Propostas reflexivas de ensino e aprendizagem em ortografia são possíveis com uma boa formação continuada de professores
Ainda hoje, quando se ouve falar nos inadmissíveis erros em Língua Portuguesa, quase sempre se faz referência apenas à ortografia. A esse aspecto do idioma, muitas vezes, é atribuído valor exagerado, desproporcional. Na contramão dessa visão, também costumam surgir distorções, que concebem a correção ortográfica como ultrapassada, mergulhada na concepção conservadora. A organização curricular deve priorizar o trabalho com as práticas de linguagem que permitem aproximar o que se ensina na escola do uso social da língua – como se fala, se escreve e se escuta. Dessa maneira, a preocupação com o tema ganha outro significado. Ao escrever, é necessário pensar no destinatário, ou seja, no leitor do texto. Portanto, escrever corretamente é uma das exigências para produzir um bom texto.
Felizmente, já é possível integrar visões que, até há bem pouco tempo, pareciam antagônicas – o ensino útil e significativo da língua aliado ao da ortografia. Para muitos pais e educadores, vai se tornando claro que o ensino da língua escrita necessita atuar sobre vários aspectos, que também incluem o ensino da ortografia. No que se refere à aprendizagem desse conhecimento sobre a escrita, evoluiu-se bastante. Pesquisadores, a partir da década de 1990, têm investigado o processo de reflexão sobre o sistema de escrita pelas crianças e a natureza dos erros que elas cometem.
Também têm demonstrado a necessidade de ensinar e aprender ortografia de modo que os estudantes possam analisar e refletir e não apenas memorizar escritas e regras ortográficas. Tudo aponta para a necessidade da intervenção pedagógica, para promover descobertas e aquisição de regras ortográficas. Cabe a nós, professores, conhecer melhor esse objeto de conhecimento, para conseguir ajudar os alunos a interpretá-lo e reconstruí-lo.
Características e desafios
Durante muito tempo, acreditamos que o aprendizado desse conteúdo escolar dava-se, basicamente, por memorização. Hoje, temos informações para realizar uma intervenção pedagógica que persiga o ensino e o aprendizado mais interessante, prazeroso e eficiente, permitindo ao aluno compreender melhor esse objeto de conhecimento. Nos estudos da equipe da Escola Verde que te Quero Verde1, verificamos, logo de início, que as pesquisas apontam para a necessidade de separar a compreensão do funcionamento do sistema de escrita para a reflexão sobre as regras ortográficas, já que só depois da primeira conquista, a criança conseguirá se debruçar mais sobre as normas de representação. A escrita não é a transcrição da fala e sim um sistema de representação da linguagem. Seria muito mais fácil se cada letra representasse apenas um som e cada som uma letra, o que acontece apenas em pouquíssimos casos no idioma português.
A partir disso, passamos a olhar mais atentamente as produções infantis e confirmamos a ideia de que os erros cometidos revelam o quanto exploram cognitivamente a língua escrita, buscando compreender as relações entre grafemas, fonemas e a norma. Regularidades e irregularidades Além de entender melhor as hipóteses que as crianças constroem nesse percurso compreensivo, foi fundamental para nossa equipe saber o que é regular e irregular na ortografia, já que há naturezas diferentes de dificuldades. As correspondências regulares entre som e letra são aquelas em que há um princípio gerador, uma regra na qual se inserem algumas palavras e sobre as quais é possível refletir e compreender. Já as dificuldades irregulares da escrita exigem memorização, pois não há como buscar regras que amparem a tomada de decisões.
Nesse processo, foi importante o estudo de dois livros – Ortografia: ensinar e aprender e O aprendizado da ortografia (veja em Para saber mais). Com isso, passamos a entender o percurso realizado por nossos alunos e a planejar sequências didáticas adequadas a cada grupo das salas iniciais, do Ensino Fundamental.
