Observar para ver

RENATA MEIRELES É UMA OBSERVADORA SENSÍVEL E COMPETENTE DO UNIVERSO INFANTIL. CONHECER SUAS MOTIVAÇÕES, BASES TEÓRICAS E DESCOBERTAS VAI AUXILIAR OS PROFISSIONAIS DA EDUCAÇÃO A DESENVOLVER UM OLHAR DIFERENCIADO PARA O FAZER DAS CRIANÇAS


Revista Avisa lá: Renata, conte-nos sobre seu trabalho. Qual o seu percurso até se tornar uma pesquisadora da infância?

Renata Meireles: Eu sempre quis trabalhar com infância, mas não sabia ao certo a área que iria trabalhar. Acabei fazendo muitos cursos fora da faculdade (Educação Física), com pessoas que já estavam fazendo pesquisa sobre a infância, como Adriana Friedmann¹, e no Instituto Brincante². Esses foram grandes incentivos pra mim, naquilo que eu queria e nem sabia que existia. Que era pesquisar, estar mais perto de quem são as crianças e de como elas atuam no seu dia a dia sem ficar muito na teoria. Principalmente, estar com elas e aprender com elas sobre infância. Lydia Hortélio³ e Adelsin4, forneceram inspirações para começar essa pesquisa. Depois, muitos parceiros e mestres cruzaram meu caminho: Gabriela Romeu, Marcos Ferreira Santos, Sandra Eckschmidt, Soraia Chung Saura, entre tantos outros. Hoje em dia o pesquisador Gandhy Piorski é uma grande influência no nosso olhar, um grande parceiro. Ele tem um estudo muito profundo sobre o imaginário infantil e a partir do olhar dele, ampliamos o nosso olhar, imensamente. O Gandhy é uma grande influência no nosso trabalho.


1 Pesquisadora da educação lúdica, coordenadora do NEPSID (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismos, Infância e Desenvolvimento).
2 Instituto Brincante – Curso a Arte do Brincante para Educadores.
3 Etnomusicóloga e educadora, pesquisadora da cultura da infância.
4 Pesquisador da cultura da infância.

Eu achei que interessante seria ir in loco mesmo, não ficar só na pesquisa bibliográfica. Quando eu estava na faculdade cheguei a ler, inclusive, uma tese sobre bolinha de gude. Achei muito bacana, inclusive, o fato de existir algo assim, mas o que eu queria era saber como as crianças jogam a bolinha de gude. Não dá para você jogar bolinha de gude lendo uma tese.

Que tipo de tese era, sobre a história do jogo?

Não, tinha a origem do jogo, mas era muito sobre as relações sociais que se estabelecem. Contava perfeitamente como o jogo acontece, as regras, toda a dinâmica, enfim, um trabalho minucioso do passo a passo do jogo. Mas é outra coisa você estar no jogo e ler sobre ele. E não me alimentava só saber sobre o jogo, eu precisava estar nele, sentir. E então, eu acho que isso foi o grande mote para mim, a necessidade de aprender com a criança. A partir do ponto de vista dela.

Na década de 1990, em 1991, 1992, comecei pesquisando de uma forma bem caseira, só olhando e tentando aprender como aconteciam as brincadeiras. Comecei a registrar em fotos e em fita cassete, comecei a viajar também. Quando ia com os amigos em férias para algum sítio, eu estava mais interessada nos filhos do caseiro do que no churrasco dos amigos.

Meu olhar era como um imã para as crianças. Eu era chamada por elas, pelo meu olhar. Eu sentia que meu corpo precisava aprender. Por exemplo, isso, a bolinha de gude, eu queria jogar, entrar na partida para valer. Então, eu aprendia no corpo, registrava isso.

Construí assim um caminho, uma ponte entre as crianças e as demais pessoas. Reproduzia o repertório que as crianças estavam fazendo em oficinas no SESC, em escolas, em instituições.

Fazia oficinas de brinquedos e brincadeiras, absolutamente práticas. Claro que incluía discussões e reflexões.

