O catador de papel e seu papel na comunidade

PAULO LORENZETI E DANIELA JENNIFER¹


PARA ALÉM DE USAR MATERIAIS RECICLÁVEIS COMO RECURSO PARA AS AULAS DE ARTES, ENTENDER MELHOR UM DOS ELOS DA CADEIA DO LIXO PODE CONTRIBUIR AO DESPERTAR DE UMA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA E AMPLIAR O OLHAR DOS ALUNOS PARA O CUIDADO COM A COMUNIDADE E SEU AMBIENTE


A ressignificação, pela arte, dos materiais descartados que estão ao nosso redor nos traz a possibilidade de conversar sobre as relações socioculturais e sobre o espaço no qual habitamos, trabalhamos e estudamos. Partimos da ideia de que meio ambiente é qualquer espaço no qual vivemos e nos desenvolvemos, e de que a arte, por meio de práticas sensíveis e perceptivas, nos abre para conhecimentos intuitivos, inventivos, interrogadores e, por assim dizer, transformadores. Dessa forma, a lógica das ações artístico-pedagógicas caminha do micro para o macro, ou seja, pensamos e agimos para cuidar de nosso “lugarzinho”, de nós mesmos e das pessoas com as quais nos relacionamos e, assim, contribuímos com a construção de um meio ambiente mais saudável para todos.

Além desse trabalho específico da aula de arte, em todo começo de ano letivo, os professores² incluem projetos para abordar o tema da reciclagem em suas aulas, como forma de cumprir um currículo de temas transversais. Utilizar uma temática significativa do nosso contexto para unificar e agregar disciplinas, professores e comunidade de um modo geral para o desenvolvimento do trabalho. Decidimos criar um projeto que se tornou um desafio, por ir além dos modelos de projetos até então desenvolvidos na escola.


1 Paulo Lorenzeti é arte-educador e Daniela Jennifer é professora polivalente na Escola Estadual Professora Diva Gomes dos Santos, Mauá – SP.
2 Escola Estadual Professora Diva Gomes dos Santos, Mauá – SP.

O centro e objeto de estudo dessa proposta foi um agente ligado diretamente ao trabalho com o lixo: o coletor de materiais recicláveis, vulgo catador, que como seu trabalho está presente em nossa rotina. As crianças e os professores, no trajeto de ida e volta da escola, se deparam com esses trabalhadores e muitos de nossos alunos são seus filhos ou netos. Nosso principal objetivo era criar uma aproximação com o universo do catador, compreender como funciona o seu trabalho, qual a sua importância e como poderíamos contribuir com ele.

O centro e objeto de estudo dessa proposta foi um agente ligado diretamente ao trabalho com o lixo: o coletor de materiais recicláveis, vulgo catador, que como seu trabalho está presente em nossa rotina. As crianças e os professores, no trajeto de ida e volta da escola, se deparam com esses trabalhadores e muitos de nossos alunos são seus filhos ou netos. Nosso principal objetivo era criar uma aproximação com o universo do catador, compreender como funciona o seu trabalho, qual a sua importância e como poderíamos contribuir com ele.

Como educadores, temos procurado criar uma cultura de reutilização através da arte, fazendo com que os alunos enxerguem possibilides de uso do lixo através de um estimulo à imaginação criadora, propondo sempre exercícios de ver as coisas além do que elas são e o que elas podem vir a ser. Uma educação do exemplo, onde os alunos apreendem muito das atitudes do professor, de um “professor-artista”, cujas formas de ver e atuar no mundo, seus pequenos gestos e delicados cuidados estéticos, são capazes de construir significados e ações concretas. Ações estas que vão influenciar diretamente nas aprendizagens, pois o professor ensina o que é, e não somente aquilo que sabe.


3“Sala de aula: experiências para além da visitas/expedições”, em Mediação cultural para professores andarilhos na cultural, de Miriam Celeste Martins e Gisa Picosque. São Paulo: Intermeios, 1998.

