É assim que se escreve?

CÉLIA REGINA DA SILVA, ELAINE CRISTINA GUZZI DA SILVA, GLÁUCIA ANDREA VIEL, LUCÉLIA RODRIGUES MENDES E ROSYCARMEN PONTES GESTAL ALVARES¹


QUEM DISSE QUE CRIANÇAS PEQUENAS NÃO TÊM IDEIAS PRÓPRIAS SOBRE COMO SE ESCREVE? UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DA REDE MUNICIPAL DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO DESVELOU AS INTERESSANTES IDEIAS E PRODUÇÕES DE CRIANÇAS DE 4 A 5 ANOS, COMPROVANDO QUE TODAS ELAS PENSAM, MUITO ANTES DE SEUS PROFESSORES AS ENSINAREM A ESCREVER


Reconhecer que as crianças pensam sobre o mundo muito antes de os adultos apresentarem formalmente a elas conteúdos é hoje um ponto de partida para nosso município. Em todos os conteúdos tratados em nossa formação, sempre nos preocupamos em ver o que as crianças já sabem e o que elas fazem com relação a esses conteúdos. Analisar os desenhos delas, reconhecer o repertório de faz de conta de cada escola são exemplos do que consideramos importante conhecer de fato. E é nesse contexto que incluímos a escrita, uma linguagem presente na vida de todos.

A seguir, relataremos parte da experiência com os professores de nossa rede que teve como intenção
dar visibilidade às ideias das crianças sobre a escrita e, ao mesmo tempo, promover um momento de reflexão dos professores sobre a curiosidade e a iniciativa das crianças na Educação Infantil.²

Os encontros de formação continuada (professores de Educação Infantil e Ensino Fundamental) acontecem no espaço escolar e na Secretaria Municipal de Educação, alternadamente, com duração
de 3 horas semanais³. Esse tempo faz parte da jornada de trabalho de todos os professores, além das reuniões de Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC), atendimento aos pais e horas de estudo, regulamentado na carga horária de trabalho.


1 Equipe de formação de professores da Rede Municipal de São José do Rio Preto (SP).
2 A formação de professores da Rede Municipal de São José do Rio Preto já tem um percurso histórico, iniciado com ações formativas
voltadas para ciclos de palestras, cursos, seminários, oficinas etc. Gradativamente, a formação continuada foi ganhando destaque por meio dos programas de formação, cujo propósito era valorizar a construção do conhecimento dos educadores a partir da própria prática. O desenho da formação que desenvolvemos hoje foi estruturado com discussões temáticas desde 2010, inicialmente em parceria com o Instituto Avisa Lá por meio de programas à distância.

Reconhecer saberes das crianças

Neste ano, as discussões têm acontecido em torno das práticas de leitura e de escrita4, pois sabemos que ao chegarem à escola as crianças já possuem ideias sobre o assunto. Portanto, reconhecer e refletir sobre o que pensam as crianças quando são convidadas a participar de situações de escritas deve ser um movimento constante dos educadores. Neste sentido, apostamos na ação dos professores em proposições de escrita como forma de comunicação, assim como acontece na vida cotidiana, pois quando as crianças veem sentido em escrever, mesmo quando não sabem escrever convencionalmente, seu envolvimento é maior, e é por meio dessas experiências que os professores podem criar condições para que elas pensem sobre como se lê e como se escreve.

Os conteúdos foram levantados a partir do reconhecimento das práticas recorrentes na Rede, por meio da análise dos materiais enviados pelos professores, exemplos das atividades que eles têm por hábito mediar, tendo como viés as concepções que sustentavam tais práticas.

Nosso trabalho apoia-se em uma concepção de leitura e escrita que assume a importância de se ter um contexto comunicativo real, com uma função social clara. Para nós, os conteúdos da Educação Infantil devem ser as práticas de ler e escrever, e não as letras, a coordenação motora e outras ideias que comumente fazem parte das concepções de muitos professores que acreditam nisso como pré-requisitos para outras aprendizagens. Entendemos, como Delia Lerner, que a leitura é objeto de ensino, mas também deve ser vista como foco das aprendizagens.