Depois disso eu conheci o David Reeks e a gente criou junto o projeto Bira – Brincadeiras Infantis da Região Amazônica. Com a entrada do David na minha vida, o projeto ampliou, abriu uma outra porta, que foi a dos registros de filmes. Ele não era documentarista quando a gente se conheceu, mas se tornou com o projeto Bira. As cenas das crianças brincando foram as primeiras coisas que ele filmou na vida. David saiu em viagem nesse projeto para aprender, e como tinha um olhar super bom, aprendeu fazendo. É bonita essa história. E as crianças foram dando todos os sinais e ele ia ouvindo e vendo. O David tem uma alma infantil muito bonita, ele conseguia se comunicar muito bem com a criança através da câmera. Ele larga a câmera no meio e começa a brincar, então, isso também criou vínculos, o que é sempre necessário.

O que queríamos era criar vínculo com as crianças. Assim nasceu o projeto Bira. Nasceu completamente autônomo, sem incentivo nenhum, foram investimentos pessoais.

E como foi?

Saímos em 2001, David e eu, com mochila nas costas e câmera na mão. Tínhamos apoio de ONGs e instituições de lá que eu havia contatado daqui e que já trabalhavam com crianças. E foram essas pessoas que incentivaram o nosso trabalho, que nos apresentaram às comunidades. Eu fazia ofi cinas de brinquedos e brincadeiras para o pessoal que trabalhava para eles, para profissionais de Secretaria de Educação, da rede pública, das ONGs. Com idas e vindas, no total, deu quase um ano de Amazônia.

Criamos de fato um olhar mais aprofundado sobre a infância de lá. Aprendemos o que é estar com a criança e registrar as suas atividades. Era um intercâmbio de brinquedos e brincadeiras. Toda vez que aprendíamos uma brincadeira, ensinávamos outra.


5 Giramundo e outros Brinquedos e Brincadeiras dos Meninos do Brasil, São Paulo: Terceiro Nome.
6 Projeto de pesquisa, resgistro e difusão da infância brasileira. www.territoriodobrincar.com.br

Você continuou a pesquisa aqui em São Paulo também?

Quando terminou, o projeto virou dissertação de mestrado. Eu consegui, aí, ter um olhar com o afastamento necessário. Em campo é muito difícil para mim ter uma reflexão mais profunda daquilo que estou vendo. Eu preciso sair do lugar. Pra mim funciona assim. Com o professor Marcos Ferreira Santos, que foi meu orientador de fato, consegui o mergulho que precisava para olhar as “Águas Infantis da Amazônia”, minha pesquisa de mestrado. A partir daí, escrevi o Giramundo5, editamos alguns curtas sobre isso e ganhamos vários prêmios. Então, percebemos que o que tínhamos na mão não era só um sonho ou encantamento, mas algo que as pessoas estavam querendo saber.

Por que você acha que as pessoas estavam querendo falar disso? Por que o foco nas brincadeiras?

Pois é, a brincadeira era meio marginalizada. Aos poucos ela está ganhando um espaço cada vez mais nobre. As pessoas estão entendendo o respeito que é preciso ter para com essa atividade. Tinha uma coisa do não sério. Até mesmo minha família me questionava quando eu ia fazer uma coisa séria, “você vai ficar brincando?”.

Explique um pouco de onde nasceu e o que é o Território do Brincar.

O Projeto Território do Brincar6 nasceu por conta dos filhos. Quando eu e o David nos vimos com duas crianças pequenas morando em São Paulo fazendo coisas que não estávamos gostando. Pensamos em mudar para o interior, mas resolvemos ir para a estrada com eles mostrando o que sabíamos fazer. Quando saímos, o mais velho tinha quatro anos e o mais novo dois. Quando voltamos, eles tinham seis e quatro anos. Criamos o projeto para estar em família, acompanhar de perto o crescimento dos nossos filhos, ao mesmo tempo que poderíamos desenvolver um trabalho que gostássemos, conhecendo o potencial dele. A ideia foi ficar dois anos na estrada, percorrendo diferentes regiões brasileiras, registrando as diferentes expressões das tantas infâncias que existem no nosso país. Criamos um roteiro com uma representatividade regional e cultural que pudesse se aproximar dessa diversidade que somos.

