Para gostar de escrever

SILVANA AUGUSTO¹


QUEM DISSE QUE PROFESSOR NÃO GOSTA DE ESCREVER? A EXPERIÊNCIA COM UM GRUPO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO INFANTIL E DE ENSINO FUNDAMENTAL MOSTROU COMO A ESCRITA LITERÁRIA PODE SER UM EXERCÍCIO POSSÍVEL E PRAZEROSO PARA QUALQUER UM, ATÉ PARA OS QUE ACHAM QUE A ESCRITA É UMA PEDRA NO SAPATO


O estímulo à leitura e à escrita tem sido a marca de inúmeros programas de formação nos dias de hoje. Logo nos primeiros encontros perguntamos sobre o hábito de leitura de cada um por meio de um questionário de estudo de perfil. Ao longo da formação procuramos ampliar esse repertório, oferecendo referências nos momentos de leitura compartilhada. A experiência com a formação de professores leitores me levou a pensar mais profundamente na formação dos professores como escritores.

Em 2007, eu era formadora de um grupo de educadores na zona sul de são Paulo quando tive acesso às pesquisas sobre leitura no Brasil. Marisa Lajolo, pesquisadora e ensaísta, citava estudos que desvelavam o papel que livros, como os romances de banca de jornal, as histórias de detetive, dentre outros que não são clássicos da literatura, ocupavam na formação do leitor brasileiro.

Intrigada com o que tinha aprendido com essa pesquisadora, resolvi investigar essa questão com o meu grupo de professoras. Nas respostas ao questionário inicial de estudo de perfil, a maioria do grupo dizia que não tinha hábito de ler, não citava nenhum título lido no último ano. Retomando as respostas iniciais e insistindo um pouco mais, presencialmente, eu descobri que todas elas liam, sim, muitos romances espíritas. Mesmo as professoras católicas ou de outras religiões. E quando eu perguntei por que elas não tinham me dito isso quando eu perguntei sobre o que elas liam, disseram que não achavam que aquilo “valesse” como leitura. E foi uma surpresa descobrir que havia um repertório enorme de obras dos mesmos autores compartilhado naquele grupo. Elas sabiam todos os títulos de um e de outro autor e várias já tinham lido todos. Quando não, já tinham inscrito para emprestar de uma colega, assim que ela acabasse. Um troca-troca de romances passando de mão em mão, toda semana, desde sempre, só eu não sabia.


1 Coordenadora pedagógica dos cursos a distância do Instituto Avisa Lá e professora do Instituto Superior de Educação Vera
Cruz, em São Paulo (SP).

Naquele dia, elas passaram a recontar os enredos favoritos. Aquilo me fez pensar o quanto eu havia sido preconceituosa ao aceitar que as professores não liam. Elas liam e tinham suas preferências: narrativas heróicas, histórias de superação, relatos do sofrimento humano cheios de esperança e chances de reviravoltas para reparar os erros. Validar essas preferências ajudou a fazer escolhas de textos como formadora e mudou meu modo de abordar cada novo grupo e seu conhecimento sobre determinado
assunto.

O que você escreve?

Em 2012, eu tive a oportunidade de trabalhar com um grupo de professores do Tocantins, do município de Colinas. A proposta era trabalhar com um conteúdo de escrita, uma demanda importante nos planejamentos dos professores em discussão naquele momento. Então, eu me peguei pensando: será que é verdade que os professores não têm o hábito de escrever? Será que eles têm tanta dificuldade assim e de fato não gostam de escrever? Pode ser que, tal como já ocorrera da outra vez, eles tivessem, sim, o hábito de escrever e até gostassem e, nesse caso, quais seriam as suas reais práticas escritoras? Para saber disso, não perguntei se elas escreviam, mas sim o que é que elas escreviam. E, sondando o grupo, descobri que todas tinham alguma prática de escrever. As professoras listaram todas, por ordem de preferência ou de prioridade.

As práticas mais comuns, obviamente, eram as profissionais. A professora Silvana, por exemplo, assim como outras colegas de profissão, disseram ter a prática de escrever relatórios de seu trabalho na escola. Cícera, além dos relatórios, também elaborava pautas de reuniões. Joana gostava de escrever para estudar.