No fim das palavras
A sequência ortográfica “ão” ou “am” no final das palavras? foi inserida no currículo do 4º ano, a partir de 2007, passando a cada ano por algumas reformulações em relação a adaptações ao grupo/classe e a nossas reflexões. Ela foi iniciada depois de analisarmos a ocorrência desse tipo de erro em muitas produções dessa faixa etária e de verificar que nossos alunos são capazes de analisar regularidades cada vez mais complexas. Nesse tipo, chamada de morfológico-gramatical, para estabelecer regras, é necessário entender a categoria gramatical da palavra.
Todas as formas da terceira pessoa do plural do futuro se escrevem com “ão”, enquanto que todas as outras formas de terceira pessoa do plural de todos os tempos verbais se escrevem com “m” no final
(Fonte: Ortografia: ensinar e aprender, de Artur Gomes de Morais, pg. 34)
Para os aprendizes da língua, as flexões dos verbos causam muitas dificuldades. Com essas atividades, foi possível aliar o conhecimento das categorias morfológicas (verbos) e refletir sobre as regras ortográficas. Quando analisamos as produções dos estudantes, verificamos que costumam usar os dois tipos de escrita, ficando evidente que ainda, nesse momento, não buscam critérios para escrever essas palavras ou, se buscam, nunca pararam para refletir sobre elas. O objetivo da sequência foi proporcionar momentos de uso dessas ocorrências, oferecendo atividades que possam refletir sobre essa escrita e analisá-las, buscando regularidades que os ajudem a tomar decisões acertadas. Confira a seguir:
Sequência ortográfica “ão” ou “am” no final das palavras?
Objetivos:
- Refletir sobre a escrita correta das palavras, em relação ao uso de “am” e “ão”.
- Buscar regularidades nessas escritas.
- Formular, comparar e validar hipóteses a partir dos conhecimentos dos alunos.
- Retomar e ampliar hipóteses.
- Iniciar conhecimentos gramaticais (verbos, tempos verbais e substantivos).
Conteúdos:
- Verbos e tempos verbais.
- Substantivos.
- Regularidades no uso do “am” e do “ão”.
Desenvolvimento:
1ª atividade – Ditado de um trecho de um conto com verbos no passado e substantivos
Os alunos podem, durante o ditado, fazer qualquer tipo de pergunta que não esteja relacionada ao uso das terminações “am” e “ão”. Essa é uma decisão didática, uma intervenção que pretende deixar observável a ocorrência ortográfica que se quer trabalhar. Também possibilita que a criança, por meio desse ajuste, consiga dar um passo a mais em seu aprendizado, sobretudo quando tiver de explicitar sua escolha para o colega. Nesse momento, a professora dá todas as coordenadas do ditado referente à pontuação, paragrafação e outras ocorrências ortográficas, deixando como desafio pensar somente sobre as ocorrências determinadas. Sendo assim, pode avaliar como os alunos as usam. É importante re gistrar o processo de trabalho por planilhas de observação, que servem para direcionar o trabalho docente e documentar o desempenho dos aprendizes.
2ª atividade – Confronto de ideias
Os alunos devem justificar o uso do “am” e do “ão” recorrendo aos seus conhecimentos anteriores para formularem explicações sobre suas decisões. Outra intervenção é necessária. Os estudantes serão organizados em duplas, escolhidas pela professora, para proporcionar o confronto de ideias. Essa tarefa exige que cada um reflita sobre a própria ação, formule um pensamento que a justifique e compare com o do outro. Não é fácil, mas, segundo Jean Piaget (1896-1980), essa capacidade começa a se desenvolver no ser humano a partir dos 7 anos.
As discussões tornam-se possíveis porque comportam compreensão a respeito dos pontos de vista do adversário à procura de justificações ou provas para a afirmação própria. As explicações mútuas entre crianças se desenvolvem no plano do pensamento e não somente no da ação material.
(Fonte: Seis estudos de Psicologia, de Jean Piaget, Ed. Forense Universitária, pg.43)
A partir dessa formulação de ideias, as crianças trocam, ajustam, ampliam e registram uma lista de observações para que em outras situações sejam retomadas e validadas.