Desenhamos uma proposta de parceria com escolas e em seguida nasceu a possibilidade de fazer uma correalização com o Instituo Alana7, que ampliou muito a dimensão do projeto e fortaleceu ainda mais nossa proposta de pesquisa e difusão da cultura da infância. Hoje somos uma equipe e agregamos esforços em diversas frentes de educação e cultura. Estamos coproduzindo com a Maria Farinha Produtora (vinculada ao Instituto Alana) um filme de longa-metragem, séries para TV, site, enfim, ampliamos muito…

Conte um pouco mais sobre essa questão do olhar. Nós a consideramos como uma grande observadora das crianças, da cultura da infância, como você aprendeu a observar?

Fiquei sempre muito focada em olhar o que existe de mais potente na infância, e a aprender a brincadeira brincando. As pessoas conseguem falar com muito mais tranquilidade sobre os problemas da infância do que sobre as potencialidades e o imaginário infantil. Achei que era pertinente apurar o olhar para o que há de belo.

De um modo geral, ouço muito dos adultos que as crianças não brincam mais. E ao mesmo tempo, vejo as crianças mostrando um repertório, uma disponibilidade intensa para o brincar. Seja no interior, numa comunidade quilombola, ou na cidade de São Paulo, onde for, a resposta é “hoje em dia as crianças não brincam mais”. E aí quando você vê, elas brincam, e muito. Eu acho que tem um lastro de olhar que se rompeu. O adulto focado nas angústias do passado ou na ansiedade de um futuro que nunca vem, não consegue perceber a criança que está absolutamente no presente. Há uma desconexão que bloqueia o olhar para conseguir ver o que vem da criança hoje.


7 Instituto que tem como missão honrar a criança. www.alana.org.br

Focar no que há de belo e potente não significa que essas crianças não vivam grandes problemas. Aqueles meninos e meninas são heróis para nós, nos apresentam um brincar absolutamente rico e potente, essas mesmas crianças sofrem questões complicadas no seu dia a dia. Se a gente contar você nem acredita.

Mas preferimos apresentar o lado que dá sentido para a própria criança. Não se trata de ingenuidade, mas de deixar que as crianças nos guiem o olhar para as grandes transformações, essas que partem de dentro para fora.

O que gostaríamos é que, de algum modo, as pessoas confiassem mais na infância, e nos potenciais infantis. As crianças já fazem isso.

Você vê uma relação entre essa vida difícil e a brincadeira, brincar como necessidade de se manter são?

Sem dúvida. A brincadeira é o ar que a criança respira, sem isso ela fica sufocada. É onde a criança é. A brincadeira é o espaço em que ela é ela mesma, fora dali há muitas vezes questões bem difíceis para elas lidarem.

Você falou desses grandes personagens e deve ter vivido muitas emoções nessas andanças pelo Brasil. Poderia compartilhar conosco uma situação que lhe impactou?

Cada criança toca em um lugar em mim. Um exemplo de emoção é a relação que tivemos com essas crianças, por conta dos nossos filhos estarem também no projeto. No projeto Bira não tínhamos filhos, mas no Território do Brincar isso mudou muito. Cada lugar onde chegávamos, nossa casa passava a ser um lugar onde as crianças queriam estar. Elas vinham continuar a brincadeira e ficar com os nossos filhos. As nossas casas eram centros culturais da infância. Às vezes eram 15, 20 crianças, o dia inteiro. Eu percebia que alguns deles vinham viver uma família, e isso é muito emocionante para mim. Crianças com questões bem complicadas em casa não saíam do nosso quintal. Teve um menino, por exemplo, que o pai e a mãe estavam presos, uma vó que não dá conta de cuidar, sem condições. Ele viveu dentro da nossa casa e eu basicamente o criei durante os três meses que estive nessa comunidade. Você cria um vínculo enorme. Isso vai muito além do que é previsto dentro de uma pesquisa do brincar.

Então, havia uma troca, ele trazia a brincadeira?