[…] a leitura é antes de mais nada um objeto de ensino. Para que também se transforme em um objeto de aprendizagem, é necessário que tenha sentido do ponto de vista do aluno, o que significa – entre outras coisas – que deve cumprir uma função para a realização de um propósito que ele conhece e valoriza. Para que a leitura como objeto de ensino não se afaste demasiado da prática social que se quer comunicar, é imprescindível “representar” – ou “reapresentar” –, na escola, os diversos usos
que ela tem na vida social. (LERNER, 2002)


3 A Rede Municipal possui 52 escolas de Educação Infantil, contando com 498 professores e 7.538 crianças entre 4 e 5 anos. Há 202
turmas em período integral e 94 em período parcial.
4 Em anos anteriores, estudamos com os professores alguns conteúdos ligados à Arte e à Brincadeira das crianças de 4 e 5 anos.

Nessa perspectiva, procuramos reconhecer e dar visibilidade a todas as situações do cotidiano nas quais se pode colocar as crianças em contato com a leitura e a escrita, sem artificializar a comunicação ou escolarizar as práticas. Por exemplo:

♦ Agenda do dia (Rotina)
♦ Cardápio
♦ Ingredientes da receita (culinária)
♦ Títulos das histórias lidas na semana
♦ Lista de nomes da turma
♦ Lista das brincadeiras escolhidas para a semana
♦ Cartaz com itens que vão precisar da contribuição dos pais
♦ Lista dos itens que vão levar para o piquenique
♦ Aniversariantes do mês
♦ Alunos que faltaram
♦ Ajudantes do dia
♦ Etc.

Em seguida, convidamos as professoras da Rede a olharem o percurso de escrita de suas crianças, com o propósito de ampliar seus conhecimentos sobre o que sabem e como pensam as crianças sobre a prática de escrever. Insistimos para que esse estudo fosse feito independente de classificação de fases de escrita, pois queríamos que os professores soubessem que analisar não significa somente dar nome às fases de escrita, mas sim informar-se sobre o contexto de produção, saber ler as marcações da leitura das crianças, levantar ideias sobre suas produções para além da marca gráfica, reconhecer o quê e como elas pensam esse complexo mundo representado pelo texto.

Propusemos, então, às professoras que desenvolvessem uma proposta de escrita de lista com seus alunos, com encaminhamentos detalhados, criando um contexto comunicativo claro. Nesse primeiro contato das professoras com essa produção, evitamos um modelo formal de sondagem porque não queríamos provocar nenhuma situação de checagem ou de teste, e sim a prática de escrever em uma situação de uso real. Insistimos para que cada professora pudesse criar uma verdadeira situação comunicativa, decidindo o melhor contexto para que as crianças se sentissem motivadas e se empenhassem em suas escritas.

Orientação no encontro de formação

Proposta de atividade de escrita de lista pelas crianças

Para o próximo encontro você deve pesquisar algumas escritas das crianças. Para tanto, prossiga da seguinte maneira:

♦ Proponha às crianças a escrita de uma lista que tenha sentido para elas e que tenha um contexto comunicativo, como uma pesquisa sobre os doces e os salgados mais gostosos da festa junina, os brinquedos favoritos, a lista das brincadeiras juninas, a lista das barracas da festa etc.
♦ Decidido isso, primeiramente converse com as crianças sobre o que vão escrever.
♦ Ofereça uma folha de sulfite em branco e lápis.
♦ Sorteie o nome de duas crianças para focar os seus estudos nessa tarefa.
♦ Você companhará essas duas crianças, observando como escrevem, cuidando para que cada uma faça a sua lista. Nesse momento é importante que você não faça intervenção alguma, pois o que se quer é que as crianças sintam-se à vontade para escrever como sabem. Os demais realizarão a proposta sem sua observação direta.
♦ Não ditar as palavras da lista. Pergunte às crianças qual a primeira palavra que irá escrever e anote nos seus registros. Proceda da mesma maneira com as demais palavras. As crianças poderão escolher de 4 a 6 palavras para escrever a sua lista.
♦ Em uma folha à parte, faça seus registros sobre como as crianças escrevem.
♦ Peça às crianças para ler o que escreveram e faça anotações na sua folha. Depois, quando as crianças deixarem a mesa, retome suas anotações e faça as marcações (setas, alças, traços, a tradução do que escreveram etc.) necessárias na folha da criança para registrar a leitura sobre a sua própria escrita.
♦ Marque no verso da folha os dados da criança: nome, turma e idade.
♦ Envie as escritas das crianças e seus registros sobre essas escritas por malote à Gerência de Capacitação, aos cuidados da formadora da sua turma: GRUPO I – até 27 de junho, GRUPO II – até 3 de julho.