Os textos que nos ajudam a organizar o cotidiano também apareceram: Elaine, por exemplo, escrevia receitas; Socorro fazia listas para tudo. Solange preparava planilhas para organizar os orçamentos de tudo o que gastaria em casa. Valdete sempre escrevia bilhetes para o marido, para avisar que tinha saído, para informar onde estava. E Joana D’arc não riscava o dia 31 de dezembro na folhinha sem registrar planos, tudo o que ela planeja fazer no ano-novo. E nos disse que gosta de conferir no final, quando o ano-novo vira o ano velho.

Às vezes a escrita tem o papel de apoiar a memória, serve para preservar ideias ou palavras muito importantes. Maria de Jesus, por exemplo, contou que gosta de escrever um sermão quando precisa chamar a atenção de alguém. Ela acha que as palavras ditas magoam, mas a escrita ajuda a pessoa a refletir sobre o que fez. Cida disse que até hoje coleciona versos e mensagens em um caderno. Já Ivonete tem o hábito de copiar o hino e anotar sermões e palavras fortes que escuta na igreja.

Foi interessante compartilhar o valor que elas atribuem a essas práticas, um sentido pessoal construído na experiência de escrever em situações especiais. Keila escreve mensagens SMS (torpedos) quando briga com os filhos. Clélia gosta de surpreender o marido deixando em seu bolso cartas de amor. Lucinéia fez uma agenda para acompanhar toda a sua gravidez, mês a mês. Maria José, que tinha muito medo de complicações no parto, fez um relatório detalhado de tudo o que se passava com ela, incluindo determinados procedimentos, para que não houvesse nenhuma dúvida sobre como deveriam cuidar de seu bebê caso precisasse ficar mais tempo no hospital.

Havia também práticas de escrita literária. Leonina gosta de escrever cartas, mesmo que sem destinatário certo. Ela mantém um diário desde criança. Maria Beraldina também. Ela era a única mulher, em um grupo de 53 participantes, que escreve poemas. E gosta muito de escrever. Ela disse, confidente: Tenho uma intuição, eu acho que um dia eu ainda vou escrever um livro da minha vida.

Essa primeira atividade foi fundamental para desmistificar a escrita como algo difícil, frio e distante de nossa vida. Reconhecer-se capaz de escrever era o primeiro passo para experimentar a escrita como um exercício lúdico e criativo.

O encontro com o fantástico na literatura

Para a oficina, eu havia escolhido trabalhar com a produção do texto literário. Tinha como objetivo principal fazer com que as professoras tivessem a experiência de se divertir com a escrita criativa, que a vissem como possibilidade de expressão. Esperava, assim, criar bases para uma reflexão sobre a importância de conhecer o gênero e os propósitos como condições necessárias aos alunos para a produção de textos.

O que é literatura fantástica

Um anjo que machuca as asas cai em um quintal e se esconde junto às galinhas. Um homem malvado que aparece sorrateiramente à noite para jogar areia nos olhos das crianças que não querem dormir. Alguém que, em um certo dia, descobre ao acordar que virou uma barata. Nada disso existe na vida real. Mas, quando bem narrados, seguindo uma lógica interna própria da magia ou do estranho, faz com que qualquer um entenda e aceite. Isso é literatura fantástica, um gênero marcado pela magia, pelo estranho, surreal, fantasioso, inverossímil e até mesmo absurdo.

O crítico literário Todorov² classificou a literatura fantástica em quatro tipos. O primeiro deles é o fantástico-estranho, caracterizado por narrativas sobrenaturais desvendadas ao final por uma explicação lógica. Os contos fantásticos e assustadores de Ernst Theodor A. Hoffmann (Alemanha, 1776-1822), como o Homem de areia, é um bom exemplo desse tipo. São traços dos personagens e dos fatos da narrativa fantástica-estranha as coincidências, a ilusão, a loucura. O segundo tipo é o fantástico-maravilhoso. Ele marca as histórias que são inteiramente fantásticas do início ao fim, que não aceitam explicações racionais, ao contrário, só faz sentido em sua própria lógica sobrenatural. Alice no País das Maravilhas talvez seja a história mais conhecida desse gênero. Há ainda o estranho  puro, caracterizado por histórias que, embora surpreendentes, ainda podem ser explicadas pela razão. Isso é muito diferente do maravilhoso puro em que os acontecimentos mágicos se justificam em si, como acontecem, por exemplo, nos contos de fadas.