Nossa, claro, é uma troca. Ele queria o tempo todo mostrar o que sabia fazer. As crianças de um modo geral querem muito isso. Os adultos em geral dizem que elas não sabem nada e elas, ao contrário, dizem: “Eu sei, eu sei isso, eu sei aquilo”. Elas estão absolutamente ávidas para mostrar o que sabem, e sabem coisas incríveis. Esse menino que contei antes, por exemplo, é um exímio caçador. Ele desafia a coragem. Brinca com pólvora, brinca com os enormes desafios da pipa, brinca com armadilhas para caçar. As crianças buscam dentro delas o que precisam fazer. Elas sabem do que precisam. Existem algumas buscas em comum. Existe aquele que é mais caçador, ou o que é mais inventor, que gosta de inventar coisas, partindo do zero. Meninas que estão vinculadas às brincadeiras com mais potência ou delicadeza. Potência, por exemplo, ao pular elástico, pular corda. Tem meninas que fazem maestrias nessas brincadeiras.

Você às vezes escolhe alguns temas para dar um zoom, como as casinhas e as comidinhas, há alguma razão especial para isso?

Não sou eu que escolho, são as coisas que me escolhem. Esse livro do cozinhando8, eu não planejei nada disso. Quando voltei depois de 21 meses na estrada com o Território do Brincar, surgiu a possibilidade de montar uma exposição para a Mostra Ciranda de Filmes, que pudesse depois itinerar. Eu tive três meses para criar isso, então, fui olhar o que eu tinha de imagens, fazer uma curadoria buscando temas. E um dos temas que veio forte foi o de brincar de casinhas. Ao separar as fotos fui tentando selecionar as etapas da brincadeira. Tudo que era montar a casinha, tudo que era cuidado, os bebês, o que arrumar dentro da casa e, depois, tudo o que era cozinhar. Nessa parte, eu me dei conta que inconscientemente eu fotografei inúmeros pratinhos das crianças. Já estava lá, fui registrando tudo porque meu olho estava absolutamente encantado com a beleza de cada pratinho. Mas isso não foi planejado, nem tive consciência de que eu estava fazendo aquilo. Quando eu juntei tudo percebi que tinha inúmeros pratinhos e resolvi fazer essa brincadeira de criar uma pequena poesia como se fosse um menu de restaurante. Realmente, era uma brincadeira entre adultos e crianças, um menu de restaurante com pratinhos de lama e flor. Isso foi acontecendo. Vários foram os temas que eu percebia durante
a viagem do Território do Brincar e que foram crescendo dentro de mim. Um tema enorme, por exemplo, é esse dos meninos caçadores. Quem são essas crianças, o que é caçar na infância?


8 Cozinhando no quintal – Renata Meirelles. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

Pensando nessas brincadeiras de casinha, de caçador, gostaria que falasse um pouco do jogo simbólico e como vê isso na escola hoje.

Sempre gosto de contar a partir da minha experiência. No Território do Brincar, seis escolas9 acompanhavam o projeto. Tínhamos reuniões mensais via skype para discutir o que eu estava vivendo nesses lugares, e eu sempre levantava um tema. Era uma formação continuada durante esses dois anos de viagem. Depois do primeiro
ano refletindo e discutindo como olhamos para o brincar, sugeri aos educadores que olhassem para dentro da escola. Nasceu uma pesquisa coletiva de estudo e registro sobre o brincar de casinha dentro e fora da escola. Eles dentro e a gente fora da escola. Então, durante um ano, os educadores teriam que observar e registrar na escola as brincadeiras de casinha, e eu faria o mesmo pelo mundo afora. A única exigência que fiz era que fosse respeitada a espontaneidade das crianças.

E aí, em alguns casos, ficamos muito tempo tentando chegar num acordo do que é espontâneo. Alguns diziam “a gente monta uma casinha e elas vão lá e se for brincar foi?”. Eu falei “não, não monta nada, não é para sugerir nada, simplesmente assim: se brincar brincou, se não brincar não brincou”. Caso criança nenhuma procure essa brincadeira então OK. Se ninguém for brincar disso, tudo bem. A proposta era apontar o fenômeno da brincadeira de casinha e como ela nascia, onde era feita, quando acontecia, enfim, dizer do espontâneo do brincar de casinha, nada além. A gente ficou um ano fazendo isso. No começo foi um pouco o exercício de olhar o que acontece de espontâneo dentro da escola. E as brincadeiras simbólicas, como quer que aconteçam, têm o espontâneo na sua essência. Liberdade na essência. Se você, educador, está em um ambiente e não está conseguindo entender de onde parte esse espontâneo, então tenta-se olhar onde está o espontâneo dentro da escola. A essência da liberdade e qual é a força disso.