Os professores envolveram-se com a proposta e, como resultado, nos devolveram um rico material que contava com mais de 500 produções escritas de crianças pequenas.

Como tínhamos muitas escritas, estabelecemos alguns critérios para a escolha de uma amostra que seria tomada como objeto de análise dos grupos de professores, nos encontros de formação da quinzena. Todas as escritas foram dispostas em uma grande mesa de forma que pudéssemos olhar uma a uma com o encantamento que nos permitimos vivenciar por estarmos diante de tantos saberes das crianças. Depois pensamos em um percurso das escritas passamos então a agrupá-las em conjuntos que apresentassem saberes em comum, mesmo que, em um rápido olhar, saltassem aos olhos marcas gráficas tão inusitadas.

Entendemos que analisar uma amostra de escrita nos permitiu focar as discussões e possibilitou ao grupo reconhecer a variedade de escritas que surgiram. Os critérios deveriam propiciar aos professores um olhar sobre o percurso e não apenas para fragmentos das escritas das crianças, compreendendo que elas revelam saberes desde as marcas mais primitivas e não somente nas produções em que já fazem uso das letras ou se aproximam da escrita convencional. Foram consideradas para compor essa amostra as seguintes orientações:

♦ Identificar os saberes que as crianças revelam em cada escrita analisada.
♦ Selecionar, dentre as produções, modelos de escritas que representassem a totalidade, de forma que os professores pudessem reconhecer e validar as escritas apresentadas.
♦ Agrupar escritas com saberes aproximados (características comuns).
♦ Organizar as escritas em ordem crescente de conhecimentos observados nas produções, evidenciando
desta forma a ideia de um percurso das escritas.

Do produto dessa análise, organizamos oito conjuntos com cinco escritas em média, representando
o percurso das escritas das nossas crianças.

Aprendendo com as crianças

No encontro de formação, iniciamos o estudo conversando sobre como foi desenvolver a proposta na prática. A seguir, partilhamos trechos relatados pelos professores sobre como as crianças se viram nessa atividade comunicativa, como reagiram, o que perguntaram, do que gostaram e as dúvidas que surgiram:

[…] usou quatro letras para escrever morango, quando leu percebeu que as letras eram poucas, então me disse: – Falando é grande, mas para escrever fica pequeno. Escorregador demora para falar, então é uma palavra grande.

(fala de criança)

Em seguida, passamos a analisar com mais atenção o pensamento das crianças sobre o que estavam grafando. Propusemos a divisão dos professores em oito pequenos grupos. Cada grupo recebeu um conjunto de escritas. Essa orientação favoreceu um diálogo mais focado na proposta para que todos tivessem oportunidade de falar, serem ouvidos e, sobretudo, que pudessem aprofundar as discussões e levantar os saberes específicos daquele conjunto.

O produto das discussões foi socializado coletivamente. Nesse momento, cada pequeno grupo compartilhou suas ideias, enriquecidas com as contribuições dos demais.

Ressaltando a ideia de percurso, iniciamos trocas entre os grupos, lançando o desafio de pensar sobre qual seria o primeiro conjunto de escritas. Na sequência deviam apontar os saberes que cada conjunto de escritas apresentava, Deviam levar em conta o conhecimento sobre o gênero proposto, no caso, uma lista, e conhecimentos sobre o sistema de escrita, que marcas gráficas apareciam, se usavam letras, se apresentavam critérios de quantidade etc., como podemos observar nos exemplos abaixo.

Nessa proposta, ficou claro para nós, formadoras, o que foi mais facilmente observado, o que foi difícil notar e o que os professores descobriram ao realizarem esse trabalho, como mostra o box da página ao lado:

Outro indicador muito importante para a equipe de formação foi o conjunto de sínteses realizadas por grupos de professores em cada encontro, com reflexões a partir das discussões propostas:

[…] a análise das escritas nos faz observar que a escrita apresenta um percurso, facilitando-nos compreender com maior clareza o que sabem e pensam as crianças. […] fomos convidadas a refletir sobre o que as crianças sabiam sobre a escrita, sem rotulá-las em hipóteses ou fases de desenvolvimento. O importante é considerar os saberes não como melhores ou piores, mas sim diferentes. Às vezes, desconsideramos o que a criança nos mostra e lhe oferecemos o que achamos que ela precisa e não realmente o que tem sentido para ela. Ainda que algumas crianças tivessem as mesmas idades, suas produções eram bem diferentes, isso depende muito das experiências vivenciadas. […] deixar a criança escrever levando em consideração o que ela escreve, por isso aprende e não aprende, por isso escreve.