Há muitos escritores fantásticos: Hoffmann, Gabriel García Márquez (Colômbia, 1927) e Jorge Luis Borges (Argentina, 1899-1986) são importantes autores de literatura fantástica. No Brasil, Murilo Rubião é o mais representativo autor do gênero.


2 Introdução à literatura fantástica, de Tzvetan Todorov. São Paulo: Perspectiva, 1998 (Coleção Debates).

Queria criar um contexto em que escrever fosse uma experiência interessante em si, independente de qualquer mensagem que se pudesse transmitir. Por isso, escolhi referenciar o grupo com um conto típico da literatura fantástica de Murilo Rubião.

Iniciei a roda de leitura contando um pouco sobre a vida e a prática de escrita de Murilo Rubião. Diferente do que se costuma imaginar, o texto literário não nasce facilmente de uma só vez, como um momento de inspiração. Ao contrário, é fruto de muitas reescritas. Murilo Rubião talvez seja um dos mais radicais exemplos disso: sua obra é relativamente pequena; no entanto, seus contos possuem várias versões. Algumas reescritas são simples, resultando em mudanças de algum vocabulário ou alterando a ordem de algumas frases. Outros, ao contrário, recebem novas versões, completamente diferentes das originais. Essa peculiaridade faz com que a obra desse autor seja tão interessante para quem estuda literatura: compreender o que rege o pensamento do escritor nessas suas reescritas pode revelar aspectos interessantes do próprio processo de produzir textos. A reflexão sobre esse autor nos leva a ver que a escrita não pode ser vista apenas como resultado final impresso em papel, mas, sim, um complexo processo de planejamento, de múltiplas revisões e de sucessivas reescritas.

Escrita como processo

Escolhi ler para o grupo o conto Bárbara. “Bárbara gostava somente de pedir. Pedia e engordava.” É assim que começa essa história surpreendente de um rapaz que se casa com uma garota bonita e muito caprichosa. A característica principal dessa personagem é seu incessante desejo soberbo. Não havia um só desejo que a moça pronunciasse que seu apaixonado esposo não fosse buscar: um baobá, um navio, o próprio mar.

Pediu o oceano.
Não fiz nenhuma objeção e embarquei no mesmo dia, iniciando longa viagem ao litoral. Mas, frente ao mar, atemorizei-me com o seu tamanho. Tive receio de que minha esposa viesse a engordar em proporção ao pedido, e lhe trouxe apenas uma pequena garrafa contendo água do oceano.  No regresso, quis desculpar meu procedimento, porém ela não me prestou atenção. Sofre gamente,
tomou-me o vidro das mãos e ficou a olhar, maravilhada, o líquido que ela continha. Não mais o largava. Dormia com a garrafinha entre os braços e, quando acordada, colocava-a contra a luz, provava um pouco da água. Entrementes, engordava.

À medida que o absurdo da situação aumentava, mais e mais estranhas eram as reações das professoras:

– Ah! Não acredito, ele ainda vai fazer isso por ela?
– Nossa, como ela é egoísta!
– Essa mulher é imensa!
– Isso é só história, mesmo, homem assim não existe.
– Essa história é um absurdo!

Eu me divertia observando a reação delas que nunca tinham conhecido literatura fantástica para adultos.

Depois, propus como exercício criativo que cada grupo procurasse uma forma de expressar essa história considerando diferentes contextos comunicativos: carta formal; carta informal; notícia; poema; crônica; conto de fadas. Para cada grupo, ofereci um conjunto de materiais que poderiam ser usados como fonte de informação, de estudo, de apoio para conhecer melhor o gênero eleito. A proposta foi feita em grupo porque gostaria de enfatizar o processo de criação. Em cada grupo selecionei uma pessoa que deveria registrar todos os processos de trabalho do grupo. Durante o processo fui ouvinte das primeiras leituras, problematizei algum aspecto que poderia trazer mais clareza ao texto, apontei revisões etc.

Todo mundo conseguiu escrever, refletir bastante sobre o uso das palavras, sobre como expressar melhor uma ideia. E isso aconteceu, em primeiro lugar, porque partimos de um dado enredo. Assim, o exercício criativo pode ser concentrado no modo de expressar, o que, em si, é um grande desafio e, por que não dizer, muito prazeroso.