9 As seis escolas foram: Escola Viverde (Bragança Paulista – SP), Colégio Sidarta (Cotia – SP), Escola Vera Cruz (São Paulo – SP), Colégio Oswald Andrade (São Paulo – SP), CEI Alana (São Paulo – SP), Escola Casa Amarela (Florianópolis – SC).

Qual o papel do professor nisso? Ele tem alguma participação nessa brincadeira?

Na verdade, o educador deve dar um passo para trás nesse sentido. Dissemos que se ele montar a casinha, já está fazendo um convite que parte dele. Queremos o contrário, ver o desejo mais livre da criança.

Qual seria, então, o papel do educador nesse sentido, daquilo que é o mais espontâneo? Ele deve estar presente, mas é uma presença de bastidores; o que precisa é abrir o espaço e acreditar na criança e no brincar. Eu acredito essencialmente nisso, o educador precisa de fato acreditar mais ainda no potencial do brincar. Isso significa acreditar no potencial da vida. A brincadeira é o impulso mais genuíno da vida.

Será que estamos confiando nisso? Essas relações precisam estar implícitas dentro da escola, porque fora dela, as crianças já praticam isso.

Você acha que o professor não tem então que montar um cenário, preparar a brincadeira? Em formações sobre o brincar às vezes incentivamos isso…

Tem que sentir qual o objetivo de cada proposta. O nosso era falar do que parte de mais genuíno da criança. O que o Território do Brincar faz é olhar o fenômeno, como ele é, o que está acontecendo e nisso faz muito sentido a gente convidar o educador a olhar o que está acontecendo. Mas isso é o objetivo desse projeto com esse olhar.

É preciso dar tempo para a criança.

Claro, falamos muito sobre o tempo. Se a gente está falando que a criança é do presente, vive o aqui e agora, ela precisa desse espaço de tempo para lidar com seus recursos. Elaborar o que ela tem disponível. Para essa questão de oferecer materiais, é preciso ver o que elas têm de recursos disponíveis. Como esses materiais são? Já induzem alguma coisa? São mais livres, mais abertos?

A criança pode criar muito mais com aquilo ou são já brinquedos com respostas dadas?

Acha que conseguiram mudar o olhar do professor?

Fizemos um filme, atualmente sendo finalizado, que conta esse processo. Vi educadores querendo sair de um lugar de respostas prontas, de cumprir um currículo e seus conteúdos. O educador está muito cansado do que vem de fora. Não foi difícil, as pessoas estavam querendo, não houve resistência para esse processo de escuta da criança. Quando fui levar o projeto para as escolas, que subsidiaram essa parceria, deixei claro que era uma parceria sem resposta definida; a gente estava criando um jeito de olhar junto e esse era o desafio. Eu sabia que algumas escolas gostam de propostas mais concretas e isso não existia, havia ali uma necessidade de flexibilidade para o novo, para o inesperado, para o aberto. “Olha, não é uma coisa fechada, não temos ideia do que isso pode gerar”. A gente tem uma estrutura de trabalho, mas aonde isso vai nos levar não temos a menor ideia. Foi super bacana a confiança dessas escolas. Vi abertura para romper com o pré-determinado, conseguir ouvir o outro da forma como ele é, e querer trazer para dentro dos muros a vida que existe lá fora.

Fale mais sobre a questão do olhar. Como se desenvolve essa competência?

Eu estou precisando refletir como poder dizer isso melhor. As pessoas estão me perguntando como se aprende isso: “você me ensina a olhar?”. Minha sugestão é estar aberto e não trazer suas interferências, pré-conceitos, respostas. Não ter respostas, não ter expectativas, ansiedades. O que vem tem que ser respeitado, acreditado. E poder, também, assumir o que existe e o que acontece dentro do mundo da simplicidade. Coisas aparentemente muito simples. A árvore, por exemplo. Criança tem um chamariz por árvore absolutamente incrível. Qual é a relação? É de simplicidade. Ela está sempre muito perto da árvore. Usa como sombra, usa os galhos para construções, para fazer algum brinquedo, como suporte das casinhas, é um espaço de grandes desafios, de grandes aventuras, é um acolhimento. A árvore está lá quieta, mas muito presente, acolhedora, sabe da importância da sombra para o brincar acontecer.