Alguns saberes levantados pelos professores durante a análise das escritas de listas pelas crianças, levando-se em conta os saberes, vão sendo compartilhados, ao longo do percurso:

♦ A escrita deixa uma marca. Essa marca é diferente do desenho. O gesto é, muitas vezes, imitação da escrita do adulto.
♦ A escrita é linear. Demonstra conhecer características do  gênero lista.
♦ Para escrever é preciso letras.
♦ Apoia-se na escrita estável do próprio nome para outras escritas. Preocupa-se em modificar a ordem das letras para a escrita de palavras diferentes.
♦ Utiliza um repertório variado de letras que vai além das letras do próprio nome.
♦ Começa a perceber que a escrita tem uma relação com a fala, utilizando uma letra para cada sílaba da palavra. Utiliza três letras como critério de quantidade mínima (como em maçã).
♦ Além da preocupação com os aspectos quantitativos, já utiliza critérios qualitativos para escrever.
♦ Presença da fonetização (relação sonora com cada sílaba da palavra).
♦ Já faz uso de boa parte das regras do sistema de escrita. Já percebeu que nem sempre uma letra é sufi ciente para representar uma sílaba.

Na sequência, propusemos pensar em boas propostas e como desenvolvê-las de modo a alimentar a curiosidade e a reflexão das crianças. Pensar em boas propostas nesse momento tinha como objetivo que os professores compreendessem a importância de reconhecer o que as crianças sabem e como elas pensam os problemas que lhes são propostos, para que pudessem planejar boas situações de aprendizagem, um contato mais significativo das crianças da Educação Infantil com a escrita.

Aprendendo com as professoras de nossa Rede

A análise, as discussões e reflexões sobre as escritas das crianças e os saberes que elas revelam levaram os professores a:

♦ ampliar o olhar sobre o que sabem e como pensam as crianças à respeito da prática de escrever, independente do nome da fase em que elas estão;
♦ compreender por que se deve analisar escritas de crianças;
♦ tomar consciência de um possível diagnóstico de escritas da sua turma;
♦ tomar consciência das atividades que permitem as crianças avançarem em suas aprendizagens, compreendendo que as escritas cotidianas devem se configurar como situações de aprendizagem, contando com a participação das crianças.
♦ saber que as crianças têm conhecimento sobre a escrita antes mesmo de fazerem uso das letras;
♦ saber que analisar as escritas é fundamental para o planejamento de boas situações didáticas, pois o objetivo é refletir sobre o sistema de escrita ajustado aos desafios;
♦ fazer uso das situações de contextos comunicativos cotidianos para práticas reais de uso e produção da escrita, promovendo maior envolvimento e sentido para as crianças.

Contudo, para que esses saberes construídos pelos professores tenham repercussão na aprendizagem das crianças, é necessário que o trabalho de sala tenha o acompanhamento das coordenadoras pedagógicas. Para tanto, as coordenadoras passaram a discutir, em seus encontros de formação na Secretaria de Educação, os conteúdos da formação de professores, bem como as estratégias formativas na perspectiva da sua atuação de formador local.

Para nós, formadoras, essa experiência nos aproximou dos fazeres da escola, dos professores e das crianças, pois essa atividade ultrapassou o sentido de tarefa, especialmente porque permitiu estabelecer um diálogo, uma parceria entre equipe de formação da Secretaria da Educação com os professores e sua prática com o objetivo de qualificar as práticas de leitura e escrita da Rede Municipal para melhor aprendizagem de nossas crianças.

Esse trabalho propiciou o aprofundamento de nossos estudos, de nossas pesquisas, tão determinante para o planejamento dos encontros seguintes. Essa ação clareou o encaminhamento de novas proposições para os professores em práticas de leitura e escrita no cotidiano da escola.

Posted in Revista Avisa lá #58.