Mirian Celeste Martins e Gisa Picosque³ falam do professor como escavador de sentidos:

(…) Como professores andarilhos na cultura nutridos cotidianamente pela contemporaneidade, em estados de invenção, atentos e sensíveis aos outros que conosco vivem processos educativos, poderemos potencializar olhares outros sobre a cultura que está em nosso entorno. Escondida ou exposta dentro dos espaços expositivos, nas cidades e no campo, na periferia, no centro, ela pode se tornar provocação para ir além das simplificações banais, do consumismo desenfreado ou das produções valorizadas apenas pela má mídia.

Em uma primeira conversa com a turma, constatou-se que grande parte das crianças da sala tinha medo da figura do catador, pois suas roupas eram sujas, cheiravam mal, e algumas famílias até recomendavam que se mantivessem longe deles. São geralmente conhecidos como “homens do saco”, pessoas que levam embora crianças que são desobedientes com seus pais. Nessa ocasião, a professora pediu pra que eles escrevessem algumas perguntas se caso tivessem a oportunidade de conversar com um catador. Perguntas que revelaram ao mesmo tempo as curiosidades e os preconceitos relacionados ao trabalho do catador:

– Há quanto tempo você realiza esse trabalho? É difícil? Ganha muito dinheiro?
– Você sente vergonha de trabalhar com reciclagem? As crianças correm de você?

É interessante notar que apesar de fazerem parte do cotidiano de nosso bairro, os catadores ainda são pessoas sujeitas à antipatia, devido às suas péssimas condições de trabalho e da falta de reconhecimento social. Parecem representar muito mais a miséria, a exclusão do que uma ocupação, um trabalho. Embora exista uma vaga compreensão da importância da coleta seletiva, a sociedade de um modo geral, ainda mantém o catador à margem tornando-o tão invisível quanto o lixo que ela descarta, e o profissional fica assim, vulnerável a todo o tipo de preconceito.


4 Site do projeto: http://www.pimpmycarroca.com/

Na aula de artes, dando continuidade ao assunto, mostrei a eles o trabalho do artista grafiteiro Thiago Mundano e o seu projeto “Pimp My Carroça”4, que teve sua primeira edição em junho de 2012 na cidade de São Paulo. O título do projeto faz uma alusão irônica ao programa de televisão americano Pimp my ride, que transforma latas-velhas em carros turbinados. Thiago em parceria com outros artistas profissionais e apoiados por doações públicas, através de financiamento coletivo, reformaram os carrinhos dos catadores de material reciclável. Realizaram verdadeiras obras de artes com a linguagem do grafite, trazendo um pouco mais de dignidade e visibilidade a esses trabalhadores tão desumanizados. Além da pintura e das reformas feitas nas carroças, o projeto “Pimp My Carroça” conta com ações sociais que ampliam os cuidados com os catadores. São realizados atendimentos odontológicos, oftalmológicos e palestras sobre drogas e alcoolismo, que visam valorizar e ampliar a autoestima desses profissionais. Ao término do evento, acontece uma grande “carroceata”, onde os catadores, em grande estilo, desfilam pela cidade, exibindo as obras de arte em que se transformaram suas carroças.

As crianças ficaram muito impactadas com os trabalhos do artista e sua atitude em ajudar os catadores através de sua arte. “Ele deixou o trabalho deles mais bonito, professor”, comenta a aluna Maria Luiza.

Após a apreciação, propus aos alunos que construíssemos pequenas carroças de papelão para fazermos nossas próprias pinturas. As “carroças-esculturas”, como chamamos depois, foram feitas com caixas de papelão e latas. Ao construí-las, fomos aprendendo sobre as partes que constituem uma carroça verdadeira, entendendo as artimanhas de seu funcionamento. Em seguida, as decoramos com formas geométricas que estávamos estudando em outro projeto, como hexágonos, círculos, triângulos, e escolhemos algumas frases do trabalho do Thiago Mundano para escrevermos e montarmos uma exposição pela escola. A exposição chamou muito atenção de todos e pudemos estender o assunto para as outras salas.

Aproximação e mudança

A partir daí, decidimos convidar um catador que residia próximo à casa da professora Daniela, um conhecido seu, para que pudéssemos fazer uma entrevista. O sr. Adauto, de 65 anos, é pai de família e tem dois filhos. Desde que perdeu uma parte de sua audição, quando trabalhava em uma empresa, sobrevive da coleta do lixo, de onde tira seu sustento.