Algumas dessas observações são:
- “am” é usado quando já fizeram algo – uso observado na tarefa;
- “ão” é utilizado quando ainda vão fazer algo – ideia trazida por alguns, que disseram saber porque algum familiar informou a eles;
- “ão” tem som mais forte que “am”;
- “portão” e “caminhão” têm significados diferentes de “portam” e “caminham”.
3ª atividade – Incluir uma personagem no conto e observar as mudanças ocorridas
Ao incluir uma personagem no texto, obrigatoriamente, mudanças acontecerão, partindo do pressuposto que os alunos reconhecerão essa necessidade, já que são usuários da língua. Eles se referem ao uso do “am” e do “ão” em situações de verbos no passado, para viverem uma situação de valida ção de conhecimentos e verbos no presente, trazendo novas observações, am pliando-as. Costumam observar que se usa “am” e “ão” também no presente.
4ª atividade – Preencher lacunas de um texto com determinados termos (verbos) e pensar em uma definição para esse tipo de palavra
Dessa maneira, retomarão a diferenciação das palavras sugeridas pelos alunos na primeira observação que fizeram.
5ª atividade – Transformar um texto do passado em um do futuro usando os conhecimentos atuais
Nesse momento, é possível fazer uma lista dos verbos do texto no passado que modificaram e, aolado, outra lista com esses mesmos verbos no futuro. Pedir aos alunos que verifiquem se há outras observações a fazer que os ajudem a decidir quando escrevem. Costumam observar que os verbos no futuro têm no final “rão”.
6ª atividade – Pensar na definição para substantivos, já que esse é o outro grupo de palavras que destacaram no início da sequência
7ª atividade – Pensar na sílaba tônica das palavras
No início, os estudantes dizem que “ão” tem som forte e “am”, fraco. Da mos início a essa discussão para ajudar no uso desse critério. Voltamos à lista de verbos no passado e no futuro para evidenciar essa fala dos alunos e tentar esclarecer melhor o que estão pensando quando dizem “é mais forte e mais fraco”.
A professora pergunta se existe parte forte em outras palavras que não são escritas com “ão” e se podem confirmar que existe sílaba mais forte em todas as palavras. O conteúdo tonicidade é trabalhado no ano seguinte, ampliando esse conhecimento. Nesse momento, o objetivo é ajudar os alunos a usar as hipóteses que têm sobre essa ocorrência a seu favor na hora de tomar decisões em suas escritas. A partir daqui, atividades de sistematização são necessárias para que os estudantes possam experimentar os conhecimentos e ampliá-los cada vez mais.
(Dirce Aparecida de Castro Loureiro, pedagoga, contadora de histórias e monitora de circo e Karina Saccini Mariano, pedagoga. Ambas são professoras do 4º ano, da Escola Verde que te Quero Verde, em São Vicente – SP)
1 A Escola Verde que te Quero Verde atende crianças de Educação Infantil (1 ano e 8 meses) ao Ensino Médio, em São Vicente – SP. Possui ensino bilíngue em Língua Inglesa, em período integral, até o fi m dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
Ficha técnica
Escola Verde que te Quero Verde
Endereço: Rua Pedro Corrêa, 519 – Itararé – São Vicente – SP. CEP: 11320-140 – Tel.: (13) 3324-3624
Site: www.escolaverde.com.br.
Diretora: Sylvia Freire
Coordenadora pedagógica de Educação Infantil e do Ensino Fundamental (anos iniciais): Valéria Pimentel
E-mail: valeriapimentel@uol.com.br
Professoras: Dirce Aparecida de Castro Loureiro e Karina Saccini Mariano
E-mails: cice.dirce@uol.com.br e karina@escolaverde.com.br
Para saber mais
Livros
- Ortografia: ensinar e aprender, de Artur Gomes de Morais. Ed. Ática. Tel.: 0800 11-5152. Site: www.atica.com.br
- O aprendizado da ortografia, de Artur Gomes de Morais (org.). Ed. Autêntica. Tel.: 0800 28-31322. Site: www.autenticaeditora.com.br