O chão e como a criança se relaciona com ele. Era preciso fazer um tratado da relação das crianças com o chão. As investigações que existem no chão, a necessidade de cavar, de encontrar mistérios debaixo da terra, achar coisas, as relações que estabelecem com as pedras. As pedras têm uma relação viva com a criança. Elas estabelecem uma relação vigorosa com o imaginário da criança, que sai quebrando pedras, jogando pedras, encontrando pedras preciosas, tesouros guardados com tanto afinco. Adoram achar as pedras preciosas. É olhar o simples e acreditar nele. Se a gente, por exemplo, confiasse na importância dessa relação da criança com o chão, não teríamos escolas com tanto concreto. Olhe o chão das escolas para ver o que acontece, isso diz tanto. O fato de não ter árvore, já diz tanto sobre a escola.

Será que a gente de fato sabe o que é a criança? Será que a gente conhece esse fenômeno que é infância? E a gente está respeitando isso dentro da escola? Estamos propondo olhar para os gestos mais genuínos das crianças, e tentando escutar o que dizem esses gestos? Não é uma teoria e muito menos um método, é um processo apurado de escuta.

O que as crianças experienciam em contato com a natureza, não acontece de uma outra forma. Se houver, dentro das escolas, por exemplo, um tanque de areia, isso é um oásis, sabe? Um lugar no qual brincam silenciosamente. Para mim, o silêncio, a introspecção, a intimidade, criam espaços internos fundamentais para todos nós. Criança sem acesso ao isolamento, ao aquietar-se, à possibilidade de criar e tentar sozinha, fica mais desconectada de si mesma. Dentro de todas as coisas possíveis de um tanque de areia, o silêncio para mim é uma das coisas fundamentais. Eles podem brincar quietos ali dentro. Estabelecem relações muito profundas. Cavar, preencher espaço, relacionar-se com mistérios, esconder objetos, a mão, o ir e vir do mistério. Tão necessário, principalmente para os pequenos, os menorzinhos.

Pois é, e ainda enfrentamos muita resistência de algumas escolas e creches em manter um tanque de areia por causa da sujeira, de bichos…

Se acreditassem e respeitassem essas coisas, certamente achariam formas para não ter bichos, sujeira… Se priorizassem, achariam soluções.

O que a gente pode fazer dentro dos pequenos espaços? Você falou da natureza, mas dentro do espaço urbano existem, sim, escolas sem nenhuma árvore, que não têm um metro quadrado de terra. Como podemos reconstruir esse espaço nesses limites e qual o papel das escolas?

Sabe quando você está na periferia observando os espaços e pensa “essa pessoa veio da roça”? Sabe essa pessoa que consegue plantar um pé de milho num pequeno furo que tem, sei lá, ali da casa dela? É esse grito: “eu preciso disso”, “isso é prioridade”. Nas creches existem muitas pessoas que compreendem isso, talvez só não confiem nisso como uma questão. São pessoas que muito mais do que eu, sabem plantar, sabem a importância de tudo isso, porque viveram a experiência que ainda permanece dentro delas. Então é um pouco essa relação de “olha, traga isso”. De várias pequenas formas, mas que de alguma forma seja feito: tragam água, areia, terra e pedra. Toquinhos de madeira, gravetos, cestos com folhas, sementes, coisas com as quais as crianças possam acessar tudo isso. Tanque de areia pode ser uma caixa de areia, um pouco de água (embora estejamos vivendo um momento difícil). Uma vez eu trabalhei numa creche e me dei conta de que as crianças não tinham experiência de corpo submerso, porque elas não tinham acesso à banheira, à piscina, rio ou mar. Então, eram crianças que nunca tinham tido o corpo submerso na água. E as crianças precisam desse tipo de alimento para o seu imaginário.

Posted in Revista Avisa lá #61.