Ele ficou muito contente com o convite e foi até a escola, com toda a sua generosidade, conversar conosco, levando inclusive, sua mega-carroça. Preparamos uma sala para a entrevista, colocando as cadeiras em círculo e dispondo os carrinhos feitos pelas crianças bem no centro. Ao adentrar a sala, o catador se sentiu bem à vontade e ficou surpreso com os carrinhos, disse que estavam bem bonitos e parecidos com os originais. “Tem até freios”, comentou. A conversa transcorreu num clima misto de admiração e respeito por parte de todos. O sr. Adauto respondia com calma a perguntas como:

– Para onde é levado o material coletado nas ruas do bairro?
– Dá para sobreviver com o dinheiro da reciclagem?

E assim, pouco a pouco, as palavras do convidado iam desconstruindo aquela imagem equivocada que se tinha do catador, ao ponto das crianças manifestarem com entusiasmo o quanto tinham achado o Sr. Adauto legal. Disseram que iriam, a partir daquele momento, pedir aos seus pais que ajudassem a deixar o lixo separado em suas calçadas para facilitar o trabalho do catador.

Ao final, ele nos convidou para conhecer a sua carroça que estava no pátio da escola e nos demonstrou vários detalhes interessantes, como por exemplo, a organização do lixo dentro da carroça, e como faz uso de ímãs para separar o lixo que contém metal do lixo orgânico. As crianças puderam sentir o peso, o cheiro, a temperatura e, por instantes, se colocarem no lugar do Sr. Adauto. Foi uma experiência e tanto. A entrevista terminou com um pedido: pintarmos a carroça dele. A resposta foi afirmativa, todos vibraram!

Combinamos uma data para ele trazer sua carroça e, até lá, fomos nos preparando para a realização da pintura. Primeiro, precisávamos saber qual seria o desenho e a frase a ser escrita. A proposta que se seguiu foi a de cada criança criar e desenhar um personagem e uma frase, baseando-se nos modelos dos trabalhos dos artistas do projeto “Pimp My Carroça”, para depois fazermos uma escolha coletiva do desenho mais coerente com a proposta. Dois trabalhos foram os escolhidos: o desenho de Fernando e as frases de Maria. Com essa junção, tínhamos nosso rascunho definido. Nesse processo todo, o pai da aluna Julia Alves, sensibilizado pela proposta, decidiu colaborar fazendo a doação de todo o material necessário para a pintura.

Chegado o dia tão esperado, o sr. Adauto levou sua carroça até a escola e nos confiou a missão de cuidar bem dela. Teríamos apenas o período da tarde para realizar o trabalho, e tudo precisava ser bem organizado. Separamos a turma em pequenos grupos que iam se revezando nos processos de lixar, fazer a pintura base, os desenhos e acabamentos. Foi extremamente interessante vê-los envolvidos por inteiro na atividade, pois estavam lidando com várias situações novas na produção criativa: o uso de diferentes materiais, rolinhos, pincéis de grande formato, tintas de outras consistências, molde vazado, pintura sobre suportes de madeira e metal. Seus olhares e postura corporal eram de cuidado e satisfação. Sr. Adauto ficou muito contente e realizado com o resultado do trabalho, e saiu da escola muito agradecido.

É por meio de pequenas ações como essa, de entrarmos em contato direto com o outro e de criarmos um espaço de escuta e sentido das diferentes realidades, que podemos ir descontruindo, aos poucos, os preconceitos relacionados ao desconhecido, aprendendo assim a transpor os muros que nos separam do respeito, da valorização e do convívio na diversidade.

As crianças viveram uma experiência marcante para além da criação artística e talvez para resto de suas vidas. Aprenderam a se sentir imensamente gratas por estarem ajudando a tornar a vida de outra pessoa um pouco mais bonita através da arte, que tem a capacidade de “transformar”, mesmo que por pequenos instantes, qualquer realidade, até mesmo a dura realidade do lixo, do lixo nosso de cada dia.

Posted in Revista Avisa lá #61.