pôde eleger as produções que gostaria que ilustrassem as brincadeiras ou canções pesquisadas. Juntamente com o portfólio7, foram feitas cópias do CD gravado pelos alunos. Para viabilizar uma melhor divulgação do trabalho com pais e familiares, foi criado a uma versão digital multimídia do material.

Como continuidade deste trabalho e pela riqueza pedagógica do tema, a escola propôs junto ao PEA-Unesco Brasil (Programa de Escolas Associadas da Unesco), uma inédita parceria de intercâmbio musical com alunos dessa faixa etária e seus professores, entre escolas de diferentes países, de todos os continentes.

No ano de 2015, essa “rede de intercâmbio” será implementada como projeto experimental – “Cantando pelo mundo… cantigas e brincadeiras”8 (piloto), já com adesões e manifestações de interesses do Brasil, Espanha e Grécia. Nesta nova fase, o projeto ganha uma plataforma exclusiva, a fim de possibilitar o compartilhamento de vídeos e informações de interesse dos participantes.


7 O portfólio coletivo do trabalho é uma compilação, no formato Livro-CD, dos momentos mais marcantes desse percurso, protagonizado por nossos alunos.
8 www.peaunesco.org.br/cantandopelomundo/

Música, aprendizado e Cultura

O tema de trabalho sugerido neste projeto parece-nos muito adequado à faixa etária. Observamos que logo no início do trabalho, quando foi feita a sugestão do projeto junto aos alunos, eles ficaram muito motivados em pesquisar e conhecer as brincadeiras cantadas do Brasil e de outros lugares do mundo. Houve uma clara identificação com a proposta de conhecer como as crianças de várias regiões do planeta brincam com música.

O caráter multicultural do projeto propiciou uma verdadeira viagem ao conhecimento, trilhando novos caminhos, lugares e culturas do mundo. De forma geral, as crianças ficaram encantadas com as descobertas musicais de cada país e regiões pesquisados. Surpreenderam-se também com algumas peculiaridades das brincadeiras, como saber que um jogo musical brasileiro, Aram Sam Sam, pode ter sua forma correspondente de brincar em países como Estados Unidos ou Egito.

A proposta interdisciplinar também teve destaque neste trabalho, pois o tema propiciou a articulação de diversas áreas/eixos de conhecimento, favorecendo parcerias entre professores polivalentes e especialistas de diferentes áreas do conhecimento (música, artes, dança), abordando o mesmo objeto de estudo, sob óticas distintas, porém com o objetivo de se construir um trabalho comum e significativo a todos.

Por se tratar de um trabalho com duração mais extensa, oferecendo diversas possibilidades de participação vinculadas a diferentes modalidades de conhecimento e expressão, os alunos puderam se identificar com as linguagens mais significativas para eles. Há crianças que gostam mais de participar de atividades coletivas musicais, cantando, tocando; outras, interessadas na elaboração/produção de textos; ou ainda focadas em atividades plásticas das artes visuais etc.

O projeto foi estruturado de forma que o aluno pudesse “percorrer” as vertentes mais significativas do ensino da educação musical, identificando o papel da música como instrumento de conhecimento de mundo e da sua relação com a cultura. Talvez o aspecto mais significativo da educação musical, neste trabalho, tenha sido a possibilidade de o aluno, de alguma forma, experimentar atividades relacionadas aos três eixos da aprendizagem em artes/música: produção musical; apreciação e percepção; e cultura musical.

Posted in Revista Avisa lá #62.