Na hora de compartilhar o que havia ocorrido em cada subgrupo, vimos como o texto se iniciou muito antes de se escrever a primeira linha, nas ideias que circulavam. Como as sucessivas discussões e sugestões vão compondo pouco a pouco a voz do narrador, os detalhes das narrativas etc.

Um dos textos mais facilmente resolvidos foi a conversão da historia de Bárbara em um conto de fadas. Isso ocorreu porque aquele público conhecia  bem esse gênero de texto, o que facilitou a escrita.

O mais difícil, por outro lado, foi a elaboração da crônica, isso porque justamente era o texto mais desconhecido: o que, afinal, diferencia uma crônica de um conto?, perguntaram as professoras. Portanto, para que pudessem de fato produzir boas crônicas, era preciso muito mais tempo para explorar outras crônicas, permitindo assim a generalização das características desse gênero. As outras quatro propostas permitiram o surgimento de soluções bem interessantes:

Vimos que a principal condição para esse texto era conhecer a linguagem de um jornalista. Para isso, as professoras recorreram ao conhecimento da imprensa sensacionalista.

Para o poema, recorreu-se à rima, uma das características de certo tipo de poema. É claro que existem outras formas, inclusive sem rimas. Se essas outras formas de poesia fossem exploradas pelo grupo, provavelmente as professoras teriam avançado bastante. Conhecer o gênero, portanto, amplia muito as possibilidades de expressão de quem escreve.


3 Autoras: Cleia, Eliciene, Elza, Luiza, Maria de Jesus, Maria Raimunda, Nuria, Silvana, Vanilza e Zilma.
4 Autoras: Creuslene, Dinalva, Lene, Leonice, Maria da Conceição, Maria de Jesus, Silvânia, Solange, Suely, Thylla e Viviane.

O grupo que escreveu a carta para a presidente da República inspirou-se no conceito que sustentava o absurdo da história, o exagero da personagem. E foi a partir da exploração desse recurso estético que as professoras criaram uma carta inusitada, construindo um sentido novo para Bárbara, no caso, as professoras bárbaras. O texto ficou ainda mais engraçado pelo recurso da verossimilhança, procurando utilizar, nesse caso, a mesma diagramação de uma carta oficial com todos os itens listados dessa reivindicação.

E as professoras que escreveram a carta informal usaram bem o conhecimento sobre o propósito comunicativo desse texto: criar a oportunidade para uma boa fofoca com uma pitada de inveja, características que podem ser exploradas para criar o efeito do humor.


5 Autoras: Ariolina, Domingas, Elisabete, Eva, Gilcy, Jussandra, Lúcia de Fátima, Maria Aparecida, Maria José e Rosângela.
6 Autoras: Danízia, Jomara, Kácia, Luciléia, Maria de Jesus, Maria José, Maria Socorro, Marly, Rejane, Rosânia e Thallita.

O prazer de escrever

A oficina resultou em uma experiência significativa para as professoras que se surpreenderam com os textos que os colegas foram capazes de produzir, segundo elas, muito criativos. Analisando mais profundamente, vimos que para ser criativo, escrever melhor e com competência é preciso, por exemplo:

– trocar ideias para a elaboração de enredos, mesmo que partam de histórias conhecidas;
– pesquisar a linguagem empregada de acordo com o personagem e seu contexto comunicativo;
– pesquisar as características próprias para cada gênero;
– refletir sobre a interlocução do texto, ou seja, quem deve ser o leitor real;
– ter tempo para sucessivas revisões em muitos níveis, desde a de ortografia e gramática, até, principalmente, a reescrita de versões que melhoram a linguagem.

Com isso, as professoras podem refletir com o coordenador pedagógico da escola sobre como ensinar os alunos a gostarem de escrever e o que considerar no planejamento da produção de textos, assegurando que o aspecto criativo, próprio da literatura, não seja depreciado em função das questões do domínio do sistema de escrita. Afinal, escrever bem significa dominar as regras do sistema escrito de sua língua e, ao mesmo tempo, dominar as possibilidades expressivas da linguagem escrita. E por que não dizer desafiar-se e divertir-se?

Posted in Revista Avisa lá #54.